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Passos N.163, Outubro 2014

IGREJA - Aparecida do Norte

Romaria, metáfora da vida

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Nascem novas rotas de peregrinação ao Santuário de Aparecida. Caminhar é a ocasião de reaprender que tudo nos foi dado para o nosso bem e que é preciso aceitar fazer um caminho para se deixar educar

Num mundo secularizado e onde o catolicismo parece só perder força e número de fiéis, o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida é uma realidade diferenciada. Um dos maiores e mais importantes santuários marianos do mundo, localizado na região de Guaratinguetá, as margens do rio Paraíba, entre as serras do Mar e a Mantiqueira, a cada ano recebe mais visitas e ganha mais projeção nacional e internacional. Anualmente, mais de 11 milhões de romeiros visitam o santuário. As romarias, vindas de diversas partes do país, movimentam diariamente o local. O estacionamento com capacidade para 2.000 ônibus frequentemente está lotado. Três Papas estiveram lá: João Paulo II, no ano de 1980, Bento XVI, quando abriu a V Conferência Episcopal Latino-americana e do Caribe em maio de 2007, e Francisco, em 2013, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude.
O que atrai tantas pessoas a este lugar? De um lado, a força da devoção mariana e a graça objetiva que Nossa Senhora, enquanto intercessora, representa para a vida de cada fiel e de toda a Igreja. De outro, a força do próprio gesto de peregrinação, enquanto momento que nos ajuda a compreender o sentido de toda a nossa vida.
Poucas metáforas são tão fortes como a que compara a vida a uma grande viagem, na qual somos todos peregrinos em busca de nossa morada verdadeira, onde realmente poderemos encontrar nossa realização e repousar. Em nossas vidas nos movemos, estudamos, trabalhamos, encontramos pessoas e fazemos amigos, construímos famílias procurando alcançar metas que são como que etapas dessa grande viagem. De forma análoga, muitas culturas ao longo da história criaram peregrinações para locais sagrados, onde o viajante faz um trajeto geográfico que acompanha um percurso ascético e de conversão. O termo romaria tem origem na palavra Romeo, que significa peregrino de Roma, indicando assim imediatamente pela palavra o significado intrinsecamente católico da peregrinação. Assim, romaria é uma modalidade específica de peregrinação.

As origens da prática da romaria. A viagem pode indicar seja deslocamento de um lugar para outro, seja passagem do mundo corriqueiro para uma dimensão “outra” da vida, para o sagrado. Neste sentido, a peregrinação é um gesto expressivo daquele “movimento dos povos em busca de descobrir o mistério que está sob as aparências”, da exigência de uma “relação com o além que possibilite também a aventura do aquém” (Giussani, O senso religioso, Brasília, Ed. Universa, 2009, p. 202). No cristianismo, o objeto da veneração do peregrino, ou romeiro, não é apenas um lugar, um templo, mas uma Presença viva: Deus feito homem, Cristo, que de si mesmo disse: “Eu sou o Caminho”. A peregrinação, então, torna-se ocasião de identificação com a própria pessoa de Jesus; de afirmação da decisão de segui-Lo; e de memória dos primeiros seguidores: Maria; os Apóstolos, os Santos. Desde a Idade Média esta prática é corriqueira em todo o Ocidente cristão.
“Assim, o homem cristão – homo viator – o homem caminhante, segundo a maravilhosa expressão da cristandade medieval – tem consciência do fato de que a vida é uma caminhada, é ir rumo à própria meta, e de que a solução total está no fundo de todos os problemas e é obra de Deus, não mais nossa. Somos incapazes ante a inextinguível sede do nosso destino e da nossa meta, e só a potência de Deus pode nos completar. Mas a busca de uma completude sempre maior, a busca do melhor, tanto quanto possível, é esta a busca que caracteriza a cada instante a grandeza do cristão, caracteriza a cada instante o convite que nos faz a Igreja, e com isso a medida do nosso ser cristão. É, pois, um empenho sem limites e sem tréguas” (Giussani, Por que a Igreja, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2004, p. 271).

Caminhando para Aparecida. As peregrinações para a Aparecida tiveram, na tradição popular, frequentemente o sentido de “pagar uma promessa”, um gesto de agradecimento por uma graça recebida, ou “pedir uma graça” num momento de necessidade. Com o tempo, as romarias a Aparecida vêm ganhando cada vez mais o sentido de uma viagem ascética ou um gesto gratuito de gratidão e de afirmação da própria pertença à Igreja, por meio da devoção a Nossa Senhora, padroeira do Brasil.
Os meios para chegar a Aparecida também vão se tornando cada vez mais variados e criativos. As tradicionais excursões de ônibus ou as viagens de carro dividem espaço com romarias feitas a cavalo, motocicleta ou mesmo bicicleta. A viagem a pé também vai sendo difundida, inclusive com a criação de uma rota semelhante ao Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Desde 2003, uma associação sem fins lucrativos criou o Caminho da Fé, uma rota com 497 km, dos quais aproximadamente 300 km atravessando a Serra da Mantiqueira, partindo de Águas da Prata, em São Paulo, para chegar até Aparecida seguindo por estradas vicinais, trilhas, bosques e asfalto (ver mapa).
No final de junho deste ano, padre Julián de la Morena e doze amigos de Comunhão e Libertação da comunidade de São Paulo, entre os quais Daniela e seu marido Jorge Kim, e Rose, fizeram parte desta rota, saindo de Campos do Jordão e indo até Aparecida, em três dias de caminhada.
Quando um grupo de amigos se coloca a caminho, numa romaria, qual será seu primeiro impacto com a realidade? Nossos amigos apontam para três coisas: a companhia dos amigos; as dificuldades da caminhada – verdadeira metáfora que nos ajuda a compreender as dificuldades da vida; e a beleza da caminhada.
Rose lembra: “Não podia me deixar determinar pelos meus limites e isso só foi possível olhando para o meu grande desejo de ir e para a ajuda dos amigos. Tinha um medo enorme, medo de não conseguir, de decepcionar as pessoas. Mas a experiência de amizade foi enorme. Percebi que tem gente que acredita em mim mais do que eu mesma”. Kim também fez a experiência do cansaço e da dificuldade do caminho, mas para ele outra coisa ficou evidente: “O momento mais cansativo foi no final, o cansaço já alcançava as pernas e aqueles mais preparados iam muito à frente enquanto que os que sofriam mais ficavam bem pra trás e não se via a basílica, apesar de saber que estávamos muito mais próximos. Nesse momento refleti um pouco sobre a solidão da caminhada, pois ficávamos realmente com uma distância maior entre nós. A resposta sempre é pessoal, a companhia ajuda, mas não te carrega”.
Assim, a amizade e a solidão diante do Mistério não são aspectos conflitantes na experiência cristã. Aliás, como eles puderam ver na romaria, também na caminhada da vida percebemos que os dois aspectos se complementam. Sem a amizade dos irmãos, sem esta peregrinação do povo cristão pela história, a mensagem de Cristo não chegaria até nós. Sem o testemunho dos amigos, não teríamos aquela confiança inicial que nos permitiu iniciar a caminhada da fé. Mas, no momento da maturidade, quando o espaço e o tempo sagrados se aproximam, estamos sós diante de Deus – ainda que a memória da amizade continue a ser reforço e apoio na caminhada.
Foi nesta companhia dos amigos que eles fizeram também a experiência da beleza. Como diz Daniela: “Deus nos presenteou não só com a companhia uns dos outros, mas com dias belíssimos. Guardo na memória ainda, com muita clareza, como se estivesse acontecendo agora, aquele nascer e pôr do sol que vimos juntos. Naquele momento pensei: ‘Se Ele fez toda essa beleza e me fez também, como terá feito o meu coração? Acho que é por isso que o meu coração anseia tanto a beleza. Diante dessa beleza, como será o coração Daquele que fez tudo isso? ’. Essa caminhada, esse encontro com a beleza mostrou mais de mim mesma, de como sou feita. Era possível entender que a posição mais justa diante da realidade é a curiosidade. No início dos dias pensávamos no que Deus iria realizar, quais seriam as surpresas e isso nos fazia ter uma abertura que impedia que o cansaço e as dificuldades nos determinassem”.
Daniela e Rose explicaram também como a consciência da meta se refletiu em sua caminhada. “Como na vida, momentos que achamos que vamos desistir. Pés inchados, cansaço físico. Mas esses momentos são aqueles em que mais pedimos ajuda Àquele que nos faz caminhar, olhando o nosso Destino pedimos à Mãe que nos ajude a chegar”, lembra Rose. Daniela completa: “O sacrifício e o cansaço eram evidentes em muitas partes do caminho. Mas a companhia de um Outro, que te aponta, te chama a atenção, que te lembra o seu destino foram fundamentais. Quando chegamos aos pés de Nossa Senhora tudo para mim foi resgatado, foi como chegar em casa depois de um dia exaustivo de trabalho e sua mãe estivesse esperando com um sorriso e um grande abraço. Senti-me protegida, amada, leve e tranquila”.
Em síntese, como a vida de cada um deles se relacionou com a experiência que fizeram na peregrinação? “A peregrinação é um caminho muito semelhante ao caminho da vida”, observa Rose. “Nos momentos de escuridão só enxergamos as dificuldades, mas dando um passo atrás do outro percebemos que vamos nos aproximando do nosso Destino. A presença dos amigos é sempre muito importante, assim como momentos de silêncio e oração. O caminho é sempre maravilhoso”. “Lembrei muito das ocasiões de distração na vida e daquilo que julgamos ser importante no trabalho”, diz Kim. “Quando nos esquecemos do essencial é como se ficássemos olhando para as pedrinhas do chão na caminhada e perdêssemos toda a beleza. O Movimento me ajuda a olhar para algo que está além das minhas capacidades, ajuda a entender que preciso amar e ser amado. Assim como aconteceu na peregrinação, o Movimento não responde por mim, não tira a minha responsabilidade perante a minha vida, mas me ajuda a olhar para o meu Destino”.
“A vida é um caminho, um caminho de fé”, completa Daniela. “O Movimento é a ajuda para termos claro o nosso Destino. Como Aparecida, nos ajuda a olhar a beleza do caminho, ajuda nas horas do cansaço, da dureza. O Movimento é o rosto companheiro d’Ele para mim. Explicar uma experiência de Presença como essa que fizemos na peregrinação e que fazemos na vida não é fácil e qualquer tentativa de descrição é infinitamente menor do que aquilo que vivemos. Por isso, meu desejo é que todos possam ter a oportunidade de fazer essa experiência que eu fiz”.

A simplicidade e a pobreza. Na década de 1970, Elis Regina imortalizou uma canção de Renato Teixeira chamada justamente “Romaria”. A voz da intérprete e o fato de ter sido música de novela ajudaram seu sucesso, mas havia algo a mais. As pessoas se identificavam com aquele homem simples, cujo pai foi peão, a mãe solidão e os irmãos perderam-se na vida. Sua vida aparentemente cheia de lutas e infortúnios parece ser igual a de todos. Com simplicidade de coração, ele, que não tem nada e não sabe nem rezar, vem com humildade ao Santuário de Aparecida para pedir “paz dos desalentos”, trazendo a Nossa Senhora apenas “o seu olhar”.
Essa simplicidade faz ecoar as palavras de Dom Giussani, ao participar de uma peregrinação ao Santuário Mariano de Nossa Senhora das Neves, em 1989: “Uma peregrinação é um gesto grande e belíssimo porque é um símbolo da vida. A vida também, sem que a pessoa o deseje, sem que a pessoa sequer pense nisso, é um caminho, passo após passo, rumo ao destino que é Deus, Aquele que nos fez, Aquele que nos deu pai e mãe, e Aquele que nos espera ao final do nosso difícil caminho [...] Graças a Deus, para a peregrinação da vida rumo ao nosso destino, a personalidade precisa apenas de uma coisa, de uma coisa muito elementar, tanto assim que Jesus comparou quem a possui à criança: ‘Se não fores como crianças, não entrareis jamais’ (cf. Mt 18,3); e depois a comparou a quem não tem nada, ao pobre: ‘Bem-aventurados os pobres’ (Mt 5,3). É preciso, numa palavra, uma grande simplicidade de coração, que significa também pobreza de alma, pobreza de espírito. Uma grande simplicidade de coração. Nossa Senhora – basta olhar para ela – é realmente como o ‘tipo’ desse homem caminhante rumo a seu destino”.

SERVIÇO:
Para maiores informações sobre o caminho da fé, visite o site www.caminhodafe.com.br

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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