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Passos N.169, Maio 2015

DIÁLOGO

O meu amigo Ayoub e o bem que avança

por Cristina Rossi

Culturas e crenças diversas. A moda. O vazio... Mas o que acontece quando, entre os alunos, a gente se encontra com um deles? O relato de uma professora italiana

Basta atravessar o portão da minha escola para receber o golpe desse nada contagioso que se manifesta como raiva, violência instintiva, rejeição, ou como muda resignação e fuga. No entanto, por entre as pregas do momento sempre, sempre, predomina a inesperada fome de um sentido e de uma grandeza. Alguém poderá captá-la, ali, naquele preciso instante em que emerge?
Os meus alunos são, na maioria, estrangeiros do norte da África, da Índia, da Ucrânia e Rússia, da América do Sul, da Turquia... Uma impressionante mistura de povos. Quando a gente os vê espremidos nas escadas, nessa folclórica e variada procissão, não deixa de se perguntar o que os coloca juntos, o que eles têm em comum e permite que dialoguem. Se acontece de ouvirmos uma conversa entre eles, descobre- -se que o terreno comum pelo qual se “entendem” tem principalmente um nome: “a moda”. É isso que vêm buscar de todas as partes do mundo? Um cenário desolador. Um processo inexorável e irrevogável... A não ser que aconteça um encontro com um deles, e então tem início uma história surpreendente.
Foi o que aconteceu com Ayoub, um estudante marroquino, reservado e com um olhar curioso e melancólico. Um dia repentinamente coloca no tema do seu trabalho escolar, “Carta a um desempregado”, uma acusação terrível contra o seu pai. Compreensível rebelião de um adolescente que está à procura de si mesmo. Cruzo com ele, casualmente, entre as máquinas de café, e o interpelo a respeito desse fatídico tema. Depois de um instante de embaraço, me pergunta: “Mas por que, professora, a gente precisa sofrer?”. Eu respondo que não sei, mas que uma coisa eu sei: que todo sofrimento prepara um bem maior e lhe ofereço a minha amizade.
Começa assim uma história que, a partir desse dia, não se interrompeu mais. Um desafio e uma verificação: para mim, do meu ser católica; para ele, do seu ser muçulmano, inquieto e que está sempre procurando. Lemos juntos Giussani, vivemos juntos vários momentos da vida da comunidade dos colegiais de CL, a aventura da conclusão do ensino médio.

O golpe imprevisto. Um dia, alguns anos depois de terminar o seu curso, chega até mim um telefonema: é ele, que me pergunta por que não abrimos uma escola para jovens marroquinos na Itália. É o que lhes falta, uma educação. Quando pergunto no que exatamente ele está pensando, me diz que quer educá-los para não terem medo das próprias perguntas, como fazíamos na classe durante as aulas. Encontros, reuniões, diálogos infinitos.
No curso de outro telefonema, me pede para rezar a Dom Giussani para que possa encontrar um emprego. Emprego ele encontrará uns dois, mas me diz que não quer renunciar às minhas orações. E com a oração por ele, aos poucos o meu olhar se amplia para toda a realidade do Marrocos e do mundo muçulmano, ao qual agora estou inexoravelmente ligada.
Eis agora o último fato crucial através do qual o nosso diálogo teve que se confrontar de novo com o mistério do sofrimento e da morte. A “perda” dramática da coisa mais bonita que a vida lhe deu, a sua namorada. Uma moça afetuosa e, ao mesmo tempo, forte, sincera e autenticamente religiosa, de fé muçulmana. Com ela, ele havia aberto uma janela para a hipótese de Deus, depois de uma fortíssima crise causada pelas perguntas sem resposta sobre o fundamentalismo e o terrorismo islâmicos. A moça ficou doente repentinamente, e depois de um calvário de alguns meses, morreu.
Justo nos dias em que, em Paris, se consuma a tragédia do ataque terrorista aos chargistas do jornal Charlie Hebdo, estou compartilhando com meu jovem amigo, todos os dias, o drama da morte. Momentos muito intensos, horas feitas mais de silêncio do que de palavras, no parque, no hall do hospital, diante do setor de reanimação. Espera e silêncio; olhares. No seu rosto eu vi tanto a dureza de quem se revolta e rejeita, como a dócil aceitação, como a pergunta massacrante de um porquê. Estando com Ayoub, conheci todo o grupo dos seus amigos, dos familiares da garota, um mundo aparentemente anos-luz distante do meu.
Um dia, fomos com ele ao encontro da sua mãe. Vejo-me de repente mergulhada num outro mundo: mulheres cobertas com véu, sentadas em torno de mesinhas cheias de alimentos tradicionais, falam em árabe e não nos entendemos. Trocamos olhares e elas enchem o meu prato de comida, como sinal de acolhimento. No impacto de estar num mundo que não é o seu, impõe- -se uma límpida evidência: para além de qualquer diferença, o homem é homem, a dor é dor. Num diálogo com a mãe, do qual capto alguns fragmentos, emerge toda a obsessiva exigência de uma explicação, a incansável busca do momento em que as coisas pioraram, o que deixou de ser feito, o que não foi entendido, como seria se tivessem agido de maneira diferente, e depois o golpe da afirmação: “Mas a nossa religião diz que era o destino”. E com Ayoub nos questionamos, confrontamos a nossa experiência: o que o destino tem a ver com a minha exigência de um sentido? Gente simples, com dignidade, que sabe agradecer, mas não se vende.

Como um filme. No dia das exéquias na praça do povoado, o corpo estava sob uma tenda, e apareceu uma multidão variada oferecendo a última saudação. Uma dor massacrante, expressa pelas mulheres com um canto muito triste. Eu estava ali, ao lado de Ayoub, com alguns amigos. Eu tinha levado comigo algumas cópias do canto O desígnio, como sinal de amizade. Leio- -o para a mãe, pergunto-lhe se ficaria contente se nós o cantássemos. Ela aprova e me encaminha para o pai; o pai diz que é belo e me encaminha para o Imã. Leio-o para ele, que aprova mas diz que não podemos cantá-lo. Ele vai traduzi-lo para o árabe durante a prece. Eu não sei se ele leu ou não, só sei que no final da cerimônia todos olhavam para mim satisfeitos. Naquele momento era evidente a necessidade de uma palavra verdadeira que explicasse, de uma sincera partilha. Dentro de tudo isso, o fato mais grandioso é o meu amigo Ayoub, a lealdade com que está enfrentando talvez a maior dor da sua vida. Antes da morte da sua namorada, havia dito que estava disposto a tudo para que ela se salvasse, pedira a todos que rezassem por ela, e aos amigos havia dito que se Deus não o ouvisse, ele lhe daria as costas. Deus a levou, mas Ayoub não lhe deu as costas. E o seu rosto tem um quê de radiante. Numa mensagem me escreve: “Quanto mais olho e penso na minha vida, mais a vejo como um filme, ou melhor, um desígnio complicadíssimo, mas bem arquitetado. Mas embora estando consciente disso, eu me surpreendo sempre e cada vez é uma descoberta e uma lembrança de que fomos feitos por um Outro. E no meu desígnio Deus foi misericordioso ao me dar tantos amigos, que me querem bem gratuitamente. De fato, sempre me pergunto se mereço toda essa amizade verdadeira”. Um dia, pensando nele e na nossa grande amizade, em que cada um é o que é, sem falsidades, me vem o desejo de convidá-lo para uma audiência com o Papa. Não me pareceu nada estranho que fôssemos juntos até lá. A resposta dele, como sempre, me desarmou: “Vou com prazer. O que é verdadeiro para você é verdadeiro para mim”. Graças a Ayoub, descobri duas coisas decisivas: podemos ser radicalmente companheiros enquanto homens (não enquanto temos dois braços e duas pernas, mas enquanto o problema homem continua a queimar e nos interpelar); abrir-se para o outro em sua diversidade nos restitui como Presença o que lhe foi dado encontrar e crer. No cenário desolador do nada que se propaga, acontecem encontros e o humano desperta, e o que parecia uma mecânica sucessão de momentos vazios se torna uma história, um bem que avança, uma esperança possível.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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