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Passos N.158, Maio 2014

DESTAQUE / A CANONIZAÇÃO DOS PAPAS

Pároco para sempre

por Paola Bergamini

Não o “Papa bom”, mas o Papa da bondade, das tradições e não do tradicionalismo. Dom Gianni Carzaniga, ex-diretor da Fundação João XXIII, relembra a vida e o Pontificado de Roncalli: um pastor “ao lado do povo”

“Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé. Meus caros amigos e irmãos, estamos atentos aos vãos simulacros que hoje enganam o mundo e o aterrorizam. Todos os tempos se assemelham”. Foi assim que Dom Angelo Roncalli, núncio apostólico em Paris, concluiu a sua homilia no dia 26 de agosto do Ano Santo de 1950, na igreja de Santo Alessandro in Colonna, em Bérgamo, Itália. O futuro João XXIII, canonizado no dia 27 de abril junto com João Paulo II, manteve uma ligação especial com essa paróquia. Ali, em 1898, jovem seminarista, ouviu a homilia do Patriarca de Veneza, Giuseppe Sarto, depois Pio X, e, em 1906, fez a sua primeira pregação importante como padre, sobre São Francisco de Sales. Outras ocasiões o levaram de volta a essa igreja.
“João XXIII é a expressão mais bela de um clero próximo do povo, dedicado ao cuidado pastoral. Ele se sentirá sempre um pároco”, explica Dom Gianni Carzaniga, reitor do seminário de Bérgamo e durante oito anos diretor da Fundação João XXIII, onde estão recolhidos e são estudados os escritos do Pontífice.

O que significa que João XXIII se sentia pároco, ele que nunca o foi?
O primeiro dom que o Senhor lhe deu foi o de encontrá-Lo. Angelo Roncalli se tornou padre porque queria ser padre, isto é, anunciar Jesus Cristo em qualquer situação. Não é algo que se aprende nos livros; ele fez experiência disso olhando o seu pároco: próximo do povo com zelo pastoral, capilar. Nesse sentido, sempre foi pároco. Penso nos anos passados nas periferias da Europa.

Em que sentido?
Primeiro na Bulgária, junto aos 160 mil emigrantes católicos macedônios que fugiram da guerra, e depois nos dez anos na Turquia, ele sempre foi o delegado apostólico, isto é, o representante do Papa junto aos católicos: um bispo missionário, perto do povo. Seu papel diplomático junto a esses governos era de pouco valor, quase nulo. Na Turquia, vê-se inclusive obrigado a vestir roupas civis, mas isso não o impede de criar relacionamentos, de bater à porta de serviços. É o homem do diálogo atento. Um episódio talvez possa clarear essa sua posição inteligente e esperta, no sentido da esperteza evangélica: em 1961, Nikita Kruschev envia a João XXIII os votos pelos seus 80 anos; poucos meses depois, a filha dele, junto com o marido, fará uma visita ao Pontífice. Muitos anunciaram que se tratava do desgelo entre a URSS e a Santa Sé. Papa Roncalli não se ilude, e diz: “O mundo foi feito em seis dias. Este é o primeiro da Rússia”. Sabe que em todos os lugares se pode anunciar o Evangelho, mas é necessária atenção. Quando, lá pelo fim da Segunda Guerra mundial, é enviado a Paris como núncio apostólico, portanto com um papel importante, toma consciência da obra de descristianização iniciada com a Revolução francesa. São todas experiências que levará consigo para Roma. Sente o desejo de falar ao homem moderno. Por isso, convoca o Concílio Vaticano II.

Podemos dizer que ele teve a ideia do Concílio a partir de uma preocupação pastoral?
Sim. João XXIII disse isso claramente. O Concílio não nasce de uma questão doutrinária, mas do desejo de cuidar das famílias, dos que passam necessidades, do homem numa sociedade que está mudando. Não se trata de rever os dogmas. Não há necessidade disso, e, sim, do modo de apresentá-los. Eis aí a sua sensibilidade pastoral, o seu ser pároco. Embora permanecendo ancorado na tradição, a doutrina deve se tornar carne. Ele é o homem da tradição, não do tradicionalismo. Tradere significa guardar e transmitir o mistério cristão. Papa Roncalli fala a todos, mesmo sabendo que existem diferenças. Como o Papa Francisco, respeita cada ser humano, mas não tem nenhum intenção de mudar o dogma e a doutrina. João XXIII olha o que une, não o que divide. Nesse sentido, o seu tradere é vivaz, vivo.

Um exemplo?
Na visita aos detentos de Regina Coeli, não tem vergonha de falar de um primo que foi preso. Eis aí o pastor que “se coloca ao lado”. Comunica com simplicidade o que mais lhe interessa: a relação com o Senhor que se inclina sobre todos e oferece o seu desejo de se encontrar. Torna-se transparente dessa relação, que permite perdoar e perdoar-se pelo mal feito. O Evangelho, para ele, reanima as fibras da existência ao ponto de fazer compreender que a relação com o Pai que o Filho oferece é algo que escancara, dissolve a raiva, porque o homem se sente amado e pode amar.

São muitas as afinidades com o Papa Francisco...
Uma é fundamental: partem do encontro com Cristo, que movimenta a existência revestida de um amor maior. As regras só existem como consequência. Papa Francisco, como João XXIII, está anunciando a experiência de ter encontrado Cristo. Há também outro aspecto que os aproxima: a oração. João XXIII se prepara para o Concílio com uma semana de exercícios espirituais. Pensa que a sua pessoa está dentro do mistério de Cristo. Escreve: “A oração é a minha respiração”. A sua oração é pelo mundo. Quando recita o Terço, no terceiro mistério gozoso, onde se anuncia o nascimento de Jesus, diz: “Este é para todas as crianças que nascem”. Na noite da eleição, quando se encontra sozinho como seu secretário, Dom Loris Capovilla, e este lhe pergunta: “O que vamos fazer?”, ele responde: “Recitemos as Vésperas”.

Dom Giussani, numa entrevista, disse que o traço característico de João XXIII foi “a longanimidade misericordiosa pela salvação do homem”.
Nisso ele ecoa a bondade de João XXIII. Como sublinha sempre Dom Capovilla, ele não é o “Papa bom”, mas o Papa da bondade. Isto é, o seu olhar, tal como o havia recebido de Cristo, é cheio de confiança, pronto para a correção, mas sem condenar. É o anúncio da verdade.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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