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Passos N.94, Junho 2008

EXPERIÊNCIA / UNIVERSIDADE

O professor Giussani:
tradição e imprevisto

por Miguel Mahfoud e Raquel Martins de Assis

O testemunho de Pierluigi Bernareggi, aluno de Dom Giussani no Liceu Berchet de Milão. Memória de sua presença na escola e da relação com os joven se professores

No dia 19 de abril, alguns professores universitários de CL se encontraram em Belo Horizonte. Após uma assembleia sobre o tema Educar: uma comunicação de si e a apresentação de um roteiro de leitura dos textos de Bento XVI sobre o significado da presença no ambiente universitário, tiveram um encontro com padre Pierluigi Bernareggi. Pigi, como é conhecido, foi aluno da primeira turma de Dom Giussani no Liceu Berchet de Milão, na década de 1950. A seguir, o depoimento de padre Pigi e a colocação de alguns professores durante o evento.

Na escola, como Dom Giussani ensinava vocês, alunos, a usar a razão?
Quando Dom Giussani começou a tratar o assunto da razão, nos primeiros tempos de aula, nós estudávamos no colegial. Nestas aulas, ele começava o assunto da razão citando Dante: um poeta italiano cuja obra principal é A Divina Comédia. Naquela obra, que é o itinerário do próprio Dante, do inferno até o paraíso, quem o guia – do mais trágico até o último lance de felicidade, da contemplação da glória eterna – é Beatriz. É ela quem o leva, guiando-o pela mão. Beatriz, na realidade, foi o amor de Dante; e ele a apresenta encarnando a razão. A razão é aquela que, pela mão, conduz o ser humano desde a maior desgraça até a plenitude da glória, da felicidade.
Dom Giussani usava essa imagem conhecida por nós. Porque felizmente ou infelizmente, naquela época, na Itália, tínhamos de estudar Dante; mesmo quem não fosse cristão, mesmo na escola pública. Era uma das muitas contradições: em uma escola pública italiana, ateia, neutra, laicista, isto é, por princípio totalmente contrária a qualquer tipo de definição objetiva de sentido da vida, era obrigatório o estudo de A Divina Comédia por mais de um ano. Usando esta imagem que era conhecida por todos nós, ele defendia o fato de que a razão é a condição humana para a fé, que o dom da fé, como um dom de Deus, não pega a não ser que atinja uma realidade humana, pré-existente e disposta. Essa realidade humana pré-existente e disposta é a razão. De modo que o cristianismo não só não é contrário à razão, ou indiferente à razão, mas necessita radicalmente da razão para existir, pois ele é resposta aos maiores anseios do espírito humano – em todos os sentidos, mas privilegiadamente, no sentido da inteligência e da razão.
Por que é a razão que guia? Por que não é o sentimento ou a emoção a guiar? Porque dentre todas as faculdades que temos, como seres humanos, a razão, a “luz intelectual” é o que sintetiza todas as outras faculdades.
A descrição dantesca da visão beatífica que ficou gravada em mim, o famoso decassílabo de Dante (Paraíso, 30) diz: “luce intellettual piena d’amore, / amor di vero ben pien di letizia, / letizia che trascende ogni dolzore”. Traduzido é: “luz intelectual, cheia de amor, / amor de verdadeiro bem, cheio de letícia (alegria, felicidade), / letícia que transcende qualquer doçura”. Este é o carro-chefe da visão beatífica. Aí temos toda uma noção, todo um sentido, toda uma intuição da estrutura fundamental do ser humano, da experiência humana.
Quando se fala de razão, é preciso esclarecer que a consciência humana trabalha de duas maneiras: uma é a original e outra, derivada. A forma original de a consciência humana trabalhar é a inteligência ou intuição: imediata identificação entre o conhecer e o ser, é uma transparência originária, anteriormente à qual, nada existe. Esse convívio imediato e originário entre consciência humana e a realidade se chama evidência. A natureza própria dessa experiência originária que é intuição intelectual permite o desdobramento dela sobre si própria: a reflexão. Como a própria palavra indica, reflexão é a capacidade de auto-conhecimento que a experiência humana tem. Dentro deste processo de reflexão é que a inteligência originária se transforma em razão: a capacidade de revisitar, de reconhecer a sua experiência originária. A luz intelectual é absolutamente infalível. Nisso é que consiste a imagem e semelhança de Deus, no sentido mais radical, no ser humano: esta imediata e indiscutível originária validade da evidência. Imagem e semelhança de Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo face a face: capacidade de auto-desdobramento face a face da consciência com sua própria experiência. É no nível da reflexão (e não da evidência) que pode se introduzir o veneno do pecado original. O modo como, em geral, se fala em razão engloba tanto o primeiro e fundamental aspecto como também toda a sucessiva capacidade de indagação, reflexão, reconhecimento, passagem. Ali realmente a mente humana tem uma capacidade fantástica de análise, de intuir, etc. Quando se fala de razão entende-se o fenômeno todo do conhecimento humano. Dante colocava como sua guia o seu primeiro amor – Beatriz – chamando-a de razão.
Dom Giussani nos estimulava a redescobrir o valor do pensamento, numa época em que efetivamente já estava dominando em todos os sentidos o problematicismo moderno. No pós-moderno, o problematicismo é superado, porque sobra só o conhecimento científico: não resta mais nenhuma forma de conhecimento. Na nossa época ainda existia aquela pretensão de destruir todas as outras pretensas visões do mundo em nome da problematicidade absoluta e total do pensamento. No mundo de hoje não se pensa mais em uma problematicidade absoluta e total do pensamento, porque o pensamento é reduzido ao pensamento científico, no qual não existem dúvidas de nenhuma natureza. Tanto que ele é absolutamente tudo: de todos e de ninguém. Nem de longe, chega-se a supor que o conhecimento científico possa ser falso. Falsa é toda outra forma de conhecimento que não coincida com o conhecimento científico. E os problemas postos não em nome da ciência são pseudo-problemas, isto é, são problemas psicóticos que devem ser tratados com psicólogo.
O trabalho de Dom Giussani era muito grande porque nos encontrava num clima de absoluto desnorteamento e cinismo com relação ao pensamento humano. Vivíamos realmente no clima do problematicismo absoluto, de problematizar qualquer posição. Depois se detectou ser uma verdadeira doença, do ponto de vista da consciência humana. Por isso rapidamente se introduziu o domínio do pensamento científico que dá garantias de validade. O ser humano não pode aguentar longos períodos históricos sem a possibilidade de algumas certezas. Destruídas todas as outras certezas além da científica, esta fica como horizonte absoluto, total, dominador, que explica tudo no mundo pós-moderno. Dom Giussani muito agudamente percebeu essa guinada do “andar da carruagem”.
Terminada a escola, quando estávamos na universidade, ele nos incentivou a entrar em todos os campos de estudo. E incentivava muito também a vocação para qualquer tipo de estudo científico. Lembro-me de quando eu era universitário, que no último ano de filosofia nós editávamos mensalmente um folder tomando algum aspecto dos grandes textos científicos mais badalados dentro dos colégios e das universidades, analisando a conexão entre grandes teses da ciência e a verdade cristã. Fizemos várias fichas por mais de um ano. Eram fichas até de um papel mais grosso para que pudesse ter uma duração maior e tinham um formato tal que poderiam ser colocadas dentro dos livros para que os estudantes pudessem consultar e na “hora H” tê-los à mão. Era algo concebido de um modo muito interessante, de uma forma agressiva, para mostrar como a ciência e a fé não se contradizem, pelo contrário, colaboram. Um dos grandes temas foi o princípio de indeterminação de Heinsenberg (você não pode definir a posição de um elétron, porque qualquer meio usado é feito de elétron) jogando por terra a pretensão de definição absoluta e total da ciência, mostrando seu limite, recuperando todo o sentido da razão como evidência, como capacidade que nós temos de definição simples, definitiva, válida, não por passagens racionais, mas por intuição originária, pela evidência das coisas; o que a ciência, no seu limite último, não alcança. É a famosa frase: “a especialização científica consiste em saber cada vez mais de cada vez menos, até chegar a saber tudo do nada”. Era uma verdadeira oficina de gnosiologia para os estudantes do colegial.

E Dom Giussani entrava na classe com vocês já pronto para essa discussão em aberto?
Dom Giussani levantava a questão para nós que estávamos totalmente dopados naquele ambiente problematicista. Nosso professor de filosofia, quando entrava na sala de aula, a primeira coisa que fazia era perguntar: “Quem acredita que a verdade existe?”. Em nossa ignorância, levantávamos a mão e falávamos “eu acredito”, e ele ria e dizia: “Por isso é que vocês têm de ler, para aprender comigo que a verdade não existe”. E daí fazia toda a história da filosofia nessa ótica. Na minha época, no segundo grau, a história da filosofia era o carro-chefe de todo o estudo no liceu clássico (depois havia o liceu científico que enfrentava a questão de Heisenberg, por exemplo). A história da filosofia era revisitada pelo nosso professor no sentido de mostrar que com tantas opiniões contraditórias e incoerentes – depois de estudar por três anos –, a conclusão final era de que a verdade não existe. Iniciando tudo com a afirmação de que o objetivo final era este; e, de fato, no fim, o aluno estava totalmente dopado.

E como Giussani conseguia que vocês se interessassem por um tema desses?
Revitalizando em nós a capacidade de intuir a imediata evidência da realidade. Ele inventava exemplos de tudo quanto é jeito: apresentava o famoso exemplo da sopa (ou bife)1, ou debatia com o professor de filosofia. Ele uma vez chegou abraçado com esse professor como um grande amigo: “Oh, como é que vai? Existe Nova York?”. Ao que o professor respondeu: “Sim!”. “Então porque você fala para os seus alunos que a verdade não existe?” 2 e conversava de cá e de lá... E no fim do intervalo de 15 minutos tinha de chamar o bedel para separar os dois e todos entrarem na sala de aula. Ele se relacionava com todos, mesmo os que culturalmente seriam inimigos.
É engraçado pensar que para Claudio Risé, que era o chefe de toda a facção mortalmente contrária a Dom Giussani (hoje famoso psiquiatra e amigo de Comunhão e Libertação), depois de 40-50 anos aqueles princípios acabaram prevalecendo.
Naturalmente, depois passava para outras questões e utilizava outros recursos. Um deles, que me lembro muito, era o de chamar a atenção para a beleza diante da natureza, como quando nas férias nós rezávamos a dezena do rosário no fim do dia, lá pelas seis horas da tarde, diante do pôr do sol; porque a beleza não é só subjetiva, é objetiva. A beleza não é uma subjetiva extrapolação do sentimento, da afetividade, da emoção. Nas férias, ele ia nos mostrando aqueles lugares fantásticos, aquelas montanhas... Ficou gravada em nós aquela concepção. Como diz aquela fantástica frase de Heidegger: “O pensamento floresce quando temos a coisa diante dos olhos” 3 .

Quando o senhor apresentou no Meeting de Rímini de 2004 “As razões de um início” me chamou a atenção a paixão educativa de Dom Giussani, que marcava uma posição de contraposição em relação àquilo que todos pensavam ou que não levavam em consideração como a experiência vivida.
Um dos sinais dos adeptos do pensamento moderno, do pensamento flébil, fraco, é o medo que se tem de enfrentar o chavão comum. Quando aparecem na televisão altas autoridades dizendo que o zigoto pode ser usado para fazer qualquer coisa enquanto não estiver implantado no útero porque assim ainda não seria um ser humano, essa visão absurda não encontra reação alguma. Mesmo em nossos movimentos familiares. Realmente nossa formação é para um pensamento fraco, raquítico. Agora, se havia uma coisa clara em Dom Giussani era o vigor do pensamento, o vigor geral da personalidade.

Ele nunca recuava?
Não, ele sempre atacava! Dentro do clima da nossa época de formação, sobretudo no colegial, o clima era ferrenho, de ataque violentíssimo. E essa violência toda tinha de se defender, tinha de reagir diante do ataque de Dom Giussani. Não era a violência anti-clerical que devia ser rechaçada por Dom Giussani, eram eles que tinham de se defender – se conseguissem – diante da irrupção de Dom Giussani no nosso meio. E não era ele sozinho, porque os professores que tinham uma formação imediatamente fizeram um quadrado com ele. Havia um professor grandíssimo, professor de grego que deixou marcas, tinha uma cultura ilimitada. Ele começou a ensinar grego mostrando toda a pujança do cristianismo no mundo grego, usando o livro “Sabedoria grega e paradoxo cristão” do famoso Charles Moeller. Era um grande homem! Enquanto Dom Giussani não tinha aparecido, ele não tinha garra para investir; quando se juntaram, formaram uma grande dupla.

Não ficavam com ódio de Dom Giussani?
Não. Porque não tinha jeito, Dom Giussani era amigo de todo mundo. Eles debatiam com ele até “espumar” de tanta raiva do debate. Mas depois iam beber juntos no bar perto da escola na maior felicidade.
Eu não estive no enterro do Dom Giussani, mas me disseram que muitos desses professores com quem ele debatia, que nunca se imaginaria que fossem lá, estavam presentes naquele momento.

Ao mesmo tempo que Dom Giussani era ferrenho contra as ideias deles, era amigo deles?
De uma amizade comovedora. Eu podia ter tido um choque, é lógico. Uma pessoa em formação se encontrar no meio de uma arena dessas, poderia ter causado traumas. Mas eu tenho daquela época uma lembrança toda positiva. Um amigo de sala de aula, daquela época, esteve recentemente morando comigo por alguns meses e comentávamos como a experiência positiva de todo o conjunto – não só de Dom Giussani –, do conjunto de nossa época de estudantes, mesmo dentro daquela bagunça. Mas com o jeito de Dom Giussani de ser capaz de estabelecer nexos, tudo servia para a nossa formação. Nós não vivemos aquilo como um trauma.
Ele era contra-corrente mesmo dentro da Igreja Católica: naquela época, um movimento juvenil de homens e mulheres juntos era algo absurdo. Criou contendas também com todo o clero, párocos, bispos, porque fazíamos tudo juntos: férias, encontros... Houve muito atrito. Mas ele nunca foi impedido pelas autoridades de fazer esse tipo de coisa. Porque a prática demonstrava como uma convivência cheia de Presença é equilibrada, esclarece, dá firmeza e estabelece uma comunidade cristã real. Se aqueles outros fossem fazer encontros de rapazes e de moças juntos, do jeito que eles estavam sendo orientados, com certeza iria acontecer alguma confusão – lógico! – por não ser aquele tipo de convivência.

Como essa experiência marcou a sua vinda ao Brasil?
Quando se chega num lugar diferente, se trocam ideias a toda hora. O choque cultural que sentimos foi a pressão para esquecer nossa experiência pregressa, para nos adaptarmos e nos aculturarmos, querendo arrancar as raízes para poder se enraizar numa outra coisa. Mas pensávamos – pela formação que havíamos recebido – que “nada de humano nos é estranho” (S. Justino), que você não precisa se despojar de uma humanidade para viver outra humanidade, que você chega a qualquer lugar não como estranho, mas como ser humano. Ao passo que nos diziam “cuidado… não deixe transparecer muito, porque senão vão achar que você está fazendo colonialismo cultural”. E parece-me que ainda exista muito disso. No fundo é um complexo de inferioridade. Porque se você não está consciente do valor de sua cultura vai se precaver contra as possibilidades que as outras culturas desviem a sua. Mas se você está consciente de sua cultura, acha muito interessante que mais pessoas participem para que as coisas possam se ampliar, para se valorizarem mutuamente.
Porém, diante disso não perdi o horizonte. Nas reuniões entre nós discutíamos que não estávamos aqui como estranhos, mas levando adiante as experiências junto com o povo: a Igreja é uma só. Tínhamos o sentido ecumênico-cultural do cristianismo, como sendo horizonte global de toda a consciência da humanidade.
Hoje há a globalização, inclusive com a internet e se pode utilizá-la para fazer justamente colonialismo cultural. É possível observar como algumas redes de TV têm grande capacidade de massacre cultural, e são foco de violento colonialismo cultural. Estes instrumentos podem ser usados não como instrumentos de confraternização da nossa humanidade, mas como instrumentos de dominação.
Uma das coisas interessantes que se vê na revista Passos é como Comunhão e Libertação consegue se enraizar rapidamente em qualquer canto do mundo, em qualquer situação, ambiente, desde as mais miseráveis até a alta intelectualidade, nos cinco continentes.
As premissas sempre foram estas com Dom Giussani: capacidade de valorizar toda e qualquer forma de experiência humana. As aulas dele eram cheias de citações, utilizando autores que não se esperava: ele citava Marx e os poetas italianos considerados mais anti-clericais e absurdos para nos mostrar como é o cristianismo. Isso era muito característico da formação que recebemos.

Isso era de Dom Giussani? Ou da formação que ele havia recebido no seminário?
Ele mesmo citava quais os professores dele que lhe ensinaram essas coisas. Citava mesmo! Ele tinha um amor por determinadas figuras, seus mestres, que era impressionante. Uma dessas figuras era a mãe dele, naturalmente. Do pai ele não falava muito, mas da mãe, demais. Ele entrou no seminário com 11 anos: toda a base de sua educação foi dentro do seminário. Então, os elementos fortes do seminário lhe deram toda esta estrutura.
Vocês nunca devem imaginar Dom Giussani como uma espécie de “cogumelo estrambótico” dentro de um ambiente chato. Vocês têm de imaginá-lo como um fruto maduro de uma grande tradição, a tradição do cristianismo no mundo.

Uma outra vez você falou que considera como sinal de que Dom Giussani era um grande mestre justamente o fato de que ele se referia frequentemente aos seus grandes mestres. Por que você considera este um fator fundamental do ser mestre?
Sem mestre você não é ninguém. O conceito de autoridade é outro que dava choque na hora, naquele mundo individualista, totalmente problematicista. Falar de autoridade era suicidar-se, devido ao modo como estava organizado aquele ambiente. E como ele nos ensinava a importância da autoridade! Sem autoridade não existe educação, porque ela ajuda a pessoa em sua humanidade: é na verdadeira autoridade que você identifica toda a possibilidade que o ser humano tem. A autoridade não reprime as possibilidades, mas cria o clima para que as possibilidades todas possam se expandir. Sem autoridade você não consegue sozinho se aumentar: seria como puxar os próprios cabelos e querer se suspender.
Ainda hoje, mesmo em certas reuniões pastorais, ainda que na presença de bispos, quando se fala no valor da autoridade acontece um enorme mal-estar, sobretudo quando o clima é de um pensamento feito de chavões. A cultura de hoje é uma tristeza, sobretudo aqui, porque o Brasil é visado por tantas formas de ideologia. A ideologia vem, vai roendo as pessoas por dentro e assim cria uma fraqueza mental mesmo dentro do nosso meio católico.

Às vezes me surpreendo: como Dom Giussani sabia tanta coisa, que ampla formação ele teve, como ele conseguia ler tanta coisa? Mas agora estou entendendo que ele se interessava, na verdade, por uma coisa só e todas as coisas...
Ele se interessava por uma coisa só que o colocava em posição de captar muitíssimas coisas. Você é capaz de valorizar tudo quando está numa posição que valida tudo. Primeiro, Dom Giussani tinha uma capacidade de síntese e de discernimento que era uma genialidade que todos reconheciam. Era uma mente realmente universal, formado dentro de um grande Seminário como o da Arquidiocese de Milão que, embora desconhecido por tantos, vinha da época dos Santos Padres como uma tradição verdadeira e ininterrupta. Ali ele foi formado por meio da caminhada de toda uma história de meditação, de pensamentos e espiritualidade que vêm dos Santos Padres, efetivamente. Dos 11 aos 24 anos: foram treze anos vivendo, visitando esse mundo cultural do cristianismo, e com grandes professores, com grandes mestres.
Então, juntando essas coisas todas... É lógico que foi a genialidade própria dele que permitiu – parece-me – o imprevisto. Eu nunca vi Dom Giussani ler nada! A não ser que de uma até as cinco horas da madrugada ele lesse, não sei. Porque nós convivíamos com ele a partir das sete horas da manhã. Terminada a aula havia a reunião de Giuventù Studentesca, e à noite ainda tinha ensaio do coral, não sei mais o quê, e depois íamos embora para dormir. E nunca o vi com um livro na mão.
Então, onde é que ele produziu as dezenas de livros que publicou? Os seus livros são coletâneas de suas falas. Se dependesse de Dom Giussani, não haveria esses livros. São todas redações a partir de gravações. Graças a Deus acharam um jeito de transferir todas essas fitas para CDs, que depois passam para livros e são editados. Mas nunca vi Dom Giussani escrever ou ler qualquer coisa. Eu tenho coisas que ele escreveu para mim, mas são cartas, aí sim.
Foram treze anos de uma grande obediência educativa dentro de um ambiente tremendamente propício, extremamente favorável, onde realmente conseguiu – com certeza – se equipar para o resto da vida nesse tempo de estudo e livros. E o resto foi o quê? Osmose de convivência.
De modo que nós temos de estimular muito as pessoas a adquirirem, no tempo de sua formação escolar – que vocês estão gerindo –, uma facilidade para encarar os problemas, para manusear as ideias, que depois, no resto da vida, elas não precisem daqueles instrumentos mais. O instrumental acadêmico é um instrumental, não pode ser a condição cultural que a pessoa tenha para a vida inteira ser assim. A não ser nos casos raríssimos de pessoas que têm essa vocação. Não é o caso de encher a estante de livros achando que é a sua produção cultural que trará coisas para o mundo. É muito mais interessante equipar uma pessoa – por meio dos livros e técnicas – para ela poder sair pelo mundo afora transformando o mundo, criando comunidades.
O que nós aprendemos com Dom Giussani é a comunidade, é a comunhão fraterna em Cristo como sendo o esteio da vida, o pano de fundo de tudo. É a comunidade encarnada, a comunidade no ambiente, na situação real. E quando você mexe com comunidade, não sobra tempo para você ficar instruindo muitos processos mentais de formação intelectual. Mas você precisa dessa ferramenta para daí em diante lidar com os corações e as mentes de forma adequada.
É lógico que quem é professor, como vocês, vai fazer isso como profissão e vai fazer isso a vida toda. Mas não pensem que essa seja “a” finalidade. Vocês escolheram essa profissão, portanto, a ferramenta é essa. Agora, o produto desse trabalho deve ser o ser humano capaz de comunicar, capaz de entender, capaz de descobrir caminhos, capaz de ensinar, sem precisar de livro algum, porque o livro é ele mesmo.

Notas

[1] Cf. Giussani, L O senso religioso. São Paulo: Nova Fronteira, 2000, p.39
[2] Idem, pp.34-36
[3] Cf. em Tracce de abril de 2008 o artigo de Luca Doninelli intitulado “Heidegger e Giussani”. A frase citada está na p. 57.

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Testemunhos:

Diante dos alunos e do desafio da presença na universidade tenho entendido que o ponto-chave é mesmo colocar a pergunta “O que buscais?”, de modo que questione e provoque a um aprofundamento de experiência. Tenho aprendido não só a questionar, mas a afirmar algumas certezas. As aulas de ética querem ajudar a fazer escolhas, ali enfrentamos temas polêmicos da atualidade: células-tronco, bioética, casamento homossexual. Partimos de uma posição clara, baseada na Doutrina Social da Igreja, propondo na sala de 60 alunos um debate a partir da posição que considero a melhor, sugerindo que seja examinada por eles, convidando-os a entrarem com tudo o que são, afirmando que aprendi a não ter medo da razão. Os debates são intensos, chegando a ser extenuantes, tentado responder as várias argumentações.
Estamos em um momento de grandes desafios culturais: precisamos ter um discurso elaborado e apresentar respostas, mas não é só isso. Esse nosso movimento de chamá-los a se posicionar, a formular suas argumentações, é por um desejo de que eles assumam a própria vida e olhem para tudo. O discurso pode convencer o outro, mas tem muitos limites também: posso demonstrar que nossa posição é a mais inteligente, mas o que está em jogo é a vida inteira dele, não o meu discurso. Eu afirmo uma verdade, um modo de estar no mundo e depois cada um responde com a sua liberdade. Alguns respondem não, outros, querendo responder sim, vêm pedir mais indicação de leitura sobre o tema abordado, desejando mais. O que posso oferecer? Não é outro discurso intelectual. Nesse ponto, às vezes chego a dizer: “Você está procurando uma resposta que nenhum livro vai dar. É também isso que eu procuro, assim como algumas pessoas aqui. Se quiser, venha junto conosco”. Consigo me manter nessa postura, mesmo diante do cansaço e do limite das circunstâncias, por um trabalho pessoal, sim, mas também por uma companhia – professores com quem tenho a graça de compartilhar o que vivo. É o que me ajuda a não sobrepor um discurso, mas chamar a liberdade de meus alunos para que eles possam, tomando posição, encontrar a raiz da vida deles.
De fato, combatendo o relativismo de fundo, fazendo um caminho lógico para entender qual é o fundamento da moral na experiência humana, vejo alguns rapazes compreendendo nossa posição cultural, até abertos à proposta da Igreja e do Papa. Eles entenderam um discurso, num certo ponto de vista o mundo pode melhorar porque eles vão defender a vida, e diante disso me surpreendo perguntando: “Mas o que é capaz de mover esses garotos?”.
Marli, professora de ética

Trabalho com bioética e nos últimos dois anos estive exposto como nunca no debate na universidade e na sociedade que me tem trazido implicações difíceis. Porém, hoje faço uma experiência de serenidade e liberdade, fruto da graça e de um percurso pessoal dentro de uma companhia precisa. Estou dentro de conflitos e debates constantes: o plenário pode vir a baixo, mas estou livre. Numa reunião com indústrias farmacêuticas, falando sobre um tema de bastante impacto, recebendo críticas à comissão da qual faço parte, como se estivesse impedindo a entrada de pesquisas no Brasil, eu olhava o rosto duro e transtornado das pessoas: dei-me conta de viver algo muito diferente. Mesmo diante de grandes embates e até derrotas de algumas batalhas, afirmo que esse contexto não me preocupa: faço uma experiência de serenidade e liberdade. Surpreendo-me ao ver que muitas pessoas começam a me tomar como referência e a me procurar. Tive a graça de entender que isso não é expressão de capacidade e inteligência, mas resultante da afirmação da certeza que tenho. O ponto de partida é “quem sou eu?” – por isso sempre pode haver um “novo início”. Justamente por isso, resolvi explicitar no meu curriculum público que pertenço à Comissão Pontifícia para a Vida. Teve um efeito muito importante para mim, foi um dos grandes passos para minha experiência de liberdade, ainda que me traga algumas hostilidades.
Dalton, professor de bioética e odontologia

Não podemos desperdiçar nossas energias com a preocupação sobre o resultado de nossa proposta e nossa presença. Não é um problema nosso; porque é problema de um Outro: “Aquele que começou essa boa obra há de levá-la a cumprimento”.
Tantas vezes me vejo numa situação em que quase poderia dizer que a realidade está conspirando contra mim. Mas faço também a experiência de me surpreender que o meu dia está acontecendo. É um Outro que faz: sou tocado por testemunhos no meio do caminho.
No ano passado, depois de uma palestra, alguns alunos pediram para continuar a se encontrar comigo, mesmo sem clareza do que queriam debater. Propus que nos encontrássemos para enfrentar temas sobre os quais normalmente não se fala na psiquiatria. Eles propuseram logo a questão da religiosidade. E enfrentando preconceitos, resolvi esboçar um texto comunicando meu percurso, contando o que é religiosidade na minha experiência, onde apareciam Carrón e Giussani. E sugeri que buscássemos textos contendo experiências de pessoas que consideramos valer a pena conhecer. Trouxeram artigos sobre liberdade e respondi com outro texto de Giussani sobre o mesmo tema. Eu muitas vezes ficava meio constrangido quando um texto de Giussani chegava a falar explicitamente “Cristo”, pois temia que se sentissem enganados. Agora não há mais esse constrangimento, mesmo que um seja judeu, outro espírita, etc. Disse a eles: se conto que fiz uma viagem ao Rio de Janeiro e o que significou para mim, se é uma experiência de grande verdade, quem ouve não diz “eu também quero ir ao Rio de Janeiro”, mas “eu quero viajar”. Posso ler com eles os textos que falam de Cristo porque é a viagem que eu faço. Assim como eu não a construí, não sei se e quando eles serão chamados à mesma viagem, mas posso comunicar e partilhar a experiência humana e sobre isso dialogar com liberdade.
Sérgio, professor de psiquiatria

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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