O grande caminho de graça começa. O Ano Santo dedicado à Misericórdia é ainda mais urgente agora, após os atentados que feriram o mundo. Aqui, percorremos esta palavra “impossível” para o homem. A partir do convite do Papa Francisco, que nos abre para a única experiência mais poderosa do que o caos
É necessidade, “mais do que antes”. Esta foi a resposta de Dom Rino Fisichella, presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, a quem, logo após o massacre em Paris, perguntou-lhe se o Jubileu deveria ser cancelado. Um risco muito grande, para Roma e os fiéis. Muito medo pela ideia de concentrar tantas pessoas na cidade em que a Isis jura querer içar a sua bandeira. O Ano da Misericórdia, desejado pelo Papa Francisco, é “ainda mais urgente”, recordava o prelado que é o responsável pela organização.
Ela começa nos dias de hoje, com a abertura dupla da Porta Santa: a tradicional, de São Pedro, programada para 8 de dezembro, e aquela incomum da Catedral de Bangui, República Centro-Africana, que o Papa quis abrir no dia 29 de novembro, durante sua visita ao Continente negro. O encerramento está previsto para 20 de novembro de 2016, Solenidade de Cristo Rei. No meio, peregrinações a Roma, o Jubileu por categorias (os doentes, os jovens, os sacerdotes...), os gestos que caracterizam cada Ano Santo, desde sempre. Mas mesmo as Portas Santas abertas em cada diocese, para dar a todos os fiéis a oportunidade de viver o Ano lá onde se está, até na prisão, visto que o Papa quis dar dignidade de Porta Santa mesmo àquelas das celas. E uma infinidade de gestos e momentos em todas as periferias da Igreja, para ajudar a manter o olhar fixo em Cristo, o rosto da misericórdia, como o chamou o Papa na Misericordiae Vultus, a Bula de proclamação do Jubileu.
Ela saiu em 11 de abril, passando um pouco despercebida após os ritos da Semana Santa. E o anúncio do Ano Santo extraordinário era de um mês antes: os comentários e a surpresa já tinham passado. O resultado é que aquele texto, provavelmente, foi pouco lido. No entanto, vale a pena retomá-lo e enfatizar certos traços. Por que ao percorrê-lo, encontra-se uma riqueza sem limites.
A começar pelo motivo pelo qual o Papa pensou em tal gesto: “Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes”.
O pecado e o perdão. O objetivo, portanto, é o testemunho. E o ponto do qual nasce o testemunho é o “fixar o olhar na misericórdia”. Olhar para Ele e se dar conta do dom que é. É a urgência fundamental que o Papa percebe hoje, a mais importante. Coincide com a contribuição que nós, cristãos, podemos dar ao mundo. Ele decide a própria confiabilidade da fé, que “passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo”, como Francisco repete mais de uma vez: “É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia”.
É sempre assim, mais ainda quando o mal se torna escuridão, dor. Lembra isso em outra passagem dos primeiros parágrafos: “Perante a gravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do perdão. A misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado”. Impressiona reler isso hoje, porque indica um caminho. Mostra a única arma para combater o caos. Aliás, uma arma mais potente do que o caos.
E “potente” não é uma palavra a caso. A misericórdia, lembra Francisco citando São Tomás de Aquino, ao invés de ser “um sinal de fraqueza”, é “a qualidade da omnipotência de Deus”. É parte de seu método, do modo com o qual ele escolhe continuamente para oferecer-se à nossa liberdade. Desde sempre, desde que se constituiu a aliança com o homem (belíssimo o parágrafo no qual o Papa repercorre os Salmos) até a apoteose, a manifestação plena com Jesus. Somente a experiência da Sua presença no mundo torna possível para João afirmar “pela primeira e única vez em toda a Escritura”, que “Deus é amor”.
É por isso que Cristo é o rosto da misericórdia. Ali se revela “a natureza de Deus como a de um Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia”, como se vê nas páginas do Evangelho: o filho pródigo, a viúva de Naim, a vocação de Mateus (do qual Francisco, como ele mesmo lembra, tirou o seu lema: miserando atque eligendo, “olhando para ele com misericórdia o escolheu”). Não há outro caminho, nenhuma outra possibilidade de “superar a recusa” contrária ao coração humano – para atrair a liberdade até o fundo – do que perceber a paixão de Cristo por nós. E isso especialmente em um momento histórico no qual, como recorda o Papa citando São João Paulo II, parece feito de propósito para “separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia”.
Há um outro fato marcante. Aqueles do Papa não são definições prontas. Nunca há uma frase que fecha de uma vez por todas a questão (seria impossível para aquela que, como recordou Dom Giussani, é uma palavra tão profundamente enraizada no Mistério que “deveria ser arrancada do vocabulário humano”). Existem tantas vezes “misericórdia é...”, mas como janelas que se abrem sobre a experiência que se faz disso, no Evangelho e portanto na vida cotidiana. Indicam lugares e momentos onde a misericórdia se mostra. E onde, mostrando-se, abre perspectivas inimagináveis.
Além da justiça. Um exemplo acima de todos: a justiça. É uma necessidade decisiva para o homem. Mas é inconcebível “combinar” com a ideia de um perdão radical, sempre possível. E, no entanto, “se Deus se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de destruí-la. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça”, oferecendo sempre ao pecador “uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar”. E isso introduz no mundo a real possibilidade de perdão, “instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias para se viver feliz”.
Tempo de mudar. São palavras que ao serem relidas agora, imersos no clima em que estamos, indicam uma estrada ainda mais preciosa. Impensável na escrivaninha, mas possível na fé. Também pode se abrir para nós um caminho para sermos “Misericordiosos como o Pai”, que, lembra Francisco, “é o ‘lema’ do Ano Santo”. Torna-se possível também ver a misericórdia como “o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para conosco”.
E para que o caminho seja mais rápido, o Papa dá indicações muito práticas. O Chamado a viver de um modo mais intenso a próxima Quaresma, “tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus”. O convite à peregrinação, “ícone do caminho” e “estímulo à conversão”. A insistência na confissão, “permite tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia” (“ser confessor”, lembra o Papa aos sacerdotes, “significa participar da mesma missão de Jesus”). O envio às Dioceses do mundo dos Missionários da Misericórdia, “sacerdotes a quem darei autoridade de perdoar mesmo os pecados reservados à Sé Apostólica”. Até a necessidade de se redescobrir as obras de misericórdia, corporal e espiritual, porque no fim “com base nelas seremos julgados: se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede...”.
Há ainda um pouco sobre o qual devemos refletir ainda mais hoje. Diz respeito ao relacionamento com o judaísmo e o islamismo. A misericórdia “nos relaciona” também com eles, porque judeus e muçulmanos “a consideram um dos atributos mais marcantes de Deus. Israel foi o primeiro que recebeu esta revelação”, enquanto o islamismo “coloca entre os nomes dados ao Criador o de Misericordioso e Clemente”. Que caminho abre lembrar disso após os fatos de Beirute, Paris e Bamako?
São anotações. Hipóteses de trabalho para serem aprofundadas e, sobretudo, vividas. Mas bastam para ver que o Jubileu é ainda mais necessário, agora. “É o momento favorável para mudar de vida”, como lembra o Papa Francisco. “É o tempo de se deixar tocar o coração”.
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