Provocados pela polêmica envolvendo Bento XVI e a Universidade La Spaienza, de Roma, em janeiro passado, professores e universitários de São Paulo promoveram um encontro sobre o tema da razão. Uma abertura que permite afrontar todas as circunstâncias
“Hoje em dia a universidade parece mais preocupada com a discussão sobre a cultura, entendida como aquilo que a sociedade humana produz e pensa de si mesma, do que com a busca da verdade.” Foi com esta afirmação que Luiz Felipe Pondé, professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP, iniciou o debate “A Razão em Busca da Verdade”, promovido no dia 15 de março pelo grupo dos universitários (CLU) de São Paulo.
Embora possa parecer sutil, tal distorção vem contaminando progressivamente o ambiente acadêmico. Exemplo disso é o autoritarismo dos que em janeiro último impediram o Papa Bento XVI de proferir a aula inaugural na universidade romana de La Sapienza. Em nome da “autonomia universitária”, grupos bem organizados realizaram uma onda de protestos contra a presença do pontífice naquela instituição; e assim os que se diziam defensores da “liberdade de pensamento” perpetraram um grave atentado contra a liberdade de expressão. O episódio, que ganhou destaque na mídia italiana, passou despercebido por aqui – sintoma de que também no Brasil a mesma patrulha ideológica controla boa parte da imprensa e se encontra confortavelmente instalada em diversos círculos acadêmicos.
A incongruência da censura ao Papa fica ainda mais evidente para quem se dispôs a ler o texto da aula que ele ministraria naquela ocasião (ver em Passos março/08, p.44; nde). Não por acaso Bento XVI principia fundamentando corajosamente a autonomia universitária, ao declarar que por natureza a universidade deve ser livre diante de quaisquer “autoridades políticas e eclesiásticas”. Mas – é oportuno lembrar – essa desejável autonomia não se fundamenta numa abstrata ausência de vínculos: Ratzinger esclarece que a universidade não pode se submeter a interesses particulares para “estar vinculada exclusivamente à autoridade da verdade”.
Provocados pelo desafio que o Papa lançou à universidade, alguns amigos do CLU de São Paulo decidiram propor como encontro de início de ano um debate público sobre o texto que seria proferido em La Sapienza. A mesa redonda reuniu cerca de 200 pessoas na PUC-SP e contou com a participação de Marli Pirozelli, do Centro Universitário da FEI, além do já lembrado Luiz Felipe Pondé.
“Um dos objetivos do Papa foi o de, mais uma vez, oferecer alternativas ao relativismo dominante na cultura de hoje”, disse Pondé. O professor observou que, ao promover a “dissolução da validade das palavras”, a postura relativista prejudica a razão: ao pressupor-se que não há verdade a ser encontrada, perde-se também a noção de erro, que é fundamental para todo movimento da inteligência. Sem a percepção do “incômodo” que o erro causa, não há mais estímulo para seguir adiante, aprofundando e aperfeiçoando o conhecimento. Assim, o relativismo termina por gerar uma acomodação, paralisando o impulso de buscar aquele quid último, o absoluto “que se opõe como uma barreira elástica” à investigação humana, como expressou o matemático italiano Francesco Severi (apud Giussani, L. O senso religioso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 77; nde). Por isso Pondé ressaltou que, segundo Bento XVI, “a razão tem necessidade da relação com Deus, este ‘norte’ que nunca nos deixa parados”.
Mas isso não é tudo. O relativismo acarreta ainda a perda de confiança na razão, como demonstra o fato de hoje já não se acreditar mais na possibilidade de se afirmar com segurança algo de verdadeiro fora do âmbito estritamente científico. Daí a importância da pergunta que o Papa formula em sua aula: o que é a razão? Ao identificá-la apenas com a lógica, a cultura moderna termina por excluir do âmbito racional as questões mais especificamente humanas, tais como o amor, o sentido da vida ou do sofrimento e a percepção da insuficiência que o homem consciente de si experimenta diante de seu desejo de infinito – o que significa dizer que a própria razão é usada, muitas vezes, de modo paradoxalmente “irracional”.
Alargar a razão
Perdida a tensão que nos impulsiona rumo à verdade, resta apenas a busca do consenso. Ao invés de almejar aproximar-se cuidadosamente do sentido da realidade, o trabalho da inteligência fica limitado à tentativa de convencer os demais sobre determinado ponto de vista: tem “razão” aquele que consegue o voto da maioria. Nesse sentido, a atitude de Bento XVI é uma autêntica defesa da liberdade humana, como observou Marli Pirozelli. Com efeito, quando deixa de fazer referência à verdade, o homem torna-se escravo dos interesses particulares de quem consegue impor seu ponto de vista à maioria – ou seja, daqueles que detêm o poder. Nas palavras do Papa: “Com base na sua origem, a mensagem cristã deveria ser sempre um encorajamento à verdade e, consequentemente, uma força contra a pressão do poder e dos interesses”.
Trata-se de uma questão crucial para os dias de hoje, em que consensos muitas vezes alcançados com base na desinformação são erigidos como critério da ação política e tidos como único fundamento válido para discussões sobre direitos civis ou questões éticas. Impossível não lembrar do debate que estamos assistindo sobre o uso de células-tronco embrionárias: no vale-tudo para angariar adesões (e garantir polpudas verbas para suas pesquisas), certos cientistas não têm vergonha de desconsiderar até a verdade mais evidente, a dignidade da vida.
Compreende-se, portanto, a importância do grande desafio que Bento XVI tem proposto ao mundo contemporâneo: é preciso “alargar a razão”. A fé que não dialoga com a razão torna-se frágil e incapaz de se revelar como algo que torna a vida mais fecunda e humana, dizia Ratzinger na aula proferida em 2006 na Universidade de Regensburg. Desta vez o Papa lembrou que, por outro lado, a razão também não deve se furtar ao diálogo com a fé, uma vez que ela representa uma “uma força purificadora para a própria razão, que a ajuda a ser cada vez mais ela mesma”. E não se pense que esta sugestão seja dirigida apenas ao grupo dos que partilham da mesma fé: Bento XVI encara abertamente a objeção segundo a qual as reflexões alimentadas pela experiência religiosa devem ser excluídas do âmbito acadêmico como não neutras e, portanto, não “razoáveis”. Baseando-se – surpreendentemente, diga-se de passagem – na obra de um filósofo laico como o americano John Rawls, o Papa defende a dignidade pública da mensagem cristã, argumentando ser ela portadora de uma “razão ética” que não deve ser desconsiderada num debate de ideias realmente aberto e pluralista. Durante a Idade Média, lembra o Papa, as Faculdades de Teologia e Filosofia foram a espinha dorsal da universidade. Nelas se introduziam continuamente as questões sobre o homem e o sentido de sua existência, contribuindo para evitar o fechamento da razão apenas no horizonte necessariamente mais restrito das ciências particulares.
Ao final do encontro, uma das numerosas perguntas endereçadas aos palestrantes foi formulada por um estudante de Engenharia: como é possível viver o desafio de expandir a razão no contexto atual, ainda mais num curso recheado de matérias técnicas? A resposta de Marli Pirozelli é uma provocação para todos nós, não apenas estudantes e professores universitários: “Alargar a razão é levar a sério todos os aspectos do real e da experiência humana, percorrendo todo o itinerário que vai das circunstâncias até a percepção do mistério que sustenta a realidade”.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón