A dificuldade de “sair” do já sabido e o desafio do Papa. Nas suas intervenções durante a recente viagem ao Equador, Bolívia e Paraguai, há uma novidade para a qual abrir o coração (de Zenit.org, em 22 de julho)
Pensando nestes dias na viagem do Papa Francisco à América Latina, a primeira coisa que me vem à mente é que pareço estar diante de algo de novo. Explico-me melhor: para mudar é preciso ser um pouco visionário. Acostumados a viver num ritmo frenético, temos pouco tempo para levantar a cabeça, para olhar o céu, para fixar o horizonte. Desta forma se enfraquecem os estímulos para pensar, criar, imaginar. Vivemos sempre imersos no que sabemos, aplicando as categorias que já conhecemos e que nos dão certa segurança. Quando não temos tempo nem para olhar o além ou para “o outro”, é difícil sair do já sabido. Mas alguns homens podem ter “visões”. Penso que isso não seja só um problema de inteligência; por exemplo, às vezes acontece que se faça uma experiência de plenitude tão grande, que se percebe uma criatividade que não se imaginava. Acontece, então, que por certa “superabundância” de vida se libertem energias criativas que fazem pensar, criar, imaginar, ver algo que ainda não chegou. Penso que assim nasça o novo, penso que assim tenha nascido o mundo...
Fiz essa premissa porque me marcou o modo como o Papa fala de uma mudança necessária e urgente. Fala da mudança do homem e entra nos detalhes. Por exemplo, a respeito do modelo econômico atualmente seguido pelas sociedades mais desenvolvidas. É possível uma economia solidária em que o homem esteja no centro, e não o dinheiro? Soa como algo belo e desejável, mas acho que, para a maior parte de nós, seja considerado bastante utópico. Porém, de tanto ouvir falar desta hipótese, nasceram-me algumas perguntas: Quem disse que as empresas inevitavelmente devem ser cotadas em bolsa para crescer? Os parâmetros para medir a produtividade de uma empresa poderiam ser mudados? O que significa crescer para uma empresa? Tudo isso pode mudar? Podemos começar a pensar que seja possível?
Parece-me que o desafio que o Papa lança seja uma novidade grandiosa e real para nós. Também em relação a estas passagens dos seus discursos que me marcaram particularmente:
O melhor dos vinhos está por vir
E toda esta história começou porque “não tinham vinho”, e tudo se pôde fazer porque uma mulher – a Virgem Maria – esteve atenta, soube pôr nas mãos de Deus as suas preocupações e agiu com sensatez e coragem. Mas há um detalhe, não é menos significativo o dado final: saborearam o melhor dos vinhos. E esta é a boa nova: o melhor dos vinhos ainda não foi bebido, o mais gracioso, o mais profundo e o mais belo para a família ainda não chegou. [...] E o melhor dos vinhos ainda não veio, mesmo que todas as variáveis e estatísticas digam o contrário; o melhor vinho ainda não chegou para aqueles que hoje veem desmoronar-se tudo. Murmurai isto até acreditá-lo: o melhor vinho ainda não veio. Murmurai-o cada um no seu coração: o melhor vinho ainda não veio. E sussurrai-o aos desesperados ou aos que desistiram do amor: tende paciência, tende esperança, fazei como Maria, rezai, atuai, abri o coração, porque o melhor dos vinhos vai chegar. [...] Jesus sente-se inclinado a desperdiçar o melhor dos vinhos com aqueles que, por uma razão ou outra, sentem que já se lhes romperam todas as talhas (Homilia da missa pelas famílias, Parque dos Samanes, Guayaquil, Equador, Segunda-feira, 6 de julho de 2015).
Como se faz para dizer, neste contexto em que estamos vivendo, que o vinho melhor é o que ainda está por vir? E que a realidade mais amável é a que deve chegar? Não é que, se eu murmurar muitas vezes, acreditarei nisso magicamente; aqui se trata de fé, trata-se de crer em alguém que o diz de modo tão certo, que começa a fazer-me aceitar a possibilidade de que seja real aquilo que diz. Abrir o coração para crer em Alguém que tudo pode, como disse na visita ao Centro de Reabilitação na Bolívia: Porque uma pessoa, quando Jesus entra na sua vida, não fica detida no seu passado, mas começa a olhar o presente de outra forma, com outra esperança. A pessoa começa a ver com outros olhos a si mesma, a sua própria realidade. Não fica enclausurado no que aconteceu, mas é capaz de chorar e encontrar nisso a força para voltar a começar. E, se em determinados momentos nos sentimos tristes, estamos mal, abatidos, convido-vos a fixar o rosto de Jesus crucificado. No seu olhar, todos podemos encontrar espaço (Sexta-feira, 10 de julho de 2015).
Não te esqueças de que foste “pescado”
Não caiais no “alzheimer espiritual”; não percais a memória, especialmente a memória de onde eu fui tirado. Pensemos na cena de quando o profeta Samuel foi enviado para ungir o rei de Israel: vai a Belém, até à casa de um senhor chamado Jessé, que tem 7 ou 8 filhos – não sei bem –, e Deus lhe diz que entre esses filhos estará o rei. E, claro, ele os vê e diz: “Deve ser este”, porque o mais velho era alto, grande, bonito, bem presentado, parecia valente... E Deus lhe diz: “Não, não é esse”. O olhar de Deus é diferente daquele dos homens. E assim fez passar todos os filhos de Jessé e Deus lhe diz: “Não, não é”. E o profeta se encontra sem saber o que fazer; e em seguida pergunta a Jessé: “Então, não tens outro filho?”. E ele responde: ‘Sim, há o menor que está a cuidar das cabras e das ovelhas’. “Mande-o chamar”, e eis que vem o rapazinho, que devia ter entre 17 e 18 anos – não sei bem – e Deus lhe diz: “É este”. Tiraram-no do cuidado do rebanho. [...] Não vos esqueçais de onde fostes tirados. Não renegueis as raízes. (Encontro com o clero, os religiosos, as religiosas e os seminaristas, Santuário Nacional Mariano “El Quinche”, Equador, Quarta-feira, 8 de julho de 2015).
Onde é que fui tomado? Eu era como Davi, estava perdido em minhas coisas, e minha vida mudou por um encontro. Como é verdade que relembrar onde eu estava quando fui tomado me faz perceber muitas coisas que não aconteceram de maneira óbvia, e isso me faz ser menos presunçoso, me faz voltar a agradecer! Recoloca-nos numa relação.
Sou eu quem segue a Igreja
O mundo dos movimentos populares é uma realidade muito grande, em todo o mundo. Que é o que eu fiz? Dei-lhes a doutrina social da Igreja, o mesmo que eu faço com o mundo empresarial. Se ler o que eu disse aos movimentos populares, verá que se trata de um resumo da doutrina social da Igreja, mas aplicado à situação de tais movimentos. [...] e quando devo falar com o mundo empresarial, falo da mesma coisa, ou seja, o que a doutrina social da Igreja diz ao mundo empresarial. Por exemplo, na Encíclica Laudato si’ há uma parte que trata do bem comum e da dívida social da propriedade privada. Trata-se sempre de aplicar a doutrina social da Igreja. [...] Sou eu quem segue a Igreja aqui, pois simplesmente prego a doutrina social da Igreja para este movimento. Não é uma mão estendida a um inimigo, não é um fato político. Não. É um fato catequético (Conversa do Papa com os jornalistas na viagem de volta para Roma, 12 de julho de 2015).
Aqui uma única menção: também entendi, falando com muitos amigos, que não conhecemos a doutrina social da Igreja, e que então, neste período tão rico de desafios, será interessante aprofundá-la. E depois entendi mais que o Papa não está inventando uma nova teologia; aquilo que diz, o diz de modo pessoal, mas absolutamente dentro da linha da Igreja.
Neste período dramático em que se sente certo medo do futuro, o que todos buscamos é responder à pergunta: “como se faz para viver?” E quando se vê alguém que parece viver mais (e que faz viver mais), apesar das muitas análises sobre ele, pode ser uma hipótese razoável pôr-se a segui-lo, ou procurar segui-lo para entendê-lo. E, quase que por osmose, aquela esperança pode tornar-se minha. O homem de hoje precisa sentir um coração novo bater dentro do seu, e não pode acostumar-se a estar, no fundo, sozinho e amedrontado. “Sejais livres!”, disse o Papa recentemente. Podemos nos acostumar a muitas coisas, mesmo a estar sozinhos com nossas interpretações, sem um pai. Mas alguém diz que o melhor dos vinhos (para quem talvez se sinta como quem rompeu todas as talhas) está por vir!
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