Professora de Direito e Vice-Presidente da Corte Constitucional italiana desde 2014, MARTA CARTABIA, foi convidada de honra da Pontifícia Universidade Católica do Chile para classe magistral. Uma nova maneira de julgar o problema dos “novos direitos”, que foge da rejeição ideológica e procura responder positivamente à “provocação” do nosso tempo
O que é o mais justo nesta sociedade pluralista? O que gritam os homens do nosso tempo? Qual seria então a função da Lei? Qual é a sua relação com a ordem moral? O ordenamento jurídico deveria ser neutro ou não? Para que existe o Direito e por que homens, amantes da liberdade, o cumprimos? Onde reside a sua verdadeira força? É possível julgar esses novos direitos a partir de um diálogo e não por meio de uma postura defensiva?
Estas e outras perguntas nos surgem diante do conteúdo que temos que ensinar ou dos casos complexos em que nos cabe decidir. É por isso que precisamos de alguém com quem percorrer este caminho, que esteja disposto a enfrentar de forma objetiva e possamos aprender a aprender sobre novas questões que nunca estarão fechadas, que requerem uma crítica aguda e intensa e que, como toda nova circunstância, são uma ocasião para aprofundar, redescobrir e amadurecer.
Que sorte encontrá-la!
Nada óbvio. Saímos de Buenos Aires e São Paulo, cidades onde residimos, porque Marta Cartabia visitava pela primeira vez América Latina. A Universidade a convidou para dar a classe magistral durante a cerimônia de inauguração do ano acadêmico como Professora, Doutora em Direito e Vice-presidente da Corte Constitucional italiana desde 2014.
Este fato – nada óbvio – fala da novidade que traz consigo a maneira que propõe de ver, de perceber, de julgar e de decidir sobre estes grandes desafios que nos apresenta nosso tempo de grandes e rápidas mudanças.
Sua proposta nos fala de que nesta época caracterizada por profundas e rápidas transformações sociais, se exige da ordem normativa novas formas de proteção da pessoa e de regulação normativa, que se tende a responder com o reconhecimento de direitos individuais, visto que estes “falam da linguagem das necessidades e desejos” e se expressam a expectativa de que as normas possam dar conta dos dramas mais profundos da pessoa e assegurem a satisfação para as aspirações que existem no coração humano: o desejo afetivo de uma companhia com a qual compartilhar a vida (direito ao casamento); desejo de ter um filho e o drama de não poder tê-lo (direito a filiação); medo das enfermidades, da dor e da morte (direitos do fim de vida); etc.
Como se explica este grande êxito dos direitos individuais? Ela nos disse que esta “linguagem” focaliza a atenção sobre a promessa que contém e oferece esperança, e que os direitos resultariam estrategicamente viáveis e oferecem uma oportunidade de resposta imediata às novas necessidades.
Contudo, estes “novos direitos” que nascem de uma interação de vários fatores (antigos textos e formulações, novas exigências da sociedade civil, contexto multicultural e secularizado) são formulados, como todos os direitos individuais, por princípios muito amplos e articulados com expressões genéricas – ex: a dignidade humana é inviolável – e tem seu centro de gravidade no princípio da autodeterminação – que pretende emancipar a pessoa de toda forma de poder e condicionamento externo – e no principio da igualdade como não discriminação.
Assim, encontramos que a mesma expressão jurídica pode levar não só a resultados diferentes, mas inclusive opostos (no exemplo do valor “dignidade humana” encontramos que a mesma, segundo contexto cultural e a tradição, pode ser entendida como um aspecto indisponível da pessoa humana e portanto um limite a sua autodeterminação ou como o fundamento desta última).
Toda a articulação do significado dos direitos humanos tem muito a ver com a cultura, com o contexto e com a interpretação. Seu conteúdo, levando em consideração o espírito do tempo, muda influenciado por algo prévio ao mundo jurídico, algo que acontece na ordem social e que o direito, de alguma maneira, tende a absorver.
É na cultura e na vida social que os grandes conceitos como dignidade, liberdade, pessoa, vida e morte, amor, necessidades, desejos, e assim sucessivamente, adquirem consistência. Sem esse substrato, o direito que quiser impor uma ordem de valores perderia sua função de garantir condições de vida humana e se converteria em uma força tirânica e totalitária.
Três polos em contínua relação. Qual seria então o papel que podemos esperar do Estado, dos ordenamentos jurídicos e das leis respeito às grandes questões morais que surgem na discussão sobre os “novos direitos”? Qual seria a relação destas leis com nosso irrenunciável desejo de Justiça?
As sociedades contemporâneas, tão profundamente marcadas pelo pluralismo cultural e religioso, são laboratórios extraordinários de “formas de vida”, onde se experimentam e se sustentam as convicções morais.
“O direito não é um mundo fechado em si mesmo, não é autossuficiente, deve inventar-se, encontrar-se e obter-se na experiência jurídica vivida… a estrutura do direito implica três polos em contínua e recíproca relação: lei, justiça e sociedade são fatores imprescindíveis de um processo de contínuo ajuste na qual a lei não se limita a adequar-se à sociedade [...] graças a atenta observação das perguntas que ela expressa, se adentra numa inesgotável busca do justo…”, explicou Marta.
Ficamos entusiasmadas e nos corresponde profundamente encontrar nesta proposta uma afeição ao mundo, às suas transformações, uma postura não medrosa, confiada no bem que esta traz consigo e que pode vir à luz por meio de um diálogo aberto.
Ficou mais evidente que corresponde mais ao nosso desejo de justiça, verdade e felicidade, seguir esta novidade de diálogo que se posicionar de modo reativo, criando maior divisão entre ideologías e, principalmente, impondo valores que para muitas pessoas na sociedade não são mais aceitos nem queridos.
A novidade maior que os “novos direitos” traz consigo é o redescobrimento do valor central da liberdade de cada um e das leis humanas como simples instrumentos de ordem e de paz, sem esperar destas a implantação de um sistema social utópico perfeito. Um grande desafio.
Inteligência da realidade. O reconhecimento dos novos direitos exalta o valor da liberdade, sendo esta a essência do homem e do cristianismo!
O Papa Francisco através deste modo livre e direito a liberdade, nos recorda Marta Cartabia, conseguiu propor uma nova visão sobre a geopolítica do mundo. Não teriam ocorrido tantas mudanças se o Santo Padre não tivesse atuado assim, com esta humilde abertura.
Voltamos também muito comovidas pela experiência de unidade, de comunhão. Ao se aprofundar juntas este tema de estudo, trabalho e realidade cotidiana, verificamos uma vez mais a utilidade, a criatividade, a potência cultural, e o sentido deste grande dom que é a nossa fé.
Se o direito se nutre da cultura viva e vivida, isto implica a todos nós. Cabe a nós testemunhar aquilo que faz mais bela e humana nossa vida: aquela seiva vital que encontramos nas nossas experiências mais verdadeiras, aquilo que corresponde indubitavelmente a espera do nosso coração desejoso, aquilo que nos torna ingenuamente audazes para construir.
Que fortuna ter companheiros de caminho assim, com quem olhar, com quem perguntar, aprender, com quem abraçar mais a realidade e aos homens do nosso mundo.
Temos um trabalho enorme para fazer, uma nova ponte que construir, e sobretudo uma cultura que viver! Por isso desejando que aconteça também com o Direito o que o poema de amor do artista chileno Pablo Neruda assim descreve e que Marta Cartabia mencionou no final de sua lição:
“Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras”.
APROFUNDAMENTOS:
>A aula magistral de Marta Cartabia no Chile (em espanhol e italiano)
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