O impacto da visita de Papa Francisco ao Brasil, em julho 2013, ainda nos acompanha
À distância de quase um ano da Jornada Mundial da Juventude, ainda lembramos com comoção o momento em que Papa Francisco chegou ao Rio de Janeiro e, no aeroporto Tom Jobim, saudou as autoridades, surpreendendo a todos com seu jeito suave: “Permito-me bater delicadamente a esta porta. Peço licença para entrar e transcorrer esta semana com vocês”.
Em seguida, recordando as palavras de Pedro ao encontrar um paralítico, disse: “Não tenho nem ouro e nem prata, mas trago o que me foi dado de mais precioso: Jesus Cristo. Venho em Seu nome, para alimentar a chama do amor fraterno”. Nos dias seguintes, ele continuou a surpreender os milhões de brasileiros – que acompanhavam seus passos diretamente, no Rio de Janeiro, ou em suas casas pela televisão –, pelo jeito humilde de se apresentar, pela simplicidade com a qual falava com presidentes e com crianças e cadeirantes, pela profundidade com que conduzia momentos de reflexão.
Sua visita ao Brasil foi um acontecimento, algo que mesmo tendo sido preparado com muita antecedência, resultou totalmente inesperado e surpreendente em seu desenrolar-se. As palavras do Papa, suas atitudes, a sua figura humana, mas também a alegria dos jovens, mesmo nas longas filas para pegar o transporte ou o seu lanche, obrigavam a pensar ao Mistério que se faz carne neste nosso tempo e vem habitar entre nós, de maneira bastante clara naquela semana. E nós vimos situações admiráveis, ouvimos palavras que nos comoveram, tocamos com nossas mãos circunstâncias das quais era inevitável pensar: isto só pode acontecer pela Tua graça, Senhor.
Uma humanidade nova. Era visível no Rio uma novidade: 3,5 milhões de pessoas na praia de Copacabana chamavam a atenção pela capacidade de conviver com alegria, de cuidar com simplicidade das necessidades dos vizinhos, de responder em paz às provocações. Um jornalista, comparando com a multidão do réveillon, obervou que neste evento havia necessidade de muito champanhe e de muitas outras coisas para alimentar a alegria daquela noite. Jovens de diversos países, ao contrário, não dispondo de ouro e nem de prata, compartilhavam o tesouro por eles encontrado, a luz de Jesus ressuscitado e a sabedoria do seu Evangelho. Por isso, podiam conviver numa intensidade de paz e de alegria que transbordava em suas atitudes e palavras e deixava admirados os observadores. É inesquecível o silêncio que se fez ao pedido do Papa e todos puderam ouvir o barulho das ondas.
Desde que assumiu a cátedra de Pedro, o Papa Francisco continua a nos surpreender com suas palavras, suas atitudes, suas propostas de renovação da Igreja, para que seja realmente sal neste mundo que sempre mais parece ter perdido o gosto de viver. Podem ser identificadas duas notas dominantes, que retornam quase a cada dia, com algumas variações, nas palavras do Papa Francisco e que constituem uma chave de leitura para compreender aspectos importantes de seu pontificado. O Papa Francisco manifesta uma extraordinária inteligência do mundo moderno e dos desafios que apresenta, identificando como graves problemas a falta do sentido da vida, a fragmentação das pessoas, a solidão, o fato de não ter raízes, não pertencer a ninguém: compreende estes males como matriz da violência, da autodestruição (drogas e álcool) e da corrupção.
É interessante notar que as forças políticas que disputam o poder no Brasil parecem ignorar esses problemas ou considerá-los irrelevantes, pois suas propostas deixam entender que os maiores desafios são aumentar o PIB, equilibrar a balança comercial e defender alguns novos direitos. Ao mesmo tempo, o Santo Padre identifica com clareza o caminho para responder a esses desafios: o encontro pessoal de cada um com Jesus Cristo, porque Ele é o Redentor, vindo entre nós, agora, neste tempo no qual vivemos, para salvar a nossa humanidade do vazio e da insensatez. E os cristãos são chamados a serem testemunhas e promotores deste encontro.
Curar as feridas e aquecer os corações. A primeira nota dominante é um convite a “curar as feridas e aquecer os corações dos fiéis”, como disse na entrevista ao diretor de “La Civiltà Cattolica”, em agosto de 2013. Na mesma entrevista ele disse: “As pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas. (...) Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se” (...). E noutra passagem da mesma entrevista, pronunciou as palavras que mais percorreram o mundo, quando disse: “Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha (...), pois muitos vivem feridas abertas”.
Um Papa que viveu numa grande metrópole como Buenos Aires, acostumado a visitar as periferias da existência da sua Diocese, tem uma percepção muito viva da realidade de dureza, de solidão, de abandono, de agressividade de violência que caracterizam nossas sociedades latino-americanas. Sabe que as pessoas vivem numa permanente batalha que provoca feridas, mas o pior é que ninguém se importa com o sofrimento que essas feridas produzem, já que cada um parece seguir a ordem de cuidar, acima de tudo, do seu interesse particular, de correr atrás de sua conveniência, de lutar pela sua utilidade e pelo próprio prazer. Nessa mentalidade não há espaço para a compaixão, para dar atenção aos dramas das outras pessoas. Parece que não importa se atitudes pessoais provocam danos e sofrimentos em outras pessoas. A figura do vampiro, que necessita sugar o sangue de outros para continuar sua vida, descreve de maneira significativa essa postura.
Falando a Cardeais e Bispos do Brasil, no dia 27 de junho do ano passado, no Rio de Janeiro, o Papa disse: “A globalização implacável e a intensa urbanização, frequentemente selvagem, prometem muito. Muitos se enamoram das suas potencialidades. (...) Mas, por outro lado, muitos vivem os seus efeitos negativos sem se deram conta de quanto eles prejudicam a própria visão do homem e do mundo, gerando maior desorientação e um vazio que não conseguem explicar. Alguns desses efeitos são a confusão acerca do sentido da vida, a desintegração pessoal, a perda da experiência de pertencer a um ninho, a carência de um lugar e de laços profundos”.
O dom de si. Na tradição cristã, afirmou-se a mentalidade segundo a qual o comportamento quotidiano constrói o bem da sociedade e uma civilização mais avançada quando as pessoas fazem dom de si para o bem de outros, até com sacrifício próprio. Agora domina a mentalidade contrária: acima de tudo busca-se o bem-estar individual, inclusive com o sacrifício de outros. O resultado é uma desumanidade que endurece todos os relacionamentos, desde os mais íntimos, em família, até os relacionamentos nos ambientes de trabalho, nas repartições públicas, nas filas dos postos de saúde, etc.
Essa dureza, no quotidiano, torna-se solidão, desleixo com o sofrimento do outro, agressividade e, ainda, mau atendimento, tratamento humilhante, indiferença. Em alguns momentos, essa dureza transforma-se em atos de graves violências. Os meios de comunicação falam desses fatos que são registrados nas estatísticas oficiais. Recentemente, vimos situações dramáticas: uma maternidade não acolheu uma parturiente e deixou a criança nascer fora da sua porta; uma criança foi morta pela madrasta com a ajuda de outra pessoa, provavelmente com a participação do pai, conforme a percepção da polícia; um bebê foi abandonado na lata de lixo de um banheiro público; depredações e violências com dezenas de mortes aconteceram por ocasião da greve da Polícia Militar na Bahia.
Não se trata de casos isolados e, sim, de uma mentalidade que banaliza a vida e a morte, a maternidade e a paternidade, o amor e a família. A pessoa, então, é valorizada enquanto interessa, é rejeitada ou descartada quando incomoda, é eliminada quando atrapalha. Essa mentalidade parecia exclusividade de regimes autoritários, mas prospera em nossas democracias contemporâneas. O Papa Francisco tem consciência dessa realidade e convida a Igreja a agir como o bom samaritano que derramou óleo sobre as feridas da pessoa que encontrou machucada na beira do caminho.
No mesmo encontro com Cardeais e Bispos do Brasil, durante a JMJ, o Papa disse: “É importante promover e cuidar de uma formação qualificada, que crie pessoas capazes de descer na noite sem ser invadidas pela escuridão e perder-se; capazes de ouvir a ilusão de muitos, sem se deixar seduzir; capazes de acolher as desilusões, sem desesperar-se nem precipitar-se na amargura; capazes de tocar a desintegração alheia, sem se deixar dissolver e decompor na sua própria identidade”.
O Papa comentando, naquela ocasião, o Evangelho dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) disse: “É o mistério difícil das pessoas (...) que, após deixar-se iludir por outras propostas, consideram que a Igreja – a sua Jerusalém – nada mais possa lhes oferecer de significativo e importante. E, assim, seguem pelo caminho, sozinhos com a sua desilusão. Talvez a Igreja lhes apareça demasiado frágil; talvez demasiado longe de suas necessidades; talvez demasiado pobre para dar respostas às suas inquietações; talvez demasiado fria para com elas; talvez demasiado autorreferencial; talvez prisioneira da própria linguagem rígida. Talvez lhes pareça que o mundo fez da Igreja uma relíquia do passado, insuficiente para as novas questões; talvez a Igreja tenha respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta. O Fato é que hoje há muitos que são como os dois discípulos de Emaús”.
O Encontro pessoal com Jesus. Os discípulos de Emaús tiveram a graça de encontrar logo Jesus ressuscitado. Sua desilusão durou pouco tempo. Reconquistaram o ânimo e, cheios de alegria, se colocaram em movimento para ir ao encontro dos outros discípulos. Nestes nossos dias, o caminho da desilusão parece infindável. É necessário encontrar Jesus Ressuscitado para retornar à esperança, isto é, a Jesus e à Igreja.
A segunda nota dominante do magistério do Papa Francisco é o convite a encontrar Jesus Cristo, porque nele se encontra a alegria, a beleza e a paz que irresistivelmente cada um busca. Por Ele, os batizados podem adquirir fortaleza e coragem para sair ao encontro das pessoas feridas e, ao mesmo tempo, por Ele a solidão, a insensatez na maneira de viver e outras feridas podem encontrar a cura, o bálsamo que restitui esperança e alegria.
No n. 3 da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium ele afirma: “Convido todo cristão, em qualquer lugar e situação se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele. (...) Da alegria trazida pelo Senhor, ninguém é excluído”. E, no n. 8, ele afirma: “Somente graças a este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da autorreferencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro”. E, em seguida acrescenta: “Se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de comunicá-lo aos outros”? E, no n. 10, esclarece: “Na doação, a vida se fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento”.
No n. 75 da Evangelii Gaudium, depois de alertar que não podemos ignorar os problemas que se concentram nas cidades, ele lamenta: “O que poderia ser um precioso espaço de encontro e de solidariedade, transforma-se muitas vezes num lugar de retraimento e desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se mais para isolar e proteger do que para integrar e unir”. Logo em seguida reafirma o caminho que responde a esses desafios típicos do mundo moderno: o encontro com Jesus ressuscitado: “A proclamação do Evangelho será uma base para restabelecer a dignidade da vida humana nestes contextos, porque Jesus quer derramar, nas cidades, vida em abundância (cf. Jo 10,10)”. E, ainda, acrescenta: “O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho é o melhor remédio para os males urbanos”.
Para concluir, recordamos novamente os discípulos de Emaús: andavam pelo caminho como muitíssima gente hoje anda pela vida, lamentando-se dos males que acontecem, justificando assim sua retirada à vida privada, como animais que se retiram em suas tocas quando se sentem ameaçados. Faltava a eles (e a nós hoje) o olhar atento para reconhecer os sinais de Jesus Cristo Presente, de sua vitória sobre o mal e a morte. Ele estava caminhando junto com eles, mas eles não O reconheceram, a ponto de Jesus dizer-lhes: “Ó gente cega e de cabeça dura!” E lhes explicou as Escrituras. Depois partiu o pão e, então, O reconheceram. A experiência de comoção, o coração que lhes ardia no peito enquanto Ele falava, constituiu a confirmação de que era verdade o que estava acontecendo. E, imediatamente, colocaram-se em movimento, foram ao encontro dos amigos para anunciar-lhes: “Vimos o Senhor”.
A alternativa à vida que se perde em lamentações e queixas é uma fé viva que reconhece a presença do Ressuscitado. A pessoa, então se põe em movimento e testemunha o entusiasmo, comunica o fascínio que tomou conta dela, documenta a beleza, a alegria e a paz que se encontram em Cristo Jesus. Dessa maneira, a vida nova que vimos em Copacabana, espalha-se e se torna visível em nossos ambientes. O Papa Francisco escreveu uma longa Exortação Apostólica para nos convidar a esse passo, dizendo-nos que é possível, que vale a pena, que existe o que o nosso coração mais deseja e nós também podemos encontrar a Fonte da alegria, do significado, da companhia.
*O autor é Bispo de Camaçari (BA) e Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a vida e a Família da CNBB.
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