Dividido em três partes, o livro "A Formação da Cristandade" delineia o nascimento do mundo cristão desde as raízes judaicas e helenísticas até o colapso da cristandade medieval
Ainda pouco conhecida no Brasil, a obra do historiador britânico Christopher Dawson (1889-1970) vem sendo finalmente divulgada em nosso país. Apesar do reconhecimento nos países de língua inglesa, o autor permanece um tanto incompreendido, seja por parte de historiadores de ofício como pelo grande público. Dois são os motivos que explicam essa relativa marginalização: além de não se vincular a nenhuma das tendências mais comuns da historiografia contemporânea, tais como o aprofundamento em temas cada vez mais específicos, Dawson nunca oculta suas convicções a fim de afetar uma neutralidade “científica”. Bom exemplo dessas duas características é A Formação da Cristandade, livro de que nos ocuparemos aqui.
O subtítulo da obra já demonstra a ambição de pintar um panorama de período notavelmente longo da história: Das Origens na Tradição Judaico-Cristã à Ascensão e Queda da Unidade Medieval. Assim, sem descer a minúcias – o que, de resto, seria impossível em obra de tão largo fôlego –, o objetivo do autor é oferecer uma síntese na melhor acepção da palavra, ou seja, captar o essencial e apresentá-lo de forma coerente, ressaltando os nexos e o significado dos fatos. Mas, tratando de 15 séculos de história, semelhante intento resultaria em algo superficial se não fosse guiado por um critério seguro de interpretação histórica. E aqui entra em jogo a segunda característica da obra de Dawson, comentada acima: a convicção de que a história deve ter um sentido.
A Encarnação. Desafiando tabus iluministas que permeiam o discurso historiográfico tradicional, o autor parte de hipótese ousada: a de que o fenômeno religioso é o aspecto que explica de modo mais abrangente a experiência humana e, portanto, também seu desenvolvimento histórico e cultural.
Isso pode ser verificado no estudo das mais variadas culturas (desde a pré-histórica, até as orientais e as ameríndias, por exemplo), mas no caso do ocidente cristão ganha especial relevo. Com efeito, a originalidade do cristianismo deriva de um acontecimento histórico absolutamente excepcional, a Encarnação, por meio da qual o eterno entra no fluxo do tempo. Por isso, Dawson diz que, se a Revelação é o elemento que dá sentido à história, a própria história deve ser compreendida como parte da Revelação, uma vez que Deus se dá a conhecer através das contingências históricas. Assim, para o cristão, a Encarnação só pode ser entendida na e pela história; separada da vida e de suas circunstâncias concretas, a presença de Cristo seria reduzida a lembrança ou doutrina.
Tais pressupostos levam a um olhar ao mesmo tempo livre e surpreendente sobre a história do cristianismo. Reconhecendo que a tendência do catolicismo sempre foi encarnar-se na cultura, Dawson afirma que cada era da história da Igreja manifesta um aspecto distinto da Revelação. Para os cristãos, cada mudança histórica traz consigo desafios que demandam novas soluções: por isso, diz o autor, em certo sentido a Igreja está sempre “em crise”. Mas, apesar de tudo, essas tensões e conflitos suscitam também uma constante renovação da Igreja, pois obrigam a aprofundar o mergulho na inesgotável riqueza do acontecimento cristão, de modo a descobrir nele sentidos que talvez tivessem passado despercebidos até então.
Após a apresentação dessas considerações iniciais (capítulos 1 a 4), o livro descreve o nascimento do cristianismo, resgatando suas afinidades e diferenças com relação à tradição judaica. A Igreja, que se concebia como continuidade histórica da presença de Cristo, logo compreendeu sua vocação universal e – diferentemente dos judeus, que recorreriam ao estudo da Lei como forma de resguardar sua identidade nacional e religiosa – abriu-se em direção ao gentio. Parte desse movimento, o diálogo com a cultura grega (tema do capítulo 7) é descrito como a audaciosa aceitação do desafio de compreender em que medida o cristianismo pode ser uma resposta adequada à busca intelectual e moral da filosofia helenista – e, portanto, da própria razão humana.
Também no terreno da arte, os primeiros frutos da cultura cristã começaram a brotar a partir do século III. Dawson aborda então o tema aparentemente árido do nascimento da liturgia, retratando-a de modo fascinante, como a grande expressão social e comunitária da experiência cristã (capítulo 9). O surgimento de novas expressões musicais, literárias e arquitetônicas, em que se combinam a herança clássica e a tradição bizantina, foi associado ao desenvolvimento da patrística e à absorção por parte da Igreja de elementos sociais romanos, resultando numa síntese que formou não apenas a base da cultura medieval, mas do próprio Ocidente até nossos dias.
Trabalho de evangelização. Ao tratar da Idade Média, ao mesmo tempo em que procura desfazer o preconceito que recai sobre o período, o autor evita também qualquer forma de idealização ingênua. Sem deixar de ressaltar o caráter grandioso da unidade da cristandade medieval e de suas realizações (chegando até mesmo a afirmar que ela poderia ser considerada “a cultura cristã par excellence”), Dawson se recusa a considerá-la perfeita ou ideal, lembrando seu caráter ainda “bárbaro” para concluir: “Foi a cultura de bárbaros cristão – de bárbaros que se tornaram cristãos e de cristãos que eram, em parte, bárbaros” (p. 256). Após a queda do Império Romano, o grande desafio de reconstituir a sociedade num mundo em que tudo parecia ruir – tarefa que levou séculos para ser realizada – foi levado a cabo por gerações de monges anônimos, reunidos naquelas pequenas células de renovação cultural que eram os mosteiros espalhados por toda a cristandade desde o século IV. Assim, as mudanças sociais e culturais ocorridas no período – tais como o fim da escravidão e, mais tarde, a criação das universidades e o ressurgimento das cidades – não foram fruto da aplicação de um “programa”, mas o resultado de um lento trabalho de evangelização, que culminou no surpreendente florescimento da Europa feudal nos séculos XII e XIII (descrito nos capítulos 15 e 16).
Em suma, verifica-se que, para Dawson, o estudo da cristandade medieval termina por iluminar não somente as principais características do período, como acaba também por revelar uns quantos rasgos essenciais da experiência cristã. Afinal de contas, diz o autor, ao estudar a história estamos “estudando também um mistério religioso – a vinda de Cristo na história” (p. 114). Compreende-se, assim, que o início e o final da obra sejam dedicados a discutir a natureza do catolicismo; tal escolha fica ainda mais clara se notarmos que os diferentes capítulos do livro foram originalmente apresentados em forma de palestras, proferidas entre 1958 e 1962 na Cátedra de Estudos Católico-Romanos da Universidade de Harvard. Dirigindo-se a público não católico, Christopher Dawson deseja oferecer sua contribuição para fomentar o diálogo inter-religioso, dando a conhecer alguns dos traços distintivos do catolicismo em comparação com a experiência protestante.
Desnecessário dizer que, no âmbito de um trabalho sério, tais conclusões passam longe de qualquer intuito meramente proselitista ou panfletário; trata-se, antes, de uma tentativa de levar em consideração a importância da experiência religiosa como critério para interpretação histórica – sem abdicar, contudo, do rigor próprio ao método historiográfico.
Ainda assim, Dawson muitas vezes se afasta do discurso histórico tradicional, fazendo provocações inusitadas. Uma delas encontra-se nos capítulos finais da obra, quando o autor afirma – não sem certa ironia – que a Reforma Protestante ocorreu na Alemanha porque a cultura alemã permanecia mais “medieval” que a da Itália do Renascimento, onde a separação entre Igreja e Estado havia adquirido contornos mais nítidos que na terra de Lutero (p. 386). Mas paremos por aqui: a Reforma é tema a ser explorado na continuação deste livro, intitulada A Divisão da Cristandade, que em breve será objeto de novos comentários neste espaço.
Serviço:
A Formação da Cristandade
Christoper Dawson
Ed. É Realizações, 2014, pp. 448
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