Hildebrando Lima, um dos maiores escultores de obras religiosas do Brasil, conta seu percurso de abandonar fama e fortuna pelo real. Aos quase, 70 anos uma descoberta contínua na aventura da vida
As mãos definitivamente não são as de Deus. O material só à vezes é barro. Mas há muitos que garantem que suas obras são, sim, imagem e semelhança do Pai. Às vésperas da inauguração, visitamos o novo ateliê do artista plástico Hildebrando Lima, em Vargem Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A entrevista chegou a ser adiada para que o local saísse do estado de completo caos que as obras costumam provocar. Em vão. Quando cheguei ao prédio amarelo de dois andares, logo depois do Santuário de Nossa Senhora de Schoesntatt – referência que ele faz questão de dar por devoção e orgulho, já que lá está uma de suas vias sacras –, a única coisa perto de estar terminada era um lavabo. Interpreto como uma referência ao Gênesis, quando do caos nasceu a ordem. Uma coisa era certa: também ali as criações estavam ganhando vida.
Natural de Feira de Santana/BA, Hildebrando diz que nem sempre teve certeza de que queria ser artista: “Cheguei a começar um curso de computação porque passei em primeiro lugar no vestibular e ganhei uma bolsa”. É à mãe que ele atribui sua carreira: “Digo que sou artista porque minha mãe elogiou o primeiro desenho. Como é importante para o ser humano alguém que acredite nele”. Por isso, mesmo antes da Faculdade Belas Artes na UFRJ, ainda adolescente, ele arriscou os primeiros traços fazendo alegorias para Escolas de Samba. Mais de quarenta anos depois e prestes a completar setenta, o escultor diz que a única certeza que sempre teve é que só havia uma saída pra escapar da fome que passou na infância: o estudo.
O filho da Dona Maria do Carmo é o primogênito de “Quantos irmãos?”, pergunto: “Viemos eu e mais cinco pro Rio... tem mais cinco por parte do pai na Bahia, mais dois do biológico... Catorze... Quinze irmãos”. Da miséria no interior da Bahia, ele conquistou fortuna no Rio fazendo obras de decoração para políticos e artistas: “Só na TV eu vi umas três vezes um conjunto de cavalos que fiz para o Wando. Ele era muito generoso, mostrava sempre que tinha reportagem lá”. Rapidamente, Hildebrando conquistou fama e chegou a desenvolver a sua própria técnica: o resimármore, uma combinação de resina e mármore que garante maior flexibilidade na hora de esboçar os detalhes da imagem. Fez peças para o ator Francisco Cuoco, para o comediante Chico Anysio, para a apresentadora Márcia Peltier e descobriu a infelicidade: “Eu não tinha sábado nem domingo. Meus parentes me olhavam e só viam um cifrão. Eu, que estava todo voltado para uma glória – humana – conquistei. Mas percebi que a verdadeira felicidade só existe participando da Glória do Pai”.
Como todo homem novo, a vida de Hildebrando mudou por causa do Cristo pregado na cruz: “A primeira encomenda que eu recebi de uma escultura religiosa foi para fazer o Crucificado, em bronze, da paróquia Imaculada Conceição, no Recreio”. Na época, vinte anos atrás, o pedido veio do então pároco Edney Gouvêa, hoje, Bispo de Nova Friburgo. Num gesto bem próprio dela, podemos dizer que Nossa Senhora – como sempre, intercessora – conduziu sutilmente mais este filho para o caminho de Deus.
Pergunto então se foi essa obra a que mais marcou a sua vida e ele me responde categoricamente: “Não. O que realmente me abriu os olhos foi o livro do italiano Raniero Cantalamessa. É o padre que prega para os Papas”. O livro – pequeno – é um comentário sobre a Carta de São Paulo aos Romanos. “Ele me transformou”, sorri. Em A vida sob o senhorio de Cristo, o frei capuchinho diz que o mais importante da Carta não é o que é dito, mas a ordem em que é dita: “O Apóstolo não trata antes dos ‘deveres’ cristãos e depois da ‘graça’; como se esta fosse uma consequência. Pelo contrário, trata primeiro da graça e, depois, dos deveres que dela derivam e que por ela se tornam possíveis”. Finalmente o Cristo o havia despertado para o real.
Depois dessa revelação, ele conta que ficou chocado ao descobrir que muitas pessoas passam anos se alimentando exclusivamente da eucaristia: “Era a prova de que a aquilo era mesmo o Corpo de Cristo e eu só conseguia pensar: Por que isso não é manchete todo dia!?”. Aumentando o tom, ele move os braços com energia ao falar do iminente feriado: “Eu fico muito espantado que no dia de Corpus Christi não se faça um escândalo do bem”.
Mas Hildebrando nem sempre foi assim. “Eu fui muito religioso na minha juventude. Conheci minha mulher no grupo de jovens em Oswaldo Cruz, mas depois me afastei”. Foi viver as coisas do mundo, como ele mesmo diz com bom humor, e explica que isso incluiu experiências no esoterismo e no espiritismo: “A gente vai buscando, né? Procurei muito porque sempre fui um apaixonado pela verdade”. Mas houve um momento – conta – em que ele percebeu que tinha aprendido e lido muito, mas não sentia que estava fazendo nada de útil com tudo aquilo: “A quem muito é dado, muito será cobrado”.
Foi quando ele começou a fazer obras para evangelizar. “Depois da primeira, não quis parar mais. Hoje, esse é o meu sonho, ficar aqui meditando sobre os mistérios e tentando colocar tudo em obra de arte”. Ele acredita que as suas obras tocam e ajudam na conversão das pessoas. Mas essa decisão não foi fácil. “Quando transitei da decoração para as obras religiosas, deixei de pegar muitas encomendas, aí, não teve jeito, o padrão de vida caiu”. Ele conta que chegou a passar semanas em uma única obra: “E aí veio a época em que as coisas simplesmente não aconteciam”. Ele está falando de uma exposição de Santas Ceias que chegou a planejar com a apresentadora Xuxa e o padre Marcelo Rossi, mas que nunca saiu do papel: “Foi aí que eu aprendi a didática e o tempo de Deus”. Com a maturidade, Hildebrando diz que percebeu que vivia a ilusão de fazer as coisas. “A gente só participa de algo maior. A obra mais importante não é no outro, é em você mesmo”.
O amadurecimento do homem. Durante toda a entrevista ele me mostra catálogos com fotos, rascunhos e moldes de várias esculturas que agora estão espalhadas por todo o País e até em Portugal. Mas o momento em que seus olhos mais brilham é quando ele fala da estátua de Nhá Xica, que hoje está na entrada do Santuário da Beata em Baependi, interior de Minas Gerais. O escultor foi indicado pela mulher de Paulo Coelho, a artista plástica Christina Oiticica, para o projeto. O projeto era ambicioso: Hildebrando só contou com a ajuda de uma foto, a única existente de mulata analfabeta e filha de ex-escravos. Foram mais de dois anos até a inauguração: “Pude sentir a força da santidade dela em várias ocasiões”. Ele está falando do acidente que envolveu a parte mais delicada da escultura, um cordão de rosas aos pés da imagem “Quis representar o cheiro das flores que as pessoas sentiram quando os restos mortais dela foram exumados”. Mas quando tudo estava quase pronto, as flores deram um problema e ele teve que fazer tudo de novo, uma por uma. “Era como se ela estivesse me dizendo: ‘Eu quero as rosas assim’. Eu sinto que foi ela que conduziu”.
“Existe diferença entre o belo de uma escultura de decoração e o de uma evangelizadora?”, provoco, e ele me responde: “O belo existe, mas ele tem que estar colocado para atrair as pessoas”. No fundo, ele acha que não, e diz que o que importa é saber que tudo foi feito para um caminho de bem: “Se as coisas não tiverem uma hierarquia, se algumas forem supervalorizadas, elas servem só como um desvio”. Lembrando sua época de professor no Arsenal de Marinha, ele me provoca de volta: “Quem Jesus escolheu para evangelizar com Ele? Pescadores. Pescadores usam o que para atrair os peixes? Iscas. A beleza é isso, é só a isca”.
Logo depois, ele muda o tom para criticar o que ele chama de uma sociedade que prega, cada vez mais, o engrandecimento do eu: “Pra mim o maior problema é que hoje você tem que ser o melhor, tem que tirar 10.” Reclama ainda que embora esse discurso seja pregado, isso só cria uma fantasia na cabeça das pessoas: “Hoje, todo mundo está preocupado em se distrair, se divertir. Claro... Como as pessoas acham que o céu não existe, agem como se só pudessem viver essa vida na terra e tivessem que fazer o máximo dela”. E termina dizendo que demorou, mas hoje ele entende que só existe um único acesso ao Pai: Jesus.
Foi durante esse amadurecimento espiritual que ele descobriu o Movimento Comunhão e Libertação: “Um amigo que toca na Santa Luzia – Beto – me falou do Movimento há um ano”. De lá pra cá, o escultor comprou os três livros do percurso de Dom Giussani e chegou a participar da Escola de Comunidade. Agora se diz cada vez mais determinado: “Comecei a achar que o CL tem tudo a ver com essa minha identificação com a eucaristia e com o Corpus Christi. É que o Movimento é todo baseado na experiência e eu acho que esse é o caminho: as coisas na vida têm que ser vividas”.
A conversa é interrompida quando o escultor para pra me mostrar uma edição antiga da Passos. Apontando, ele conta: “Eu estava lendo a revista e levei o maior susto! Falei: Ei, essa obra é minha!”, e me mostra a foto de uma igreja lotada. A matéria era sobre a inauguração do Santuário de São Benedito, em Copacabana, na edição de setembro de 2009. “Eu fiz essa imagem de São Benedito há muito tempo para o padre Enrico. Eu não tinha ideia de que ele era CL”. O mundo fica mesmo pequeno quando nos vemos no meio desses caminhos cruzados pelo Cristo. Mas que bom é testemunhar, mais uma vez, que o Mistério nos procura a todos, nos fascina e nos envolve de um jeito todo único.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón