O Papa Francisco fez uma intervenção na sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências no dia 27 de Outubro. Qual é a relação entre evolução e criação? E qual é a tarefa do cientista? Porque a liberdade implica uma “vertiginosa responsabilidade”
São límpidas e libertadoras as palavras que Papa Francisco dirigiu ontem à sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências, reunida nestes dias para discutir sobre o tema “A evolução do conceito de natureza”. A temática subjacente é das mais delicadas e fascinantes, a saber, a relação entre Criação e evolução. Com um toque de sábia ironia o Papa convidou primeiramente a nos libertar de uma imagem de algum modo sempre latente no pensamento comum quando se fala do ato da criação narrado pelo livro do Gênesis: “Corremos o risco de imaginar que Deus foi um mago, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo”. E depois insistiu dizendo que Deus não é um “demiurgo” que age sobre um “caos, que deve a sua origem a outrem”. Pelo contrário, Ele é Aquele que “criou os seres e deixou que se desenvolvessem segundo as leis internas que Ele mesmo inscreveu em cada um, para que progredissem e chegassem à própria plenitude”.
É importante não perder o alcance destas palavras. O Criador não é um ser no meio de outros seres, dotado de poderes especiais (não é um mágico, justamente), ao invés Ele é a própria fonte do ser. Tudo o que existe tem nele sua raiz última. Desse modo faz parte da criação a capacidade das coisas naturais de evoluírem no tempo, de cumprirem a própria natureza. O devir das coisas, a evolução do universo físico é uma história que a ciência lentamente tenta decifrar, um conto extraordinário que se desdobra no tempo. Mas mesmo o tempo, como dizia Santo Agostinho já no IV século, é criatura de Deus.
Evolução e criação. Não existe um instante do tempo que não seja criado por Ele. Assim como suas são as leis da natureza, aquelas misteriosíssimas “leis internas que Ele mesmo deu a cada ser”, em virtude das quais o universo físico mudou no tempo segundo uma evidente direção de sempre maior complexidade e riqueza, para que as coisas “progredissem e chegassem à própria plenitude”.
Portanto, não há contradição entre criação e evolução, como já haviam esclarecido São João Paulo II e Bento XVI; não há conflitos entre a lei física que “explica” cientificamente certos fenômenos e o fato de que aqueles fenômenos (assim como aquela lei que os explica) são criados: “A evolução na natureza não se opõe à noção de Criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem”, disse numa esplêndida síntese o Papa Francisco. Então, cada instante da história cósmica assume seu humilde e alto significado: “A criação foi em frente por séculos e milênios, até se tornar aquela que hoje conhecemos”. E, com efeito, são realmente muitos os milênios daquela história, visto que a idade do universo é medida em 13,8 bilhões de anos! Mas, como disse Francisco numa recente homilia antecipando estes temas, Ele é “o Senhor da história” e também da “paciência”.
Existe, pois, uma necessária distinção entre a criatura e o Criador, um distanciamento que, porém, não é de modo nenhum repulsa, mas é, antes, a condição do abraço: “Ele deu a autonomia aos seres do universo, assegurando ao mesmo tempo a sua presença contínua”. Coincidem essa “autonomia” que Deus deixa à criatura e o dom de sua presença, cheia de anseio pelo destino e o cumprimento de tudo. Como sugeriu Dante, a relação de Deus com a sua criação é um olhar amoroso e incansável, Ele “ama tanto a sua obra preza que de si mesmo a faz comparte”. É como uma mãe que observa com discrição o seu filho, doa-lhe continuamente a própria presença, ama o seu destino, deseja para ele todo o bem possível, mas a ele não se substitui.
Inteligência e liberdade. Se o Criador “dá a existência a todos os seres” – às pedras e às estrelas, às flores e aos animais e a cada momento do tempo da história do universo – Ele dá o ser também à nossa pobre existência neste instante. E, ao dar-nos o respiro e a vida física, , dá-nos também aquele desejo de amar e aquela sede inextinguível de conhecer, que residem no coração de todo homem: “Quando, no sexto dia da narração do Gênesis, chega a criação do homem, Deus confere ao ser humano outra autonomia, uma autonomia diferente daquela da natureza, que é a liberdade”. E, com efeito, a liberdade nos traz outra autonomia porque nos desprende das leis de natureza, ainda que a estas sejamos submetidos enquanto seres corporais, porque, diferentemente das pedras e das estrelas, não somos determinados somente por elas.
O milagre do enxerto da liberdade no universo por meio da criatura humana, significa também uma grande, vertiginosa responsabilidade. Ao criar o ser humano livre, Deus “torna-o responsável da criação, também para que domine a Criação e a desenvolva, e assim até o fim dos tempos”. O cientista, particularmente, é chamado a “se interrogar sobre o porvir da humanidade e da terra” e a “edificar um mundo humano para todos os seres humanos, e não para um grupo ou classe de privilegiados”.
Em conclusão, somos convidados a cooperar com a criação, para o bem da pessoa humana, sempre abertos a descobrir novos tesouros que o Mistério colocou nas dobras do mundo que nos doou. Papa Francisco, de fato, encorajou os cientistas a serem impelidos pela “confiança de que, nos seus mecanismos evolutivos, a natureza esconde potencialidades que compete à inteligência e à liberdade descobrir e pôr em prática para alcançar o desenvolvimento que se encontra no desígnio do Criador”. Difícil imaginar uma tarefa mais fascinante do que esta.
(Texto publicado no dia 28/10/2014 no site www.ilsussidiario.net)
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