Muitos já conhecem as prisões administradas pelos próprios presos, que agora já ultrapassaram as fronteiras do Brasil. Mas qual é o segredo? O guia da APAC, Valdeci Antônio Ferreira, conta por que “apostar na liberdade” desafia o sistema
Quando Mário Ottoboni, fundador das APACs, começa a contar a sua experiência, coloca sempre uma premissa: “Se vocês não tiverem o coração aberto, não vão entender o que lhes digo”. Vale o mesmo para ouvir Valdeci Antônio Ferreira, seu discípulo.
Ottoboni é o advogado brasileiro que criou, em 1972, as prisões sem polícia, sem divisões, sem arame farpado, sem revistas humilhantes, sem armas, sem cães de guarda, sem algemas: quem entra lá entra como um ser humano e é chamado sempre pelo próprio nome. “A recuperação começa pelo nome”, diz Valdeci: ele é o diretor executivo da FEBAC (Federação Brasileira para a Assistência aos Condenados) e é o responsável pela aplicação do método APAC, hoje reconhecido e aplicado para além das fronteiras do Brasil.
APAC significa Associação de proteção e assistência aos condenados, mas originalmente era acrônimo de “Amando o próximo, amarás o Cristo”. Tudo nasceu de uma resposta concreta da sociedade civil, de um grupo de católicos, ao sofrimento encontrado nas prisões, e hoje envolve governos e setores do Judiciário.
Com a mostra realizada no Meeting de Rímini e no Rio Encontros do ano passado, milhares de pessoas ficaram fascinadas com o método, que não tem um objetivo diferente daquele previsto na execução penal: a recuperação do prisioneiro. Mas nas APACs – mais parecidas com comunidades do que com prisões – a recuperação passa por uma vida feita de trabalho, espiritualidade, disciplina, estudo. Não importa qual tenha sido o delito, quantos são os anos de condenação: todo recuperando é responsável pela gestão do centro e da própria trajetória, na relação com os voluntários e com a própria família.
Encontramos Valdeci, 55 anos, que em 2017 recebeu, em São Paulo, o Prêmio de Empreendedor Social do ano. Ele era um operário metalúrgico, que não sabia nada a respeito das prisões. “Ainda hoje não sei nada”, diz: “Sou um aprendiz. E espero morrer como aprendiz”. Missionário leigo comboniano, há trinta anos dedica a sua vida aos presidiários.
Qual é o problema das prisões de hoje e dos sistemas penitenciários?
A sociedade comete um equívoco muito grande: pensa que com a prisão já está resolvido o problema. Um preso é o resultado da ausência de políticas públicas, do tráfico de droga... Mas a sociedade não assume o problema: é cômodo, porque não se mete o dedo na ferida, para não correr o risco de ver que no lugar deles poderíamos estar nós próprios. Como diz santo Agostinho: “Não existe um mal que alguém cometa e que ninguém mais seria capaz de cometê-lo”. O que aprisiona a própria sociedade é pensar que quem errou precisa sofrer o máximo possível. Um homem abandonado atrás das grades voltará a agredir a sociedade, porque não resolveu o seu problema pessoal. No Brasil, mas não só, há uma situação grave no interior das prisões: uma presença muito forte de facções criminosas, que dividem o poder entre os presos. Controlam o tráfico de drogas dentro e fora das prisões. Ocupam o espaço deixado vazio pelo Estado: é um sistema de corrupção que envolve todo mundo. E os presos precisam necessariamente fazer parte da facção. Desse modo, ficarão presos pelo resto da vida: sairão da prisão, mas a prisão não sairá deles.
O senhor sustenta que o método APAC marcará, neste milênio, o sistema penal e que, aconteça o que acontecer, depois desta experiência ele não será mais o mesmo. Por que está tão certo disso?
Porque Deus está cansado dessa miséria. De ver seus filhos sofrerem desse modo. APAC é um sonho de Deus, é a resposta d’Ele a esse sofrimento. A mentalidade dominante quer que o preso sofra, ou morra. É um preconceito tão enraizado que não pode ser superado de um dia para o outro. Talvez demore séculos. Mas essa obra está crescendo e está crescendo aos pés da Cruz. No roteiro de espiritualidade agora estamos propondo também a “Viagem do presidiário”, um estudo bíblico do Evangelho de Marco em oito seções: não fazemos pregação de Jesus, mas é o recuperando que vai descobrir quem é Jesus, e fazer a experiência d’Ele. Nós estamos aplicando o roteiro em 44 APACs e em 3 prisões comuns.
Anos atrás, em Itaúna/MG, o preso José de Jesus, condenado a 56 anos de cadeia e com 12 fugas nas costas, respondendo ao porquê ele não fugiu dali, disse: “Porque do amor ninguém foge”. É difícil acreditar que a mudança ocorra de fato somente pelo amor.
Mas é assim mesmo. Para qualquer um. Fugimos de muitas coisas na vida, mas do amor, não. “Do amor não se foge” é verdade com uma condição: que esse amor seja uma experiência vivida. Quando dei as chaves da cadeia para o José, ele viveu essa experiência. É uma experiência que pode esperar três anos. Ou uma eternidade. Ou um piscar de olhos... É uma coisa que não se explica.
Por que o senhor deu as chaves para ele?
José precisava de um gesto de confiança que o conquistasse, para poder percorrer a estrada da libertação. A mesma coisa aconteceu comigo, por exemplo, e com Washington, outro recuperando. Ele era muito agressivo, tivemos muitas dificuldades com ele: não queria fazer nada e contagiava o grupo. Estávamos para transferi-lo quando aconteceu uma das “Jornadas de libertação com Cristo”, que é uma das doze pilastras do método: Washington estava lá, na primeira fila, mas apenas porque era obrigado. Estávamos no auditório do regime fechado, no qual há 8 portões que se abrem e se fecham concatenados. Quando perguntei “Por que vocês não fogem?”, ele foi rápido: “Porque os portões estão fechados”. Então dei ordem para que eles fossem abertos, um a um. “Por que não sai agora?”, perguntei. E ele: “E quem me garante que lá fora não tem alguém que vai me prender?”. “Não acredita? Saia e traga consigo um sinal de que esteve lá fora”. Ele se levantou e saiu. Silêncio absoluto. Foram os cinco minutos mais longos da minha vida! Washington voltou, trazendo na mão um ramo de flor. Eu lhe perguntei: “Por que você voltou? Você tem tantos anos de condenação...”. E ele começou a chorar: “Ninguém jamais confiou em mim”. O amor pode recuperar todo mundo. A partir do nome e de um encontro.
O que é o amor de que está falando?
É a misericórdia de Deus que se dobra sobre nós. O amor tem muitas faces. A primeira é a alegria. A alegria é a estrada mais veloz para se chegar ao coração, para entrar na intimidade de uma pessoa. A outra face do amor é o sacrifício. Quem ama renuncia. Eu passo muito mais tempo com os recuperandos do que com os meus irmãos de sangue, ou com minha mãe. Mas o sacrifício não acontece todo de uma vez.
Em que sentido?
Quando a gente pensa que está a um passo de Jesus, que está para alcançá-Lo, Ele dá um passo adiante. Não se deixa agarrar. Tocá-lo, sim, como fez com aquela mulher doente, mas não se deixa agarrar. São Francisco dizia: “Deus nunca é suficiente”. Outra face do amor é o sofrimento. O sofrimento do outro atinge a minha alma. E depois há o risco. Todo amor é um risco. Se eu amo, preciso arriscar e confiar. Que não significa correr riscos. Num projeto como as APACs temos muitos amigos, como a AVSI, que há anos colabora conosco, mas também muitos inimigos.
Ninguém fugiu das APACs?
Aconteceu. Pouquíssimos casos, mas aconteceram. E por que? Porque não fizeram aquela experiência de amor. Não basta aplicar o método. Quem rompe com o crime não o faz porque a metodologia foi aplicada completamente, mas porque foi criado um vínculo de estima e de amizade: é isso que muda a pessoa. O vínculo é criado de muitas maneiras, as mais simples: um recuperando tem dor de dente, você chama o dentista e ele te diz: “Já sofri muito de dor de dente nas outras prisões”. Para nós não basta que um homem mude seu comportamento: a mudança é externa, mas dentro há um vulcão de rebelião, de desejo de vingança. É a mentalidade que precisa mudar e isso coincide com a mudança do coração.
E como o senhor reage quando alguém foge ou recai?
Eu jamais me pergunto: Valdeci, quantas pessoas você recuperou? Eu me pergunto: Valdeci, você amou? Eugênio, um jovem de 23 anos, depois de cumprir a pena recaiu na droga. E o assassinaram. Diante do seu corpo, eu disse para mim mesmo: o meu amor fracassou. Com o tempo, estou compreendendo que o amor não fracassa nunca: Deus jamais será vencido pelo nosso mal, porque jamais se cansa.
O que é a liberdade para quem foi “privado” dela?
O que quer dizer que somos livres? Quando eu estudava Teologia, essa era a pergunta que me perseguia. Nós nascemos e não escolhemos muitas coisas: os pais, como somos feitos, o lugar em que crescemos... Há uma frase no livro de Julián Carrón, A beleza desarmada, que me impressionou: “A paixão pela verdade caminha de mãos dadas com a paixão pela liberdade”. Penso em Pedro, quando Jesus lhe pergunta, de um modo muito terno, quase cavalheiresco, por três vezes “Tu me amas?”, o que estava fazendo? Estava ajudando Pedro a tirar a máscara, que todos temos, para que fosse ele mesmo. Essa é a liberdade. Nós temos saudade... Temos sede. O amor de Deus é capaz de fazer maravilhas quando nos colocamos diante da grandeza desse mistério que é o homem.
Hoje o método é exportado para fora do Brasil, inclusive para a Europa. Como isso aconteceu?
São experiências muito diferentes. No Chile, por exemplo, já existem 48 prisões com pavilhões APAC. São setores completamente diferentes dos outros: bonitos, limpos, onde cada um tem o seu quarto. Oásis no meio do deserto. Na Colômbia começamos uma APAC feminina, com 40 presidiárias, de um total de 1.800. Em outros países, como na Holanda ou na República Checa, há experiências com presos que estão no fim da pena. Na maior parte dos países, que vão do Uruguai a Hong Kong, o método é aplicado parcialmente, com condições adequadas às legislações nacionais. Na Itália, há uma experiência em Rímini, graças à comunidade João XXIII. Nós damos assistência à distância, porque não temos os recursos para ir além disso: no Brasil está a árvore, mas a semente cai em outros lugares, distantes da fonte, e como manter a ligação com a origem é um tema ainda aberto. Não sabemos o que vai acontecer. Mas a APAC não é nossa, não é de Ottoboni, não é minha, não é do Tribunal de Justiça de Itaúna... Está a serviço de toda a humanidade.
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