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Passos N.188, Fevereiro 2017

DESTAQUE | PRESÍDIOS

As duas faces do mesmo Brasil

por Jacobo Sabatiello

Desde a rebelião acontecida no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, no início de janeiro, o Brasil assiste a uma crise no sistema prisional. E, em meio a esta confusão, vem à luz a experiência da APAC, que se dedica à recuperação e à reintegração social dos condenados

Cinquenta e seis mortos, esquartejados, mutilados e decapitados: é esse o horrível balanço da rebelião acontecida no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Brasil. As notícias e as imagens que circulam pelas redes sociais impressionaram o mundo todo. Segundo o secretário de Segurança Pública, não foi uma rebelião propriamente dita, mas um problema ligado à guerra entre facções pelo controle do tráfico de droga na área de Manaus. Em todo caso, o presídio já se encontrava numa situação precária, muito além dos limites do respeito aos direitos dos presidiários. A estrutura, que no momento da rebelião hospedava 1.828 presos, tem capacidade para não mais do que 592; portanto, um índice de superlotação de mais de 300%.
Para quem, como a Fundação AVSI, que há anos trabalha no país com o tema da prisão e do respeito aos direitos humanos dos condenados, eventos como esse de Manaus surpreendem menos. Muitas organizações internacionais e o próprio Congresso brasileiro reconhecem e denunciam que numerosas prisões brasileiras são, de fato, verdadeiros barris de pólvora, que podem explodir a qualquer momento, lugares superlotados, sem regras, e onde a única lei é a do mais forte. O Brasil, com quase 650 mil presos, representa a quarta população carcerária do mundo, com uma taxa média de superpopulação de cerca de 163%. Em 2016, o relator especial da ONU Juan E. Mendez apresentou um relatório no qual denunciava práticas de torturas como um problema crônico e recorrente nas prisões brasileiras, caracterizadas por situações “cruéis, desumanas e degradantes” por causa da superlotação. As recorrentes violações das regras mínimas para o tratamento dos presidiários adotadas pela ONU, além de fomentar mais atos de violência no interior das estruturas prisionais tornam mais difícil a reabilitação e a sucessiva reintegração social do condenado.

Cogestão dos condenados. Nesse contexto insere-se a experiência das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), realidade da sociedade civil que administra no Brasil prisões de pequenas dimensões, sem a presença de armas ou de guardas penitenciários, e que se dedicam à recuperação e à reintegração social dos condenados, durante o período da pena. A eficácia das APACs é, aliás, demonstrada pelo índice de reincidência: 20-30% nas APACs, contra 70-80% das prisões convencionais. A principal diferença entre a APAC e o sistema carcerário brasileiro é que os próprios presos são corresponsáveis pela própria recuperação, atuando na cogestão das prisões.
Hoje, no Brasil, existem cerca de 50 APACs, que hospedam mais de 3.000 presos, e embora não tendo a pretensão de representar a solução para o sistema penitenciário tradicional, mostram uma alternativa viável. Há cerca de 10 anos, a Fundação AVSI – com a ajuda da União Europeia – colabora com essa experiência brasileira, apoiando a consolidação e a expansão do método APAC, que em seu centro tem uma visão que valoriza a dignidade do ser humano. Disciplina, trabalho, família, educação, espiritualidade são alguns dos pontos do método, através do qual se procura fazer emergir o valor e a raiz positiva de cada homem, inclusive daqueles que se mancharam com delitos atrozes.

“Aqui entra o homem”. A pergunta que surge espontânea quando se entra em contato com os protagonistas dessa verdadeira revolução – traficantes, estupradores, assassinos, ladrões, pedófilos, gente que, no presídio de Manaus, decapitou outros seres humanos – é a seguinte: como é possível mudar e induzir ao bem pessoas como essas? A resposta é simples: quando se entra em contato com uma das associações APAC e se conversa com algum dos “recuperandos” (é assim que são chamados, não presidiários) não vem à mente aquilo que fizeram. Tem-se a impressão de estar frente a frente com pessoas dignas que estão pagando a pena conscientes do próprio erro, mas ao mesmo tempo estão conscientes do fato de que são seres humanos. Pode parecer um paradoxo, mas parecem pessoas livres.
Nas APACs aposta-se tudo na liberdade de pessoas privadas da liberdade. Uma aposta explicitada por uma inscrição na entrada de cada APAC: “Aqui entra o homem, o delito fica lá fora”. Na trajetória de recuperação são envolvidas as famílias, ajudadas por voluntários que são a alma do método APAC.
Dar a chave das celas aos presos podia parecer uma loucura absoluta, mas não se pode negar que a coisa funciona: em mais de 40 anos de experiência, nunca houve uma revolta; e as tentativas de fuga contam-se nos dedos de uma mão. Qual é o elemento que os leva a agir assim? Todos os recuperandos ficam impressionados com o fato de que, ao entrar na APAC, não são mais identificados por um número, como nas outras prisões, mas são chamados pelo próprio nome. Pela primeira vez são olhados de um modo novo, como pessoas, com um olhar de misericórdia. Como ensina o Papa Francisco, “do amor não se pode fugir”.
(este texto foi escrito inicialmente para o jornal italiano “La Repubblica”, e publicado dia 4 de janeiro de 2017)

SAIBA MAIS

Um bem para o mundo nascido do coração cristão


As APACs seguem um método de 12 princípios que devem ser implementados de forma integrada para que o trabalho seja bem-sucedido. Não adianta, por exemplo, falar em trabalho se não há espiritualidade, ou pensar em espiritualidade sem assistência jurídica e à saúde adequadas.
Para quem vê o método em comparação com o que é feito ou proposto em outros presídios, contudo, alguns princípios chamam a atenção porque, uma vez propostos, fica claro como são importantes e pertinentes. Por exemplo, a participação da comunidade (que deve optar pela existência do sistema nos municípios e que acompanha os presos por meio de ações de voluntariado) e a proximidade da família evidentemente criam um outro contexto, muito mais humano, muito mais cheio de esperança e de possibilidade de reintegração à vida social.
A sigla APAC significava, originalmente, “Amando o próximo, amarás a Cristo”, revelando sua origem cristã. Hoje, ainda que a espiritualidade permaneça como um dos princípios do método, fica evidente que se trata de uma proposta exemplar e plenamente viável no contexto do Estado laico.
Nesse sentido, ilustra perfeitamente uma ideia expressa várias vezes por Dom Giussani: o cristianismo não resolve os problemas do mundo, mas nos coloca na posição justa para resolvê-los. Hoje, a viabilidade do método está empiricamente documentada, pode-se visitar as APACs e constatar seu sucesso. Mas, no início, foi a experiência do amor cristão que levou os primeiros voluntários a acreditar que o amor podia fazer a diferença até mesmo na dura realidade dos presídios.
(pela redação)

Os Doze Princípios do Método APAC
1. A participação da Comunidade
2. O recuperando ajudando o recuperado
3. O trabalho
4. Assistência Jurídica
5. Espiritualidade
6. Assistência à saúde
7. Valorização Humana
8. A família
9. O voluntário e o curso para sua formação
10. Centro de Reintegração Social
11. Mérito
12. Jornada de Libertação com Cristo

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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