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Passos N.198, Dezembro 2017

DESTAQUE | EUA

Companheiros de caminho

por José Medina

Homens ateus, crentes, de religiões e culturas diversas. Oito dias de encontros com Julián Carrón entre os Estados Unidos e o Canadá sobre a “beleza desarmada” da fé. E, em um exemplo, se joga “a diferença decisiva”...


Only for courageous people, “só para pessoas corajosas”. Julián Carrón repetiu isso muitas vezes aos seus companheiros de aventura durante a turnê norte-americana de apresentação de Disarming Beauty, a versão inglesa de A beleza desarmada. Na metade de outubro, viajamos com ele durante oito dias, começando pela Universidade de Notre Dame, perto de Chicago, para depois fazermos uma parada em Denver, Houston, Nova York, Montreal, terminando em Washington, DC. As tardes e as noites foram dedicadas a encontros públicos e pessoais, enquanto durante as manhãs viajávamos de avião. Os números são: cinquenta mil quilômetros percorridos e sete eventos públicos, com 15 palestrantes e mais de 1.500 espectadores, entre os quais muitos amigos e colegas. O primeiro encontro, na Universidade de Notre Dame, foi com a turma de Teologia que tinha Disarming beauty como livro de trabalho do curso de Apologética. O encontro foi paradigmático. A primeira pergunta veio de uma jovem: “O senhor fala de liberdade de uma maneira diferente dos outros... Para o senhor, o que é a liberdade?”. “Meu dicionário não é diferente do seu”, responde Carrón. “O que sei é que, para entendê-la, você precisa partir da própria experiência. Olhando para a sua experiência, quando se sentiu livre?”. Aí está, o primeiro convite “a uma aventura só para pessoas corajosas”. Muitos outros virão.

Surpresas. Durante a turnê, o responsável de CL falou com pessoas de diferentes profissões – cientistas, jornalistas, professores universitários, sacerdotes – e diferentes credos – batistas, muçulmanos, católicos, judeus. Os temas também foram diferentes: a liberdade, o acontecimento, o diálogo, a autoridade... Mas o ponto de partida da contribuição de Carrón sempre foi o mesmo: a experiência. Um modo de falar e dialogar que é desarmado e, ao mesmo tempo, profundamente desarmante.
Na Notre Dame, o encontro público foi com Ross Douthat, colunista do New York Times, e Ernest Morrell, diretor do Center for Literacy Education. O moderador foi Paolo Carozza, jurisconsulto e professor do Ateneo. Douthat falou da crise como “um momento em que as pessoas tomam consciência de que não são autossuficientes”; Morrell insistiu sobre a importância de não cair na tentação “de terceirizar o problema, como acontece frequentemente, mas de olhar para si mesmos”. Para ambos, o livro vai à raiz do problema. No dia seguinte é a vez de Denver, onde o diálogo será com Curtis Martin, responsável pela organização juvenil católica Focus, e Michael Huemer, professor de Filosofia, anarquista e ateu. O pré-encontro começa de modo um pouco tímido, pois os relatores não se conhecem. No entanto, depois das duas primeiras frases, se soltam falando de suas vidas e de seus interesses. Depois de vinte minutos, a conversa, já animada, precisa ser interrompida para o início do encontro público, mas muda completamente o seu conteúdo.
A sala do Denver Press Club está lotada, com mais de sessenta pessoas em pé. Muitos jovens esperam o orador em silêncio. Depois de uma breve introdução, Michael Huemer, que tinha preparado uma colocação de quinze minutos dedicada ao capítulo sobre educação, reduz sua intervenção a quatro minutos, para deixar mais espaço para o debate. Curtis Martin abre sua colocação surpreso (“nunca poderia imaginar que um padre espanhol tivesse algo em comum, algo sobre o que falar com um filósofo ateu da Universidade de Denver...”), e prossegue, pedindo para continuar a conversa que tinham começado antes. Assim, fala-se sobre “conhecimento da realidade, autoridade, moralidade...”.
E o debate se inflama justamente quando se discute sobre o papel da autoridade no conhecimento. Carrón parte, como sempre, da experiência. Fala do apaixonar-se: “Você não se apaixona fazendo um curso na universidade ou seguindo as melhores práticas para manter um casamento. Isso não é suficiente. Apaixonar-se é um acontecimento. Chega, nos surpreende, não requer preparação...”. Também dá o exemplo de uma visita ao médico: “Na doença, eu sou o último juiz em relação ao fato de estar curado ou não. Tenho a capacidade de reconhecer isso sem que alguém precise me dizer. Se o médico, mesmo sendo um Prêmio Nobel, me diz que estou curado, mas ainda me sinto mal, quem sabe mais, ele ou eu?”. E afirma que a dignidade do eu reside justamente no fato de “ser capaz de reconhecer o que é verdadeiro ou belo”. Curtis Martin pede para que ele explique o que é o acontecimento cristão; observa que certa “insistência sobre a moralidade” é, de qualquer forma, necessária (este é um tema que voltará com frequência, em alguns dos interlocutores). Quando o debate termina, muitos jovens se aproximam com perguntas, querendo continuar.

Fora do programa. O terceiro dia é como os outros. Uma viagem pela manhã de mais de 1.600 quilômetros, almoço rápido e, depois, o encontro. Desta vez, na Universidade St. Thomas, em Houston, no Texas. No palco, junto com o autor, estão Mauro Ferrari (oncologista e diretor do Methodist Hospital and Research Institute), Marlon Hall (diretor de cinema e antropólogo), Louis Markos (professor de Literatura) e M. J. Khan (presidente da Sociedade Islâmica de Houston). O evento é aberto com as boas vindas do Reitor. Depois, Ferrari fala. Tem uma história profunda, começou a estudar o câncer por causa da dor que viveu na família. A certo ponto, se levanta: “Gostaria de sair do protocolo. Preciso fazer uma pergunta agora. Como podem estar juntos o sofrimento que vivo e vejo todos os dias e a alegria da fé? A “beleza desarmada” responde também a isto?”. Começa, então, um diálogo sobre a razão científica, sobre como ela não é capaz de explicar tudo, e sobre o que quer dizer precisar aceitar isso. E abrir-se a outras explicações que estão além das humanamente “compreensíveis”...
Entre outras perguntas pessoais e vivas, surge também a de M. J. Khan, que – quase timidamente – pergunta por que, embora sendo um homem de fé, fica triste quando as coisas não vão bem. “Deus ama a liberdade do homem”, responde Carrón: “Deseja que o homem decida amar e reconhecer o seu amor. Não pode acontecer automaticamente”.
O encontro se encerra com a saudação insólita do batista Marlon Hall a Carrón: “Amém, irmão! Amém! O que amo do seu livro, e o que você faz para nos convidar a ter uma vida igual à de Cristo, está na contramão do caminho que o mundo religioso está seguindo. Na Igreja, muitas vezes domesticamos os talentos e os dons das pessoas, mas na verdade quando realmente seguimos o Mistério, a vida é muito mais... selvagem. Quero apenas festejar. Você é um selvagem em busca do meu coração!”. Por fim, um funcionário da Saint Thomas comenta: “Fazemos muitos encontros para favorecer o diálogo inter-religioso. Mas, normalmente, o muçulmano diz: “Eu vejo a coisa assim”. Depois, o batista diz: “Eu, ao contrário, a vejo assim...”. Etc. Esta noite, porém, foi diferente. Vi cinco homens conversando como homens”. No dia seguinte, Nova York: 2.280 quilômetros de voo, para participar de um encontro na Sede das Nações Unidas. Tema: o impacto positivo do diálogo religioso no enfrentamento dos problemas sociais do nosso tempo. Ao lado de Carrón estão o Núncio na ONU, arcebispo Bernardito Anza, que organizou o evento; o professor Amitai Etzioni, judeu, sociólogo da George Washington University; os embaixadores da Indonésia e das Filipinas; e, mais uma vez, Carozza, da Notre Dame, como moderador. Também aqui, o debate gira em torno do acontecimento e da moralidade. Mas é de Etzioni que emerge a essência do encontro, quando diz que Disarming Beauty é interessante porque “tem uma linguagem adequada para enfrentar os problemas da sociedade atual”. À noite, discurso no Sheen Center para a inauguração do Albacete Forum, com quase 300 espectadores. No dia seguinte voamos para Montreal, no Canadá, para mais um debate. Desta vez, quem acompanha Carrón são Anne Leahy, ex-embaixadora canadense, e Mark Phillips, advogado. Outro exemplo do desafio: “Sim, o que se diz sobre o amor é bonito, porém...”. E começa outro diálogo verdadeiro, profundo.

Quatro palavras. No domingo, chegamos a Washington para o último encontro: uma conversa com o Núncio Apostólico nos Estados Unidos, o arcebispo Christophe Pierre. O evento acontece na Georgetown University, moderado por John Carr, jornalista e diretor da Catholic Social Thought Initiative. Quando a primeira pergunta é feita, o Núncio convida todos a comprar e ler o livro. E continua, explicando o por quê: “Primeiro eu li o livro em italiano, depois, em inglês. Fala das coisas importantes para a minha vida. Ajuda a entender a mudança de época que estamos vivendo. E também ajuda a compreender e a amar o Papa Francisco”. Depois de oito dias de turnê pela América, cheia de encontros e eventos, quatro palavras permanecem: acontecimento, diálogo, autoridade e liberdade. Todas se referem ao despertar do “eu” e à natureza do cristianismo. Mas com uma diferença que em muitos momentos emergiu com clareza e que diz respeito à palavra “acontecimento”: ou é algo que desperta continuamente o eu e o educa à capacidade de conhecer a realidade e de se relacionar com Deus agora – como insiste continuamente Carrón – ou permanece um momento preliminar, um fato que pode ter introduzido na vida a decisão de mudar, mas que permanece isolado do presente. Diferença sutil, mas decisiva. Porque, nesta segunda acepção, a vida volta a ser uma questão de esforço nosso, de “moralidade” e de regras. Algo que emergiu em muitos dos debates, e não apenas ali.
Durante os dias da turnê, por exemplo, Rod Dreher, defensor da debatidíssima “opção Bento” (em essência: a guerra cultural, para os católicos, está perdida; é melhor nos recolhermos a âmbitos onde possamos reforçar a nossa fé para nos prepararmos para retornar ao mundo), em seu blog objetava que “para propor a fé”, do modo como gostaria o líder de CL (e o Papa Francisco), “é preciso uma formação sólida e práticas espirituais que deem disciplina à vida cotidiana: sem isso, a ‘opção Francisco’ é apenas emocionalismo”. Talvez seja por isso que o exemplo do apaixonar-se, pelo contrário, tenha sido o ponto de referência de muitas das conversas, o ponto que tocou e surpreendeu mais: “A pessoa não se apaixona estudando ou seguindo certas regras”, lembrou com frequência, Carrón: “Mas se estamos apaixonados, é natural nos comportarmos de certa maneira, ter certas atenções: cuidar da casa, das coisas, do outro... Não é um esforço”. A moral nasce daí, da atração e do desejo de permanecer no acontecimento: a moral não pode ser criada, não é uma questão de esforço. Belo desafio, sobretudo nos Estados Unidos. Mas é uma aventura “para pessoas corajosas”, não?

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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