Depois de Nova York, Cape Cod e as noites brancas de São Petesburgo, os objetos de Cézanne. Um fio condutor liga a obra do fotógrafo americano, um dos pais da Fotografia de Rua. E passa pelo Marco Zero, com uma sensação de perda e a contínua maravilha, arriscando tudo todos os dias
“O que acha? Você é o primeiro a quem eu pergunto”. Joel Meyerowitz está na Galeria San Fedele de Milão com a mostra “Sightseeing – Um Sentimento da Vida”. Diante dele estão as últimas imagens, feitas no ano passado no atelier de Cézanne. É a primeira vez que são expostas e a resposta me vem instintivamente: “O cinza me impressiona”. “Verdade?”. As rugas do rosto se comprimem em uma expressão estupefata.
Meyerowitz é assim. Embora seu nome esteja escrito nos livros de história da fotografia, ele tem necessidade de saber o que você pensa. Depois de cinquenta anos de carreira é uma autoridade, mas tem nos olhos o estupor do início. Nos Anos Sessenta foi um dos pais da “Fotografia de Rua”. Nos Anos Setenta descobriu a “Fotografia de Paisagem”: o horizonte na costa de Cape Cod e as cores tênues das noites brancas de São Petesburgo. Em 2001 foi o único fotógrafo a ter acesso ilimitado ao canteiro do Marco Zero, em Nova York, e 2013 foi o ano de Cézanne.
Comecemos pelo fim. Por que essas últimas fotos?
Há dois anos, fui a Provença para fazer um livro. Junto com minha mulher, fui visitar o atelier em Aix-en-Provence, para homenagear o grande pintor. O que mais me impressionou foi ver que ele tinha pintado as paredes de cinza escuro. Perguntei a mim mesmo: por que cinza escuro? Porque o pai da pintura contemporânea faz uma escolha dessas?
Qual foi a sua resposta?
Antes dele, havia a pintura do Salon: ilusão dos espaços profundos, perspectiva renascentista... Tudo devia ter um “aspecto real”. Cézanne rompe com isso e começa a fazer manchas de cores. Uma mancha representa uma garrafa verde e outra representa a parede cinza. A parede não o “impele” para trás. Com esta lenta junção de manchas de cores inventa o “nivelamento”. A arte moderna é “plana”. A partir daí, não interessa mais criar a ilusão de profundidade.
E a parede cinza?
É a raison d’être desse nivelamento, porque se a parede fosse branca, os objetos que pintava teriam tido um reflexo nas bordas. O branco ressalta, arredonda um pouco os objetos. O cinza, não, e percebi que essa era uma estratégia.
É a primeira vez que fotografa os objetos enquanto tais.
São naturezas mortas muito simples. Não há “arte” nessas imagens. O que há é a rica tonalidade do cinza e as sutis características de cada objeto. Não são objetos de arte: cerâmicas quebradas e empoeiradas, uma cafeteira de metal, um chapéu, o crânio. São objetos que Cézanne usava em suas naturezas mortas. Fotografei-os em seu estúdio, com a mesma luz com a qual ele os via. Havia cem anos que ninguém os tocava. Juntei as 25 imagens e fiz uma única obra. É muito diferente do trabalho que fiz até agora, é um risco que assumi. Não sei se é uma boa obra de arte.
Que relação tem com sua obra anterior?
Enquanto estava no Marco Zero me deparava todos os dias com os objetos que voaram dos edifícios. Objetos particulares que pertenciam às pessoas, coisas que tinham no seu local de trabalho. Guardei muitos deles e os doei ao museu. Agora, eles têm uma coleção de artefatos um pouco como em Pompeia. Um bloco de anotações, um molho de chaves, animais de pelúcia... Fotografei todos eles para fazer um registro, não queria fazer nada em particular com eles.
Há algum objeto que o impressionou mais?
Um dia, um bombeiro me trouxe uma Bíblia. Estava enterrada a sete palmos. O calor a fundiu com um pedaço de aço. Estava queimada, encharcada... e aberta no Êxodo 21: “Se houver outros danos, urge dar vida por vida: olho por olho, dente por dente”. Inacreditável. Guardei aquela Bíblia em casa durante vários anos, depois, doei-a ao museu. Acho que todas essas coisas, o Marco Zero, o livro sobre a Toscana, a parede cinza, me levaram, aos poucos, aos objetos do atelier de Cézanne.
Wim Wenders contou que uma manhã foi fotografar com o senhor no Marco Zero e disse que o ouviu dizer que nunca tinha visto uma manhã tão bonita quanto aquela. Mas justo ali?
Ali é o cemitério de três mil pessoas. Passei nove meses lá e, ali, muitas vezes fiz experiência da maravilha e da beleza. Surpreendia-me dizendo: “É belíssimo”. Depois, pensava: “Será que estou louco?”. O Marco Zero tinha se tornado belo, porque o que existia tinha se tornado natureza. O sol que surgia pela manhã, a neblina que subia, os arco-íris, a neve, os temporais, a luz dourada da tarde. Eu olhava e fotografava tudo, porque era bonito. Depois da queda das torres a natureza tomou conta. Era o sublime.
Em que sentido?
O sublime da cachoeira, dos abismos, da tempestade, da fúria do mar. É o sublime que nos ensina a maravilha. No Marco Zero, quando a força da gravidade venceu as torres, aconteceu um novo tipo de sublime que nasce de uma beleza terrível. Eu me referia a isso e tenho certeza de que é a mesma coisa que Wenders percebeu quando esteve comigo. A beleza terrível, um sublime contemporâneo. É algo sobre o qual deveríamos refletir.
Muitos mestres da fotografia do século XX são judeus. É uma coincidência, ou há algo mais? O quê da sua tradição judaica o ajudou a desenvolver sua maneira de fotografar?
É uma pergunta delicada, mas contém muita verdade. Muitos dos maiores fotógrafos do século XX são de tradição judaica. É estranho, porque os judeus não têm uma cultura visual, em termos bíblicos. A imagem esculpida não é judaica. Não é nem muçulmana. São os cristãos que usam as imagens, os muçulmanos usam a caligrafia, os judeus... Para eles a palavra é a palavra, mas por alguma razão, no século passado, sobretudo nos Estados Unidos, entre os judeus criou-se um forte interesse pela fotografia. Em minha opinião é porque os judeus são um povo com uma forte consciência social. Como povo oprimido, perseguido na própria terra, os judeus tornaram-se muito sensíveis às mudanças das dinâmicas sociais e são vigilantes, desenvolveram um olhar alerta. Esse olhar atento e o interesse pelas mudanças sociais produziram Freud, Stalin e Einstein, além de incontáveis musicistas e artistas. Porém, o que os levou à fotografia foi um tipo de consciência social, um tipo de respeito, um senso emocional de perda. A fotografia é uma investigação sobre a perda, sobre o instante que se esvai. Os judeus percebem essa perda e foram capazes de sintetizá-la. Penso em Diane Arbus, Garry Winogrand, Irvin Penn, Robert Capa, Robert Frank, Alfred Stieglitz...
O pintor David Hockney disse que aprendeu a olhar a realidade desenhando. O que o senhor aprendeu tirando fotografias?
A refinar a minha intuição em relação àquilo que me acontecerá. Não tenho poderes extra sensoriais, mas desenvolvi a capacidade de prever de modo bastante preciso quando algo está para acontecer. Eu interpreto o caminho como se fosse um texto. Sei lhe dizer que aquela pessoa que está andando encontrará aquela outra em 20 segundos. Estarei no lugar certo exatamente naquele momento. E não será a única coisa que acontecerá porque outras duas, três, quatro acontecerão. Eu sei prever quando, em algum lugar, as pessoas se encontrarão e tornarão visível algo que antes não o era.
Depois de cinquenta anos fotografando, o que permaneceu como no início?
Quando comecei não sabia nada de fotografia. Tudo o que tinha era a sensação de maravilha. As coisas me estarreciam, me pareciam maravilhosas, full of wonder (cheias de maravilha). Uma determinada pessoa, o gesto de alguém que passa a mão nos cabelos... Podiam ser belos e poéticos naquele momento e no momento seguinte não o serem mais. Eu quero estar pronto com a máquina fotográfica para clicar. Ainda hoje, eu valorizo os dias. Cotidianamente acontece de eu olhar e dizer: “Que bonito!”. As coisas me fazem parar, o mundo é cheio de momentos fantásticos. Eu vivo para fazer experiência dele novamente. Quero dizer “uau” outra vez, pois é algo que fere. As coisas que fotografo são maravilhosas. São plenas de rudeza humana, de energia humana. O que realmente importa é ter uma experiência que sentimos penetrar dentro de nós. E arriscar tudo, todo santo dia.
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