Nascido no Morro do Estácio, no Rio de Janeiro, o músico Luiz Melodia faleceu aos 66 anos. Crescido na favela, cultivou seus talentos e conseguiu seu merecido reconhecimento e apreço
Nunca foi difícil perceber em Luiz Melodia a sua disponibilidade para a amizade. De forma emocionante, isso se confirma agora, após sua morte, ocorrida no último dia 4 de agosto, através de manifestações de tantos que o conheceram, pessoalmente ou não, e o admiraram pela sua arte. Por seu temperamento carioca, solto, e também talvez por seu repertório bem aceito por jovens estudantes dos anos 70, não sentíamos, com ele, aquela “distância” entre artista e público, que com muitos outros era normal constatar. Era um só envolvimento, mesmo em outros lugares, longe de sua terra natal.
Estudando, pesquisando a história da música em geral, saberemos de artistas geniais que não conseguiram projeção suficiente, oportunidades adequadas, fama, aceitação, compreensão, e o reconhecimento que mereceram. Os motivos são tão numerosos quanto misteriosos. Não é o caso de Luiz Carlos dos Santos, o Luiz Melodia, que foi agraciado por uma série de fatores que favoreceram sua evolução e o levaram à posição de justo reconhecimento por seu talento. Abençoado por Deus, digo, através, principalmente da sua amizade pelas pessoas, o que deixava aberta a porta do destino, por onde finalmente entrariam aqueles que o colocariam no verdadeiro caminho da fama.
Torquato Neto (aquele mesmo, parceiro de Gilberto Gil na fantástica “Geléia Geral”) e Wally Salomão, respeitado poeta que convivia com eles ali, no Morro do Estácio, onde nasceu Luiz Melodia, eram sensíveis e atentos o suficiente para se encantarem com as primeiras composições que ouviram do amigo. Tanto que mostraram uma delas, “Pérola Negra”, para Gal Costa, que amou imediatamente o estilo de composição e a incluiu em seu disco “Gal a Todo Vapor”, do show realizado em 1971, e o disco lançado em 1972. Wally Salomão participou desse mesmo disco com duas outras composições em parceria com Jards Macalé.
Ainda em 1972, a dupla Wally e Macalé tiveram sua composição “Anjo Exterminado” gravada por Maria Bethânia no disco “Drama-Anjo Exterminado”. Nesse LP, Bethânia gravou “Estácio, Holly Estácio”, de Luiz Melodia, canção que agradou demais os fãs de Bethânia, assim como chamou definitivamente a atenção de todos para o compositor Luiz Melodia. Nunca mais ele seria um artista desconhecido.
Para quem pode se lembrar do início dos anos 70, não é difícil recordar o cenário musical da época, com aquela influência maciça do Rock Progressivo, assim como os efeitos ainda muito eficientes da fase anterior, a “Era Woodstock”. As guitarras fascinavam a juventude de músicos e ouvintes do mundo todo. A herança do blues continuava presente no rock’n roll mais simples, assim como a música erudita ressurgia para os jovens, mas na forma de influências, ideias, arranjos e adaptações muito mais elaboradas que somente os mais habilidosos conseguiam executar.
Luiz Melodia viveu, na adolescência, intenso envolvimento com a música da Jovem Guarda e da Bossa Nova, principalmente enquanto tocou com seu grupo “Instantâneos”, formado por amigos. Eram duas correntes musicais bem distintas. Entretanto, as duas eram repletas de influências vindas do “rock’n roll”, do blues, e do jazz. Isso tudo rolava paralelamente, naquele ambiente cercado dos tradicionais sambas cariocas.
Essa mistura saudável de opções históricas da música popular provavelmente deixou Luiz Melodia bem mais à vontade e versátil para se dedicar à criação, além da interpretação. Em seu primeiro disco, “Pérola Negra”, de 1973, fica muito claro a quem o aprecia que as linguagens do samba, choro, blues, rock, jazz, forró, bossa, estão ali, convivendo num mesmo álbum, sem qualquer risco de conflitos estéticos. Bom lembrar (e informar...) que naquele ano de 1973, tanto no Brasil quanto no exterior a produção de obras musicais de altíssima qualidade foi um fato marcante, mais que isso, impressionante, mais nitidamente constatável muitos anos depois, quando visitamos a história e olhamos mais de longe. Vale conferir.
No ano de 1972, já passada a fase dos Festivais, tanto Gal quando Bethânia gozavam de enorme prestígio junto ao público e à imprensa em geral. Foi realmente uma grata felicidade as primeiras composições de Luiz Melodia serem gravadas por essas artistas, naquele momento, daquela forma, para aquele público.
Bom lembrar, também, que naquela época, o artista necessitava muito da boa vendagem de seus discos, os LPs de vinil, pois era dessa forma, e com os shows, que as gravações e demais despesas eram ressarcidas. Lembro-me de uma vez, em São Paulo, em que Luiz Melodia estava tomando um suco, perto da USP, e percebeu que todos o conheciam e cantavam a sua música. Eu também estava lá! Em certo momento, perguntou: “Qual disco meu vocês têm em casa? De qual vocês gostam mais?”. Demorou um bocado para que, depois daquele silêncio, constatássemos que apenas dois dos presentes ali tinham um disco de Luiz Melodia. Tínhamos as suas músicas na memória, ou em fitas cassetes, copiadas. Mas não os seus discos. No dia seguinte, no show, ele comentou isso, e esclareceu melhor: “É maravilhoso chegar num lugar distante de casa e ver que todos sabem cantar minhas músicas! Mas por favor, comprem meus discos, porque sem isso não é possível nem viajar para apresentá-los...”.
Lembrar essas coisas, e poder tocar no piano ou no violão as canções de Luiz Melodia, hoje, é triste. Bem triste. Mas ainda é algo que não cansa. Nunca me cansou. É inevitável, porém, não perceber e sentir mais esse vazio que se instala em nosso universo com a ausência de alguém tão presente, que nunca precisou estar próximo para estar junto.
Esteja com Deus, caro colega. E me aguarde por lá.
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