As eleições viraram uma deixa para confrontos violentos, com milhares de vítimas e uma forte divisão entre as tribos. O país africano continua a viver entre o caos e a estabilidade. Mas os responsáveis da comunidade de CL dizem que vem nascendo uma certeza. Positiva
Este ano, no Quênia, as eleições presidenciais foram um acontecimento particularmente marcante para a comunidade de CL. Pela primeira vez, preparamos um panfleto de juízo. A nossa experiência no Movimento, a Doutrina Social da Igreja e a carta que os Bispos do Quênia escreveram por ocasião das eleições foram os pontos de partida para este panfleto.
No documento, intitulado "Somos chamados a ser construtores do bem comum", observamos como a experiência que vivemos nos tornou conscientes do valor infinito de cada pessoa e da realidade. Sobretudo, nos ensinou a valorizar e a olhar de frente o desejo de felicidade que temos e que é comum a todo homem. Encontramo-nos muitas vezes para trabalhar sobre este manifesto, lembrando-nos da esperança gerada pela experiência que vivemos.
Então, cada um de nós votou, no dia 27 de dezembro, partindo desta certeza. No dia 30 de dezembro, com alguns dias de atraso, foram anunciados os resultados, que proclamavam Mwai Kibaki presidente. No país, a reação imediata foi violência e destruição. Como foi dito muitas vezes pelos jornais nacionais e estrangeiros, o partido de Kibaki (Pnu) é mantido principalmente pelos Kikuyu, a tribo mais numerosa do Quênia. A oposição, pelo contrário, tem o apoio da população que reside nas regiões ocidentais, habitadas por tribos como os Kalenjins, os Luo e os Luhyas. A violência foi maior exatamente nesta região.
Verificação da experiência
Era nesta região que eu me encontrava no dia seguinte às eleições. Minha família é de Eldoret – pertenço à tribo dos Kalenjins –, onde nos encontramos para votar. Nos dias subsequentes à proclamação dos resultados, ficamos trancados em casa porque Eldoret foi uma das cidades mais atingidas pelas manifestações e pelos confrontos. Havia muito medo e incerteza. Temíamos que as coisas pudessem se transformar em um genocídio.
Todavia, exatamente este momento de medo e perturbação transformou-se em uma grande ocasião de verificação da nossa experiência cristã. Assim que as desordens começaram, imediatamente recebemos ligações de nossos amigos da comunidade, que estavam em Nairobi. Muitos nos escreviam mensagens no celular. Um deles dizia que o que estava acontecendo era uma ocasião para verificar que Cristo responde às nossas necessidades, mesmo em uma situação deste gênero. Levei a sério essa provocação.
Certeza e Mistério
Sou da tribo Nandi, um pequeno grupo Kalenjin, que era protagonista das violências contra os Kikuyu. Os amigos do Movimento no Quênia pertencem a várias tribos: Kikuyu, Luo, Luhya, Meru, Masai... A maioria das pessoas da minha Fraternidade é da tribo dos Kikuyu. Dos confrontos daqueles dias, emergiu claramente que o que nos define não é o pertencer à determinada tribo, mas o fato de Cristo. Cada um de nós conseguiu viver, nestes dias, o milagre da comunhão, também por meio da oração. Por exemplo, os pais de um amigo nosso estavam em uma zona de risco. Começamos a rezar o terço por eles todos os dias. E pedimos a toda a comunidade do Quênia que fizesse o mesmo. Acho que nunca rezei tanto por meus amigos. O desejo de paz, para mim e para minha família, para os meus amigos e seus familiares estava sempre em nosso coração e em nossos lábios.
Cada dia era cheio de medo e tensão. Mas os nossos amigos no Quênia e na Itália foram um testemunho pelo modo como julgaram e viveram esses acontecimentos. Um deles nos disse: "Nós somos os vencedores". Uma frase que exprimia bem aquilo que estava acontecendo a cada um de nós. Aos nossos olhos era e é evidente que só há um fato que pode romper as barreiras do ódio tribal: pertencer a um Outro. Um outro amigo escreveu: "Não podemos esperar a paz das ideologias de quem venceu ou de quem perdeu. A nossa certeza pode existir apenas na totalidade do Mistério". Diante dessa certeza, em todo esse tumulto, me veio em mente algumas palavras de Dom Gius (publicadas em Passos n. 37, março de 2003): “Qualquer coisa que aconteça nunca encontraria uma resposta adequada se não tivéssemos encontrado Cristo: Ele marca a última vitória de Deus sobre a realidade humana; qualquer coisa que aconteça, é a ‘misericórdia’ que rege tudo o que é humano. A misericórdia: Deus realiza a vitória sobre o mal dentro da história como positividade, é isso que dá razão àquilo que acontece”.
Ter consciência disso foi, para mim e meus amigos, uma grande graça. Era claro que não se poderia reduzir tudo ao partido vencedor ou perdedor. De fato, se não fosse pela presença de Cristo entre nós, também estaríamos perdidos. A tentação da vingança teria vencido, a dor e a violência nos teriam determinado.
“Dei tudo a Cristo”
Um amigo nosso, que perdeu dois irmãos nos embates, foi para todos nós uma verdadeira testemunha. Mais de uma vez repetiu: "Dei todo o meu coração a Cristo. Não há nada que eu possa salvar, só Ele pode tudo". Isso me fez lembrar aquilo que Carrón sempre diz: "O fato de Cristo pode parecer pequeno e, no entanto, é tudo".
E os exemplos poderiam continuar. Basta pensar que uma amiga italiana do Movimento, que nunca encontrei, me escreveu dizendo que todos os dias rezava a Nossa Senhora Rainha da Paz pelo Quênia. Depois, enviou outra mensagem dizendo: "Hoje, fui ao túmulo de Dom Giussani pedindo que ele rezasse para que a paz volte ao Quênia, pelos amigos do Movimento que moram ali e por suas famílias".
Carras, um dos responsáveis do Movimento na Itália, telefonou-me quase todos os dias. Embora houvesse dificuldades na comunicação, por causa da língua, não podia deixar de perceber uma afeição pelos meus problemas e da comunidade. A sua amizade me acompanhou nestes dias exatamente porque sempre me lembrou de olhar para Cristo como possibilidade de algo positivo na realidade.
Os padres da Fraternidade San Carlo Borromeu também sempre estiveram em contato conosco, transferindo crédito para nossos celulares para que pudéssemos nos comunicar. Não podendo sair de casa, nós não conseguíamos comprar nada.
No fim, depois de vários dias, voltamos a Nairóbi. Durante a viagem, minha mulher e eu nos perguntávamos como faríamos com as crianças, onde poderíamos comprar comida. E, até nesta situação, a resposta foi maior do que as nossas expectativas: antes mesmo de chegar em casa, fomos convidados para jantar por nossos amigos dos Memores Domini.
Depois de tudo o que aconteceu, minha mulher e eu temos certeza de que nossos filhos continuarão a frequentar a escola onde já estão matriculados há alguns anos (uma escola dirigida por alguns amigos do Movimento junto com os padres da San Carlo). De fato, foram sobretudo os jovens os autores das destruições daqueles dias: estudantes universitários e jovens desocupados. Por isso, mais que nunca é evidente que “se houvesse uma educação do povo, tudo melhoraria”.
Mas, diante da grandeza vivida nestes dias de dor para o nosso povo, não posso deixar de dizer uma coisa: nenhuma destruição pode cobrir a certeza e o pertencer que vivemos nesta ocasião e continuamos a viver, agora.
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón