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Passos N.187, Dezembro 2016

RUBRICAS

Cartas

O DESAFIO DO CAMPONÊS
E A COLHEITA DE TOMATES

Sou fisioterapeuta. Recebo um paciente com dor na coluna. Ele é camponês, me diz que não acredita que eu poderei ajudá-lo e que sinceramente quer fazer o mínimo indispensável de sessões para não perder tempo. Aceito o desafio. A primeira sessão conclui-se com ele começando a entrar mais em confidência comigo e falando do seu trabalho, do quanto gosta muito e de como está frustrado por não poder dar 100% de si. Nas sessões seguintes aumenta o nosso relacionamento, entendo que ele não está numa situação econômica favorável, então decido presenteá-lo com as terapias finais do ciclo. Um dia, chega ao Centro onde trabalho, me toma pelo braço, depois me abraça e diz: “Você me fez descobrir a dignidade do meu trabalho, e assim como o homem no trabalho redescobre a si mesmo, você devolveu dignidade a mim, porque agora estou bem e posso colher os tomates. Não sabe o tamanho do presente que me deu”. Ele ainda não sabia que eu lhe dera de presente as últimas terapias. Observo-o, curioso, e lhe pergunto o que eu fiz de especial, e ele começa a citar todas as coisas que eu havia feito durante as sessões, mas sobretudo a bondade com a qual foi tratado, ouvido, sentindo-se amado. Veio logo à minha mente a passagem do texto “A forma do testemunho” (in Passos outubro), que diz: “É aquilo a que pertencemos, do qual participamos, que define a nossa expressão cultural”. Eu sou assim, dei aquela atenção ao meu paciente (sem sequer ter sido nada de especial), porque toda a minha vida é definida pelo encontro com Jesus através dos amigos da Escola de Comunidade, ainda que às vezes eu me esqueça ou o desvalorize ou não creia nele. Estou consciente de que digo coisas muito maiores do que eu, mas também estou consciente de que assisti a um fato maior do que eu e não explicável exclusivamente através da minha capacidade de fazer o meu trabalho.
Damiano, Bolonha (Itália)

A VENDA DE PASSOS
“POSSO DÁ-LO À MAMÃE?”
Desde jovem eu sempre divulguei Passos e em mim prevalecia sempre a preocupação de uma militância para tornar a revista conhecida. Com o tempo insinuava-se um hábito e um ceticismo, era mais uma coisa a fazer, entre tantas outras. Domingo passado fui vender a revista de outubro e no início fui tomado por esse ceticismo e pelo hábito. A certa altura, uma criança lê em voz alta a capa: “Mendigos de Misericórdia”. Eu lhe pergunto: “Você sabe que este é o Ano Santo da Misericórdia?”. Ele: “Não, ninguém me falou disso”. E depois: “Você pode me dar esta revista, vou levá-la à mamãe, assim ela me ajuda a entender?”. Ali compreendi que Passos serve antes de tudo a mim, para a minha caminhada, justamente como documenta essa criança...
Lauro, Macerata (Itália)

AQUELES CINCO NOMES
DIFÍCEIS DE PRONUNCIAR

Caro padre Carrón, ensino Religião num curso técnico. Hoje, na troca de sala, entro numa segunda série onde foram inseridos cinco alunos provenientes de uma comunidade para menores estrangeiros, todos islâmicos. Vêm até mim e me dizem que vão sair porque não assistem a aula de Religião. Com dificuldade explico que não vou ensinar catolicismo e que todos os professores estão em substituição e enquanto o horário não é definitivo e não haja um horário alternativo, eles não podem ficar girando pela escola. Eles ficam irritados, então temo o pior e chamo um meu colega. Ele, de modo firme e decidido, os faz calar, e assim decidem se sentar; mas sempre com um olhar de raiva e palavras hostis. Pouco depois chega o vice-diretor que repete as mesmas coisas e diz que vai telefonar para a comunidade. Assim, fico sozinha. Compreendo que não posso permanecer imóvel, a única coisa a fazer é completar o meu trabalho. Convido-os a só escutar e digo que se não quiserem, podem ler um livro; em seguida, abro o meu e leio um texto para toda a classe, também com perguntas para a classe responder. O texto fala de um jovem ateu que, encontrando um colega que lhe havia dado um Evangelho, tinha ficado tocado pela frase “ama o teu próximo como a ti mesmo”, procurou praticá-la e isso havia mudado a sua vida. Quando chego ao comentário, paro, olho para eles e digo que aquelas palavras foram escritas há mais de três mil anos, mas que ainda hoje são capazes de mudar as pessoas. Os alunos começam a trabalhar, em silêncio. Os cinco não mudam de atitude em relação a mim. A certa altura, me dou conta de que não havia chamado os nomes deles. Pego a lista de chamada e começo a chamá-los; eles começam a dar risada porque, errando a pronúncia, eu disse um palavrão na língua deles. Ao mais alegre eu disse: “Fico contente de ter errado, assim você pode me corrigir”. Quebrou-se o gelo. Eles me ajudam a pronunciar corretamente os nomes, me dizem os países de onde vêm e para cada país me vem à mente uma lembrança: um vem da Macedônia, assim lhes falo de Madre Teresa; um outro é do Kosovo, e lhe conto que o pai de um meu aluno era um soldado da ONU e não conseguia contar os horrores vistos durante a guerra. Os olhos do menino brilham e me diz que no seu país não há mais nada... Um outro é de Gaza, e então falo da viagem da minha filha à Terra Santa. O mesmo aluno, mais tarde, pergunta o meu nome. Eu lhe digo: “Vou escrevê-lo, porque é um pouco complicado”. No final, o rosto deles mudou e, certamente, o meu também! Quando toca o sinal, até me dizem “bom dia”.
Carta assinada

#coletadealimentos
UM GESTO PARA O ANO INTEIRO
Caros amigos, a campanha da Coleta de Alimentos aqui em Sorocaba começa muito antes de novembro. Aliás, eu diria que nunca para. Neste ano, após a Coleta o pessoal foi para minha cozinha comer o macarrão que preparei para, com um bom vinho, celebrarmos o trabalho do dia. A sala de casa estava cheia de caixas e materiais usados. Combinamos um reencontro para a semana seguinte com as pessoas que encontramos durante a Coleta e fomos trocando nossas experiências sempre muito vivas dos momentos vividos. Depois encaminhamos os alimentos às entidades e assim a vida segue seu curso. Nos meses que antecedem a Coleta, o Colombo, meu marido, vai às universidades, escolas, paróquias e todos os lugares que consegue contato para convidar voluntários. É um trabalho muito bonito e ele já criou vínculos fortes, já é uma pessoa “aguardada”, seja pelos voluntários fiéis que dizem estar esperando pelo seu telefonema, até os reitores ou coordenadores de cursos. Ele, com seu jeito simples, entra com a certeza da proposta de um Destino bom. Um dia, estava em casa com meus afazeres e vi que o Colombo iria sozinho fazer a proposta numa universidade. Eu realmente não queria deixar o que estava fazendo, mas não pude ficar indiferente à alegria e determinação dele. Contrariada, confesso, fui junto. Minha função era segurar o banner enquanto ele falava e distribuir os termos de adesão para quem se interessasse. O professor, animado com a proposta indicou que fôssemos à classe ao lado. Ao entramos reparei que a lousa estava preenchida com o conteúdo sobre um autor brasileiro com o qual tive a grata oportunidade de conviver e trabalhar com uma de suas filhas, além de ser aluna de outra. Comentei baixinho com a professora sobre isso. Quando o Colombo acabou de falar a professora pediu para que eu relatasse minha experiência para todos. Eu levei o maior susto, mas acabei contando um momento da minha história profissional e pessoal. A classe aplaudiu, todos ficaram muito envolvidos. A professora, emocionada, disse que eu havia dado vida para um conteúdo que ela tinha falado apenas teoricamente. Todo mundo ficou animado com a proposta da Coleta e quase toda a classe se dispôs como voluntário. Saindo da sala eu tinha a nítida certeza de estar sendo carregada pela Presença. Um gesto tão simples de seguir a provocação do Colombo, ainda sem muita vontade, me proporcionou uma experiência tão gratuita e bonita! Pensei, a Coleta é isso: um outro que me provoca a fazer a experiência da Presença que nos toma por inteiro!
Eloísa, Sorocaba (SP)

DESCOBRIR-SE MUDADA
Estou escrevendo, antes de tudo, comovida pelas amizades, os encontros e os rostos que me foram doados nestes meses. É um Outro que dia após dia me concede novos companheiros rumo ao destino. E hoje digo: nada é por acaso! Eu tive a graça de poder estudar para a minha tese no Brasil, e foi um belo desafio. Defino este período transcorrido, e que hoje continua, com dois termos: dom e superabundância. A minha maior gratidão é por ter descoberto que hoje estou mudada. Tudo o que aconteceu não foi pela minha habilidade ou pelo meu bom espírito de iniciativa, mas foi o fruto de um trabalho, de um juízo que nasce frente àquilo que acontece. Hoje eu posso estar diante da realidade, dos meus medos e preocupações, de modo totalmente novo. A verdadeira mudança foi reconhecer-me eu, ser eu mesma, com tudo o que sou, sem me poupar nada. Estando no Brasil comecei a fazer memória dia após dia daquilo que até hoje me aconteceu na vida, desde as provas mais difíceis, até os períodos mais cansativos, os quais hoje me levam a uma consciência nova de mim e da realidade que encontro a cada instante. Antes de minha chegada ao Brasil tive um período de total cansaço: tudo me parecia obstáculo à partida, eu estava concentrada em olhar somente o que “não andava”, estava acometida por um sentimento de injustiça que me levava a dizer: “estou sozinha”, quando ao contrário já sabia que não era verdade. Eu culpava as circunstâncias e a relação de “amor e ódio” com a orientadora da tese, as incompreensões sempre mais fortes que vinham surgindo com o então meu namorado. Enfim, eu me afundava nas circunstâncias e, quanto mais me afundava, tanto mais achava estar com a razão, porque afinal eu ia à missa todos os dias, procurava acompanhar a Escola de Comunidade; mas sempre mais o meu coração se endurecia. Tendo chegado ao Brasil, acreditava que a distância podia ser a “receita” para resolver tudo, para pôr as coisas em ordem. Contudo, ali também, mal tendo chegado, frente a todo o bem que eu sentia e desejava (e que reconhecia nunca ter deixado de receber na Itália) corria o risco de o lamento ser vencedor. Poucos dias depois, um amigo me convidou a fazer a caritativa em um asilo de idosos; o gesto iniciou com uma oração, naquele momento eu pela primeira vez me perguntei: “Mas eu a quem pertenço? Ao meu lamento? Ou sou de Cristo?”. Não tinha outra escolha se não ceder a Ele que sempre bate à porta. Desse modo, no trabalho, no estudo, no apartamento que dividia com outras estudantes, ao telefonema com a família, passei a perguntar-me continuamente: “Quem é que preenche o meu coração?” Reconheço hoje que Cristo não se cansa de aguardar o meu sim, e me deixa a liberdade de reconhecê-lo. Assim, deixando-lhe espaço, inicia-se a viver a vida por inteiro, tudo assume um gosto novo, e a coisa mais impressionante é que também os outros o percebem. Até a professora deseja saber verdadeiramente quem sou, porque, quando de manhã entro na sala, ela vê uma pessoa interessada em conhecê-la. Portanto, os rostos que a realidade doa são o primeiro instrumento para reconhecer Ele. Tudo se abre, tudo é novo e eu não vivo mais dependendo do meu fazer ou não fazer e de quem está ao meu redor. O que me salva é um caminho, o caminho feito a partir daquele abraço sem o qual eu teria só medos. Hoje me importa somente não perder-me, porque de uma coisa assim não posso mais voltar atrás, mas somente confiar-me, um passo após o outro.
Caterina, São Paulo (SP)

RETE MANAGER
A CARITATIVA QUE MUDA A VIDA
Caro Julián, acabei de participar, com minha mulher, dos dois dias deencontro da Rete Manager em Varigotti. É uma associação sem fins lucrativos que ajuda pessoas desempregadas na busca de um trabalho. Depois de uma vida profissionalmente “tranquila”, em 2014, aos 57 anos, perdi repentinamente o emprego; entre outras coisas, a companhia de um amigo da Rete Manager me ajudou a segurar a barra. Grato por tudo o que havia recebido, aderi também a essa proposta da caritativa. A primeira novidade que surgiu entre nós foi eu ter percebido que mesmo vivendo a caritativa podemos erguer muros, baseados em nosso preconceito e no projeto que podemos ter em relação àquelas pessoas que estamos tentando ajudar. Compreendemos o que é esse diálogo de que tanto se fala: não é dizer a alguém o que ele deve fazer, isso não motiva; também não é dizer-lhe o que deve fazer e depois largá-lo com a sua liberdade, muito menos convencê-lo com a dialética do especialista, mas é compartilhar a vida, como o que aconteceu comigo e que me levou a fazer a caritativa. A consequência é percebermos que vencemos a estranheza e nos tornamos criativos, nos faz descobrir que o diálogo tem tudo a ver; o outro vale, independentemente das suas capacidades e do ponto em que se encontra. O segundo passo foi reconhecer que a experiência desta caritativa chega também a influenciar o modo operativo do nosso profissionalismo de todos os dias. Descobrimos que a caritativa está começando a incidir sobre a nossa atividade profissional: o diálogo se torna o método para enfrentar os detalhes do nosso trabalho, trocamos exemplos em que a experiência de criatividade vivida incidiu na vida profissional, chegando até a obter resultados melhores. Precisamos ficar apegados ao lugar que nos educa, é um trabalho não remunerado que vai ao coração do trabalho remunerado e abate o dualismo da pessoa. Só assim podemos encontrar o outro e a sua real necessidade, e graças a isso podemos perceber a nossa necessidade mais verdadeira.
Federico

UMA POSITIVIDADE QUE DOMINA
Caros amigos, estou chocado pela queda do avião que levava o time da Chapecoense para a final da Copa sul-americana. Diante desta tragédia que causou tantas mortes, eu particularmente agradeço ao Senhor por Ele ter entrado na história do homem. E na minha história. Esperamos por Ele a cada Advento, todos os anos, para que Ele renove em nós a positividade a vida. Ao saber da notícia, ao ver as manchetes e agora ver a matéria na televisão, lembro do texto de Dom Giussani que enviei nestes dias para alguns amigos. Este texto se torna pedido diante da dor que o mundo inteiro sentiu com a notícia. Portanto, cabe ler novamente e pedir Veni Sancte Spiritus, Veni per Mariam: “Uma positividade total na vida é o que deve guiar o cristão, seja qual for a situação em que se encontre, seja qual for o remorso que tenha, seja qual for a injustiça que sinta pesar sobre si, qualquer que seja a obscuridade ou a inimizade que o rodeiam, seja qual for a morte que o assalte, pois Deus que fez todos os seres, existe para o bem. Deus é a hipótese positiva sobre tudo o que o homem vive, mesmo que essa positividade pareça às vezes ser vencida em nós pelas tempestades da vida” (Dom Giussani). Walter, Rio de Janeiro (RJ)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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