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Passos N.192, Junho 2017

TECNOLOGIA

Os sentidos das coisas

por John Walter

Fala-se muito de sociedade da pós-verdade e das “pegadinhas”. Mas isso é só a consequência de um problema muito mais concreto: a ausência de concretude. JOHN WATER faz uma viagem ao nosso modo de ser informados. Passando pela tecnologia, pelo pietismo. E o filósofo-mecânico...

Houve um tempo em que as pessoas – os nossos avós, talvez – se relacionavam com o mundo unicamente através da experiência direta. Agora nós interagimos com ele sobretudo de um modo indireto, através da mídia e da internet, que nos fornecem versões filtradas de acontecimentos e, às vezes, de desastres acontecidos em locais distantes, dos quais não temos um conhecimento detalhado. Não só é praticamente impossível compreendermos muitos desses fenômenos, mas para nós é também mais difícil sentir empatia pelas pessoas envolvidas. Nossa única opção, por isso, é aquela fingida empatia, camuflada num processo inconsciente de virtuosidade virtual. Dizemos coisas que nos fazem parecer bons, e assim nos convencemos de que de fato o somos.
Indiscutivelmente parece uma coisa boa ficar sabendo – o máximo possível – a respeito do que está acontecendo no mundo; e o quanto antes, melhor. Mas é mesmo assim? De que me serve ficar sabendo, em poucos minutos, pelo Google News, que em algum lugar do Oriente Médio aconteceu um bombardeio? Essa própria pergunta nos choca, justamente porque fomos submergidos por mensagens que nos induzem a equiparar “ser informados” com ser “pessoas boas”, comprometidas com o mundo, preocupadas com o nosso próximo. Mas e se tudo isso, ao invés, fosse apenas uma forma de entretenimento, em que as nossas reações não são verdadeiramente o que imaginamos?
Temos a tendência de crer que a informação sempre e obviamente é um bem. Mas, talvez, pode ser destruidora do significado. As informações, em certo sentido, se parecem com o alimento: depois de um determinado ponto, não conseguimos mais digeri-lo. Mas isso não é concebível em nossa cultura, na qual a ideia de ser “informados” é considerada como uma condição cada vez mais virtuosa. O problema não é a falta de dados, de fato, mas que a nossa capacidade de discerni-los está se deteriorando e corre o risco de se extinguir. Noventa por cento do que chamamos de “notícia” é só pietismo estereotipado, um processo supérfluo por meio do qual a emoção mesma de quem lê se torna “a história”. Mas os fatos da “história” não têm um significado objetivo em si: o significado é gerado pela apropriação da “história” por parte daqueles que se tornam os seus usuários. Nós somos a “história”.

Sentidos e pensamento. Além disso, tornou-se quase impossível extrair significados da sociedade midiática contemporânea, porque não somos capazes de dizer o quanto daquilo que nos é dito é informação sólida, não manipulada, o quanto é propaganda e até mesmo se é verdade ou não.
É assim que chegamos à chamada “sociedade da pós-verdade” e ao problema das fake news, as “notícias falsas” que giram pela rede. Fala-se muitíssimo disso. Mas, talvez, a realidade é que não passam de inevitáveis consequências de fenômenos aos quais não demos a devida atenção, porque deixamos de compreender o “mecanismo” do nosso próprio funcionamento.
Diz-se que hoje em dia não existe mais uma verdadeira evidência. Mas a outra face do problema pode muito bem estar no fato de que existem evidências demais, e assim nenhuma possibilidade de coerência. E essa falta de coerência é um problema enraizado não na própria evidência, mas nos meios de captação que temos à nossa disposição – nós que somos os usuários e aspirantes a elaboradores da evidência. A “queda da razão”, por sua vez, não é exclusivamente um fenômeno intrínseco ao indivíduo, mas está inevitavelmente ligado à desintegração de uma estrutura de convicções compartilhadas.
Temos um problema que os nossos avós não tinham: faltando o suporte de uma consciência comum, somos cada vez menos capazes de um juízo que poderia nos levar ao significado. Mas na raiz de tudo, na origem dessa queda da razão humana está a negação daquela que Dom Giussani chamava de “a realidade total”, que é a única verdadeira fonte de coerência na qual podemos confiar. Nossa imaginação foi obscurecida pelo dualismo: separamos o Mistério daquilo que nós consideramos como o “racional” ou até mesmo “o real”.
Com a pessoa humana aconteceu uma coisa (ou melhor, mais de uma coisa) que não foi compreendida ou explicada. Não é uma questão filosófica, e nem teológica. É um problema concreto, que, paradoxalmente, se enraíza na ausência de concretude. O iluminismo provocou uma dissociação entre o pensamento e os sentidos, entre “o sentir e o ver e o tocar e o degustar e o cheirar”: os instrumentos que usamos desde sempre para descobrir a realidade quase que se atrofiaram, por causa de um uso impróprio. Inventamos sensações feitas de propósito para distrair os nossos sentidos, mas ao mesmo tempo deixamos de utilizá-los para trabalhar e nos envolvermos com a realidade. Em certo sentido (!), nós usamos os nossos sentidos só de maneira acidental, ou de maneira inconsciente.
Para os nossos avós, os sentidos eram fundamentais não só para o quotidiano envolvimento físico com as coisas, mas também para o seu pensar: o que pensavam e sabiam vinha do seu modo de estar no real, daquilo em que tocavam, viam, etc. Nós, ao invés, fomos afastados da realidade; o nosso conhecimento chega a nós de terceira ou de quarta mão. A tecnologia nos dá a ilusão de manipular a realidade, mas se trata de uma manipulação cada vez mais remota, na qual os sentidos estão ficando cada vez mais atrofiados.
Os instrumentos foram inventados pelo homem, em geral com notável competência, para ampliar a sua possibilidade de incidir sobre o mundo. Mas certos instrumentos tecnológicos não são, de fato, a mesma coisa. Para afirmar a própria autonomia num mundo que se torna cada vez mais incompreensível, os seres humanos em geral terminam por se tornar parte das tecnologias de que se servem. Em outros termos, aceitam tornarem-se escravos do que é anunciado como a sua libertação.

A bengala de Borges. Quando o grande escritor argentino Jorge Luís Borges percebeu que estava ficando cego, passou vários meses passeando por Buenos Aires, memorizando cada coisa e transferindo a tarefa de “ver”, dos seus olhos, para a sua bengala. Quando ficou cego de vez, continuou a “ver” com a sua bengala, com a memória, a atenção e a imaginação. Nenhuma máquina poderia ajudá-lo, de maneira útil, nessa empreitada sem torná-lo um “inválido” (palavra interessante, aliás...).
Matthew Crawford, um escritor americano autor de The Case for Working With Your Hands (O processo de trabalhar com as mãos; sem edição em português), é um filósofo e – atenção! – um mecânico de motocicletas; o seu texto é uma interessante mistura de experiência pessoal e teoria filosófica. O seu tema dominante é a idéia de que a liberdade e a razão humana residem idealmente num “eu situado”, de que a plena realização do homem se dá na interação com o mundo, com a especificidade dos objetos e dos contextos, mediante habilidades como a mecânica, a marcenaria, a escultura, etc. Portanto, ele sustenta que com o declínio da mão de obra qualificada fomos perdendo algo de fundamental. Aliás, segundo ele a perda da razão, em nossa época, enraíza-se justamente no distanciamento da realidade que caracteriza a maior parte dos nossos trabalhos.
Como todos os grandes críticos e pensadores, está convicto de que existe algo a mais do que o “óbvio” que salta aos olhos. Por exemplo, está constantemente atento a cada ruído, porque pode indicar um problema na tração dianteira ou que uma peça quebrou. Não lhe basta saber o que é preciso saber, mas o que deveria saber, e como esse conhecimento se relaciona com a estrutura das coisas reais, com o seu verdadeiro objetivo, com o seu funcionamento. E esse é fundamentalmente um empreendimento moral “Para os seres humanos”, escreve ele, “as ferramentas remetem à necessidade de uma pesquisa moral. Dado que a natureza nos fornece só receitas ambíguas, nós somos constrangidos a nos perguntar: o que é bom?”.

O carpinteiro. Crawford observa também quais as Grandes Ideias do Iluminismo podem reaparecer, transformando-se em reflexos culturais. Ficamos enclausurados em nossa própria cabeça, distanciando a nossa atenção do mundo, e afastando-nos assim da concretude das coisas e das outras pessoas, convictos de que a verdade e a compreensão são fenômenos subjetivos que, querendo ou não, desabrocharão na nossa cabeça. Mas não é assim.
Jesus era um carpinteiro. Nós nos esquecemos disso, ou pelo menos nos esquecemos do significado do trabalho ao qual se dedicou durante toda a sua vida adulta, o ofício que aprendeu com seu pai José. Ele escolheu vir numa época em que podia ser um carpinteiro, ao invés, por exemplo, de esperar uma época em que poderia se tornar um inventor de algoritmos. Não nos deixou nenhuma descrição do seu trabalho ou a sua opinião sobre ele, mas creio que podemos tranquilamente pressupor que a sua visão não seria muito distante daquela do seu grande discípulo Charles Péguy. Trabalhar, escreve Péguy em O dinheiro, é rezar: “Num certo tempo, os operários não eram servos. Trabalhavam. Cultivavam uma honra, absoluta, como é próprio de uma honra. A perna de uma cadeira precisava ser bem feita. Era natural, estava subentendido. Era um prêmio. Não precisava ser bem feita por causa do salário, ou de um modo proporcional ao salário. Não deveria ser bem feita por causa do patrão, nem dos entendidos, nem pelos clientes do patrão. Deveria ser bem feita por si mesma, em si, por sua própria natureza”.
Dentre tantas coisas que podemos dizer de Jesus, porém, uma delas é que vemos n’Ele a percepção da realidade própria de um carpinteiro. Ou baseada num viver dentro de situações humanas e capaz de vê-las de um modo semelhante a como Ele via as suas ferramentas de trabalho e os materiais com que lidava: realidades que lhe falavam de uma lógica que não era imediatamente óbvia. Um carpinteiro precisa usar os seus sentidos para acumular informações e evidências que lhe permitam compreender uma situação ou um problema. Usa as suas ferramentas como extensão do seu ser; não para se separar da realidade, mas para aprofundar a sua abordagem dela. Isso não explica tudo sobre o modo como Jesus pensava ou falava, óbvio: mas é uma modalidade útil para definir uma dimensão na qual Ele era totalmente diferente dos outros. Um carpinteiro precisa olhar, tocar, intuir. Seus materiais têm vida própria, não respondem às regras do artesão. São o seu mestre e ele é condicionado pelos caprichos e excentricidades deles.
Ser um carpinteiro, ou um mecânico de motos, não é só um modo de pensar: é um modo de ser. A ser descoberto.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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