Uma crônica da Assembleia Internacional de CL realizada em Cervino, na Itália, em agosto de 2015
“Um imprevisto é a única esperança”, dizia o poeta Eugenio Montale. Foram assim esses cinco dias em Cervino: dias imprevistos. Um encontro aos pés do monte Cervino, na Itália, que reuniu 450 pessoas, vindas de oitenta países para a Assembleia Internacional dos Responsáveis de CL. Pessoas que vivem essa experiência há anos; outros que encontraram o Movimento há pouco tempo e lhes foi dito “Venha”; e também convidados que vieram por causa de uma correspondência vislumbrada no olhar de um amigo. Faíscas de uma Presença que nos abraça.
Cantar no início do encontro Ó Vinde Espírito Criador é uma oração, para que “Ele realize aquilo pelo qual nos fez”, dentro da vida de todos os dias, dentro da história na qual estamos imersos. Porque “as circunstâncias pelas quais Deus nos faz passar são um fator essencial da nossa vocação, da missão à qual somos chamados”, disse Dom Giussani. É daí que Carrón parte. No fundo, todos esses dias passarão em torno desse convite. Ele sinaliza que o que marca a nossa circunstância histórica é o colapso das evidências. Também da fé, considerada óbvia. Deixa-se essa certeza de lado para se desviar para a ética e valores a serem defendidos. Então, de onde recomeçar? Que método Deus usou na história? Escolheu um homem, Abraão, para despertar um eu. Isso reacontece hoje. Escolhe alguém para alcançar os outros.
Mas nós acreditamos nisso? Percebemos a necessidade daquele olhar que Mateus recebeu de Cristo, como nos lembrou o Papa no dia 7 de março na Audiência com o Movimento? Só assim poderemos ser testemunhas de uma atração, de um fascínio. Isso, antes de mais nada, vale para cada um, aqui e agora. Não para o Movimento, não para os outros. É para si. O jogo está aberto. Em pauta, a vida em ação.
Do Brasil à Califórnia. O Mistério, quando se curva sobre nós, como aconteceu para Abraão, faz a pessoa brilhar. Tanto que os outros dizem: “O que aconteceu com você?”. As colocações da assembleia são esse olhar que carrega uma novidade. Nenhuma análise, apenas fatos. Bracco, do Rio de Janeiro, fala das crianças que faziam barulho durante a missa nas férias nacionais e de como padre Inácio as envolveu na celebração (ver carta do Rubem, p. 4). Em Londres, padre Pepe recebe um e-mail de uma senhora que pede para “pertencer” à paróquia. Vai encontrá- la: não é batizada, então por quê? “Trabalho como babá. Nestes anos, vi que as crianças da sua escola, da sua paróquia, são diferentes. Os pais também são. E eu quero isso para mim”.
Guido, em Los Angeles, através de uma obra social, dá trabalho a pessoas deficientes e a veteranos de guerra, entre elas uma senhora de 40 anos. Uma vida devastada pelo medo de tudo. Depois de um ano de trabalho com Guido, lhe diz: “Acordava às três da manhã e ficava enlouquecida com os pássaros cantando. Queria matá-los. Agora, ainda acordo às três, mas consigo amar até os pássaros que cantam. Vi alguém que despertou em mim a possibilidade de ser eu mesma. Agora o coração está vivo”. O medo foi vencido. Nenhuma análise sobre ela, apenas um olhar, uma vida que vive da certeza da fé.
No café com padre Heriberto, das Ilhas Maurício, falamos um pouco mais sobre o Movimento, pois é um recém- chegado. Ao final, exclama maravilhado: “Nunca vi um lugar assim, no qual eu posso ser eu mesmo”. Tarde com Wael Farouq, muçulmano egípcio, professor de Língua Árabe. Antes de mais nada, um amigo. Todos têm na memória os massacres cometidos pela ISIS em nome de Alá. E ele começa dizendo que um muçulmano não faz nada sem repetir: “Em nome de Alá, Pai misericordioso”. Mas isso também pode ser reduzido a pura forma, chegando a traduzir-se em violência. Fala do seu encontro com Paolo, um estudante italiano, nove anos atrás. “Encontrar o Movimento me fez ver e entender quem sou. Muitos muçulmanos, como eu, precisam de um olhar assim. Hoje estou aqui para contar essa experiência de amizade, de beleza, de verdade”.
Depois do jantar, Giorgio Vittadini fala sobre o Meeting de Rímini. Ele participou das 36 edições, e no último evento moderou 15 encontros. Poderia dizer: “Chega! Já dei o suficiente”, no entanto, há uma vivacidade enquanto fala dos convidados, mas, sobretudo, desse povo em ação, o verdadeiro construtor do Meeting. É um exemplo da “Igreja em saída” do Papa Francisco.
“O que eu não vejo?”. Depois dele, os testemunhos de Oliverio González, do México, que conhece o desespero por causa do pai sequestrado e morto e, depois, pela droga. Só uma companhia de amigos conseguiu fazê-lo se reerguer. Depois, a história do italiano Enrico Craighero, que falou sobre seus filhos gêmeos, nascidos com uma grave deficiência. Uma situação pesada. Numa noite, dando de comer a um deles, olha para a mulher e vê seus olhos felizes enquanto faz a mesma coisa. Nasce uma pergunta: “O que ela vê que eu não vejo?”. A realidade que “cheirava mal”, como lhe disse um escritor ateu, torna-se agradável. Para eles, e para quem os encontra.
Sexta de manhã. No palco, para apresentar o livro de Carrón, A beleza desarmada, estão: Pietro Modiano, presidente da SEA Aeroportos de Milão, Eugenio Mazzarella, professor de Filosofia em Nápoles, e Monica Maggioni, nova diretora da Radiotelevisione Italiana (RAI), que diz logo: “Estou aqui como Monica”. Porque nestes anos, de modo não usual, tornaram-se amigos.
Modiano, de esquerda, que antes tinha muitos precon ceitos em relação ao Movimento, relembra seu “casual” encontro. Esta experiência portadora de verdade, e ao mesmo tempo tão acolhedora, tornou-se uma hipótese fascinante para sua vida. Hoje que, para ele, todos os muros caíram – o comunista e o econômico – a verdadeira questão está no conflito entre poder e religiosidade.
Para Mazzarella, a beleza desarmada é a beleza que desarma aqueles a quem vai de encontro, é a fé em ação. Monica parte dessa zona cinza, como a define, na qual o eu é chamado a uma responsabilidade, é desafiado. Esta zona, o poder gostaria de eliminar, como viu em acontecimentos recentes, como o massacre de Charlie Hebdo, na França. E diz: “Todas as vezes que um fato desses acontecia, eu retomava o livro”. Não como um manual de instruções para sobreviver, mas como a indicação de um percurso “que eu devo fazer”. As palavras de Giussani se tornam carne através de encontros.
Carrón pede a palavra e deixa todos estarrecidos quando pede desculpas. Desculpa por todas as vezes que interpomos os nossos filtros a esta beleza que, através de cada um de nós, pode brilhar. De modo desarmante, aquela hora e meia tornou-se ocasião “para descobrir a verdadeira natureza daquilo que nos aconteceu”.
O seu tesouro. À tarde o teólogo espanhol Javier Prades fala sobre o testemunho: a verdade é um acontecimento e o testemunho é o método da sua comunicação. Fala da descoberta do valor cognitivo do testemunho, e das reduções que fazemos. Também dessa vez, nenhum intelectualismo, porque é uma atração, uma centelha, como disse Giussani, que faz surgir uma consciência nova da origem de si. É o que cada um viu no encontro com o cristianismo. Sobre essa atração, à noite falam Constatin Sigov, editor e filósofo ortodoxo, e Andrew Davison, pastor anglicano. Companheiros de caminho dentro da própria pertença.
No dia seguinte, o passeio pelas montanhas. Numa longa fila, as 450 pessoas caminham em silêncio. O cume se ergue sob um céu claro. Esse passeio é o paradigma da vida, disse padre Pino: há um caminho, uma meta e alguém para seguir. A missa é celebrada lá no alto. E depois, todos comem juntos o lanche e acompanhamos o coro, encantados. À noite, na tela projetam breves trechos de vídeos com padre Ibrahim, padre Pizzaballa, as irmãs trapistas na Síria, a pequena Myriam. São testemunhos dos cristãos do Oriente Médio. Último slide: “Dão a vida por aquilo que têm de mais caro. Qual é o seu tesouro?”.
Domingo de manhã, Carrón retoma aquilo que aconteceu diante dos olhos de todos, essa beleza que atrai porque é “esplendor da verdade”. Testemunhá-la é simplesmente comunicar a experiência de fé que fizemos: um Acontecimento que tornou-se companhia. Este é o desafio: o cristianismo é a atração que os levou ali e se fez presente durante esses dias. E poderá continuar interessante somente se pedirmos com pobreza de espírito para aderirmos. O jogo nunca termina.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón