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Passos N.163, Outubro 2014

A GRANDE GUERRA/ 1914-1918

A dura guerra dos poetas

por Maurizio Vitali

Achavam que com as armas se poderia ficar livre da “imunda raça dos pacifistas” e gerar uma Itália mais forte. Por isso, uma elite de intelectuais desceu às trincheiras “dançando e cantando”. Mas o que encontraram? Terceiro (e último) capítulo da nossa viagem pelo primeiro conflito mundial

Nunca uma guerra foi tão desejada, invocada, esperada e imaginada como o conflito mundial de 1914-18. Não pelo povo italiano, católico, socialista ou apolítico, em grande parte camponês e analfabeto, mas pela elite de intelectuais, poetas e escritores, alguns deles já consagrados, como D´Annunzio, Marinetti, Papini, a maioria formada por jovens de vinte ou trinta anos de idade, quase todos arrolados como voluntários: Gadda, Ungaretti, Betti, Carlo e Giani Stuparich, Comisso, Lussu, Alvaro, Malaparte, Jahier, Rebora, Soffici, Monelli e outros, sem nos esquecermos de Saba (os limites da revista impedem que citemos muitos deles).
O intervencionismo teve variadas raízes culturais e políticas: a singular convergência de sindicalismo revolucionário e nacionalismo, cultivada por Enrico Corradini, ao qual se juntou, naquela fase, um intervencionismo chamado democrático; a fúria “movimentista” e modernizante dos futuristas de Filippo Tommaso Marinetti; o magnetismo mitológico, mitomaníaco e estetizante do mago Gabriele D`Annunzio. Invocavam a guerra para fazer terra arrasada da pequena “Italietta”, flácida e medíocre, e dos seus flácidos políticos, preguiçosos, emburrecidos e corruptos; para gerar uma Itália grande, com um lugar digno no mundo.
No romance La patria lontana, de Corradini, a Itália proletária passa da invenção poética de Pascoli ao programa político. Em La Battaglia di Tripoli, Marinetti lança na cara da “imunda raça dos pacifistas” (católicos e socialistas) o seu vitalista e lúdico “vamos à guerra cantando e dançando”; D`Annunzio define o governo como “ofegante lambedor das imundas botas prussianas”. Bom clima!
Todavia, a grandeza à qual aspirava a maioria dos jovens escritores não era tanto exterior, mítica, estética e nem mesmo só política, mas antes de tudo pessoal, interior, espiritual e moral. Eles mostravam desejar para si algo de grande, que desse um impulso inspirador à vida, que a soerguesse do pântano da geral mediocridade comprometida e a tornasse mais digna, luminosa e plena de significado. Percebiam a necessidade de um evento extraordinário, de uma força sobre-humana e rompedora, capaz de provocar esse impulso inspirador... e o identificaram na guerra. Piero Jahier – para dar apenas um exemplo – estava sumamente preocupado em salvar a própria vida e a do povo da alienação burocrática, satirizada em grande estilo no romance Resultanze in merito alla vita e al carattere di Gino Bianchi; a guerra é vista como “a última esperança de ser homem / neste momento” (In questo momento).

A realidade da dor. A guerra imaginada transforma-se na guerra vivida. Trincheira, lodo, sangue, pedreiras a serem escaladas e gelo de inverno; assaltos temerários e paralisações extenuantes, fome, botas rasgadas, generais incompetentes, e conhaque, muito conhaque (tipo dopping dos pobres); a coragem, mas também o medo; o senso de responsabilidade, mas também a diversão; os atos de solidariedade até ao heroísmo e a bestialidade egoísta.
Para os jovens entusiastas do intervencionismo, o impacto foi poderoso e crucial e impôs a passagem da abstração à realidade, da ideia à experiência. Para alguns, a trajetória culminou na conversão à fé: Giovanni Papini, imediatamente, como testemunha a sua Vita di Cristo (1921); Clemente Rebora, uma década depois, com a escolha do sacerdócio. De qualquer modo, representou para todos uma mudança profunda de posição humana: mais observação e menos teoria; nada de fé nos magníficos e progressivos destinos e mais atenção a todos os aspectos concretos da existência pessoal e coletiva, impregnada de vontade de bem e vontade de mal, maior ponderação nos juízos, percepção nova e não retórica do povo e da nação, redimensionamento da pretensão de força... Não por acaso, as obras sobre a guerra são todas “operações-verdade”: não pretendem demonstrar ou convencer, relatam os fatos e as emoções no momento em que acontecem ou que a memória gravou. Desvia-se dessa rota apenas Marinetti: a sua guerra, relatada em L´alcova d´acciaio, não conhece o barro, nem o sangue, nem o penoso e lento caminhar da infantaria, mas só o brilho do metal e a embriaguez da velocidade do invulnerável blindado- -alcova, onde faz amor com a Pátria. Mas é o único. Até D´Annunzio, cego vidente em Notturno, deixa aflorar, sem rebuscamento, a realidade da dor, talvez porque ele próprio passou pela experiência da perda de um olho num incidente de voo (1916).
Nua, atroz e física é a realidade esculpida na poesia A un compagno, de 1917, de Corrado Alvaro (“me sepultaram na companhia / de carne de muitas mães”); a repulsa da guerra perpassa todo o seu romance Vent´anni (1930).

“Ócio e sangue”. Un anno sull´altopiano, de Emilio Lussu, desvela a verdade de uma guerra que é “ócio e sangue”, “barro e conhaque”, absurdos ataques a trincheiras indevassáveis, determinados por comandos incompetentes, convencidos de suprir com o heroísmo alheio a ausência de meios e estratégias. “Eu só relatei – escreve Lussu – aquilo que vi e que mais me impressionou. Não apelei para a imaginação, mas à memória”.
Outra conhecidíssima operação verdade é o Giornale di guerra e di prigionia, de Carlo Emilio Gadda, intenso diário em tempo real, no qual a atenta observação da realidade (há também desenhos e esboços) e dos eventos cruza com a aguda observação do próprio mal-estar interior, da inata tristeza e desilusão por uma guerra que resultou, ao contrário da realização de um sonho, na sua falência. Foi levado ao fronte pela necessidade de dar um sentido à própria existência com algo grande, realizado por dedicação a um tema ideal, a Pátria. No entanto, não teve a oportunidade de participar de ações bélicas marcantes e, com a humilhação de Caporetto, acabou prisioneiro na Alemanha.

O trabalho do fuzil. O desejo de conservar a lembrança das experiências populares de solidariedade permeia Con me e con gli alpini, de Piero Jahier. É uma narrativa de encontros entre recrutas, de fraternidade entre alpinos, que compartilharam a sorte e reanimaram os valores da vida dos humildes e dos camponeses. “Esta é uma guerra que dá continuidade à nossa vida de povo pobre e bom. É um trabalho que dá continuidade ao da pá: o trabalho do fuzil. Se não vai nos ajudar, ajudará aos nossos filhos”.
Singularmente, essa memória do povo está preservada sobretudo nas obras de escritores e poetas para os quais a travessia da guerra imaginada para a guerra vivida despertou um percurso de descoberta ou de redescoberta da fé cristã. Em Rivolta dei santi maledetti. Viva Caporetto, Curzio Malaparte confia: “Este é o livro de um homem... que entrou, como voluntário, no círculo da guerra, de cabeça baixa, blasfemando (não contra Deus), e que dela saiu, no último dia, bendizendo a Deus, de cabeça inclinada..., que desfolhou sua complexa mentalidade até reduzi-la ao mais simples botão, para poder compreender os humildes e os primitivos com os quais repartia o pão e dividia os pertences”.
Clemente Rebora, em Podgora, como subtenente, foi encarregado da explosão de um obus e sofreu um forte choque. Foi mandado de volta para casa com este diagnóstico: “Mania do eterno” (sic!). Em suas poesias e cartas, vê-se a tensão fortíssima entre um coração empedernido pela bestialidade da tragédia e um coração de amoroso compartilhamento do homem lançado ali, entre “lodo e sangue”, para citar palavras do Viatico; aí se vê a ânsia insuprimível da salvação e a consciência de que ela não pode vir da mão do homem: “Uma noite, depois de uma onda de beijos, / se voltar for possível; / sussurra-lhe que nada do mundo / redimirá o que se perdeu / de nós, os putrefatos daqui” (Voce di vedetta morta).
Célebres são as poesias líricas de Giuseppe Ungaretti, nas quais cada palavra aponta direto para o essencial e adquire valor universal: envolvimento na realidade quotidiana, mesmo a atroz: “Uma noitada inteira / jogado próximo / a um companheiro / massacrado” (Veglia); solidariedade humana beirando a fraternidade: “De que regimento sois, irmãos?” (Fratelli); abraço ao destino dos companheiros vivos e mortos: “no coração / não falta nenhuma cruz” (San Martino del Carso); a consciência de uma radical dependência: “Somos como / as folhas das árvores / no outono” (Soldati); o reconhecimento de uma salvação impensável presente: “De repente / eleva-se sobre os escombros/ o límpido estupor / da imensidão” (Vanità). Assim, a primeira luz do dia sobre aquela planura desolada de barro e sangue e pedreiras e buracos das bombas é como que o sinal e a certificação de um destino bom, de uma realização total: “Me ilumina a imensidão” (Mattina). Mas isso é um milagre. Ou melhor: o milagre no cume de uma caminhada.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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