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Passos N.91, Março 2008

SOCIEDADE / POLÍTICA BRASILEIRA

O “eu” diante da política

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Como sustentar o desejo de construção do bem comum e conciliar desenvolvimento econômico, social e humano são questões sempre presentes na vida brasileira. A Doutrina Social da Igreja traz uma série de indicações que podem ajudar a responder essas perguntas. A seguir, uma introdução ao tema, que será aprofundado nos próximos meses

O ponto de partida para um diálogo fecundo com a Doutrina Social da Igreja 1, capaz de iluminar o cenário político, é a nossa própria experiência. O ser humano conhece a si mesmo e à realidade quando se encontra “em ação”. A apatia diante das coisas nos impede de conhecer tanto a nós mesmos quanto a realidade 2.
A ação, nesse caso, não se refere unicamente ao político-partidário, como às vezes pensamos. Quando procuramos conscientemente expressar aquilo que somos e construir os caminhos que consideramos adequados para atender nossas necessidades e o bem comum, estamos vivendo uma experiência que também é política, e que por isso pode nos ajudar a criar critérios para compreender e nos posicionar diante do momento político atual.

A pessoa e a política
Em todos nós existe um desejo inextirpável de imprimir a marca de nosso próprio “eu” à realidade que nos cerca, de criar um mundo no qual possamos reconhecer-nos por intermédio de nossas obras. Todo ser humano quer ser o protagonista da própria vida, quer construir para si e para aqueles que ama uma realidade marcada pela beleza e pelo bem. Contudo, o mundo moderno está organizado de forma a reduzir, cada vez mais, o protagonismo social e a capacidade de expressão cultural das pessoas.
Em sua raiz mais profunda, o “eu” se identifica com o desejo de verdade, bem e beleza, com o anseio por felicidade e realização que está no coração de todo ser humano e que Dom Giussani mostrou ser o “senso religioso”. O desejo de moldar a realidade, criar obras, marcar o mundo com a nossa presença, é um dos aspectos do senso religioso. O achatamento e a dissolução desse desejo profundo do coração do homem é a forma de privá-lo também de seu desejo de construir a realidade e o bem comum, levando-o a tornar-se submisso, passivo e manipulável por quem tem o poder.
Em nossa sociedade contemporânea, esse desejo de realização e felicidade – que é inerente a toda pessoa – é fragmentado numa série de necessidades e desejos parciais que podem ser satisfeitos segundo a lógica do poder. O anseio por realização e auto-expressão na vida é substituído pelo acesso aos bens que podem satisfazer a essas necessidades e esses desejos parciais, num processo crescente de alienação. O desejo de amar e ser amado se reduz ao prazer físico e à paixão temporária, o desejo de possuir se reduz a ter “posses” e dinheiro, etc.
Paralelamente, a pessoa vai abdicando de seu próprio protagonismo social, sujeitando-se à ação do Estado e dos outros grandes atores sociais (partidos e corporações), em troca de uma aparente possibilidade de autonomia individual (num processo que Pasolini chamou de “a grande homologação”). O Estado, o partido, o mercado determinam as grandes linhas de organização da sociedade (a esfera pública), enquanto os indivíduos aparentemente podem fazer o que quiserem em sua vida privada. Mas como a vida privada sempre está condicionada pela esfera pública, a pessoa perde sua autonomia tanto no público quanto no privado, se “homologa”, isto é, tende a reproduzir os comportamentos e atitudes ditadas e proclamadas pelos que detém o poder e é cada vez menos criativo e protagonista.
Assim, em nosso cotidiano somos chamados a uma vida onde os anseios e as esperanças, as lutas e os sofrimentos, são achatados e reduzidos. Vive-se para trabalhar, trabalha-se para ganhar, se ganha para comprar alguns objetos e por uns parcos momentos de repouso no fim-de-semana ou nas férias. Os sonhos se tornam ilusões fugidias, que nunca se realizarão ou que perdem o encanto assim que se realizam. Aos poucos desaparece do horizonte um ideal que corresponda realmente ao desejo do coração, pelo qual valha mesmo a pena viver. E a pessoa, sem um ideal verdadeiro, se rende à dominação e à desumanidade.
Por isso, resgatar todos os dias o desejo que pode animar o coração de cada um de nós, recuperar o ímpeto para buscar e construir a beleza, a justiça e a verdade, é o primeiro passo para a realização de uma política realmente voltada ao bem comum. Pelo contrário, numa política destituída do valor fundamental da pessoa, de seu anseio de construir o bem, dos valores que poderiam criar uma verdadeira e justa solidariedade entre os homens, o poder se torna um fim em si mesmo.

Uma questão educativa
O que faz com que as pessoas fiquem unidas, lutem juntas pela realização do bem comum? Embora a solidariedade seja natural ao homem, ela necessita de uma educação adequada para se expressar. Quando, na construção do bem comum, sistemas se propõem a substituir o papel da educação e do comprometimento da liberdade e criatividade do ser humano, a própria raiz da solidariedade vai desaparecendo.
Numa sociedade pluralista e diversa como a nossa, os valores não se mantêm vivos por pura inércia, por mais adequados e verdadeiros que sejam. Estão sendo permanentemente questionados e postos à prova. Por isso, o compromisso tanto com si próprio quanto com a realidade exige uma educação que estimule a comparação livre e decidida dos valores da tradição com as exigências do nosso coração e os desafios do presente 3. É nesse exercício que a pessoa se convence dos valores de uma tradição, percebe que eles respondem a sua humanidade e pode fazer a verdadeira experiência do pertencer. Por isso, Dom Giussani observa que uma verdadeira educação do senso religioso, em todas as suas dimensões, é a única forma de se contrapor à tendência de homologação e anulação do “eu” que caracteriza a prática do poder na sociedade contemporânea 4.
A tarefa educativa não pode ser voltada apenas às necessidades do mercado de trabalho, ou a uma suposta “conscientização”, que apenas incute as idéias da mentalidade dominante, eliminando a verdadeira crítica, que só é possível na comparação entre aquilo que nos é proposto e as exigências profundas de nosso coração (a experiência elementar). Essa tarefa educativa e a luta pela liberdade de educação, inclusive no que diz respeito ao ensino religioso confessional e plural, são os grandes instrumentos de realização da liberdade e do bem comum em nossa sociedade.

Um Estado que anula ao invés de subsidiar
O Estado não pode se colocar no lugar da pessoa e de sua criatividade, não pode determinar como e quando serão atendidas as necessidades de cada um, mas deve deixar que a própria sociedade se organize e procure responder aos anseios das pessoas. Isso tanto permite que cada um faça a experiência de ser protagonista da própria vida, quanto soluções mais simples, ágeis e eficazes para os problemas – pois nascem de quem os vive. É isso que a Doutrina Social da Igreja denomina princípio da subsidiariedade (o Estado que subsidia as iniciativas que nascem dentro dos diversos grupos sociais, buscando responder as suas necessidades e aspirações).
Mas, em nossa realidade política, o Estado deixa cada vez mais de apoiar as iniciativas dos sujeitos sociais, de ajudá-los a construir um mundo melhor, anulando sua expressão política e não dando espaço à diversidade inerente à sociedade. As políticas públicas deixam de ser grandes linhas de ação que apóiam e dão suporte a iniciativas da sociedade e se tornam camisas-de-força que determinam como as coisas devem acontecer e como as pessoas devem agir. O exemplo mais clamoroso são os projetos de distribuição e incentivo ao uso de preservativos para adolescentes em escolas públicas. A família perde, assim, qualquer autonomia para educar seus filhos para a vida afetivo-sexual a partir de seus valores, devendo se curvar aos valores impostos pelos administradores das políticas públicas.
Além disso, cada vez mais essas políticas públicas passam a ser geridas por grandes aparatos burocráticos, caros, ineficientes e orientados para a perpetuação do poder e não para o atendimento das necessidades da população – como se vê com a ampliação do número de ministérios, que atende às demandas dos partidos “da base aliada”, mas não resolve os problemas objetivos da Nação e aumenta enormemente os gastos públicos. Enquanto isso, as obras que nascem da criatividade das pessoas, de sua capacidade de se organizar para resolverem seus próprios problemas, enfrentam sérias dificuldades de sustentação, quando não são claramente discriminadas e perseguidas. Elas não interessam ao poder, porque mostram a capacidade que as pessoas têm de se organizarem a despeito do poder. A questão fundamental passa a ser o sustento desse Estado cada vez mais dispendioso e ineficaz, e não o incentivo ao desenvolvimento sócio-econômico com vistas ao bem comum.

O caminho do pertencer
Diante dessa situação, cresce a desconfiança e até a decepção em relação aos políticos, pois muitos parecem estar cada vez mais preocupados apenas com seus interesses individuais, se distanciando dos eleitores e dos interesses da sociedade. Reformas políticas, medidas de combate à corrupção, maior transparência no uso dos recursos do Estado são medidas importantes para combater esse problema. Mas não bastam.
Nenhuma organização será tão perfeita a ponto de anular totalmente a necessidade do empenho da liberdade humana, como Bento XVI nos lembrou em várias ocasiões. Por isso, a única forma efetiva de combater a corrupção, de termos sempre mais políticos comprometidos com o bem comum é pertencer a uma experiência viva de povo, de comunidade. A liberdade e a criatividade de cada um são postas no caminho correto por meio desse pertencer.
Mas muitos políticos atuais partiram de uma experiência de pertencer a realidades comunitárias e populares, várias delas ligadas à própria Igreja, colocando sua militância política a serviço dessas realidades e mantendo um nexo orgânico com elas. Por que, com o tempo, se afastaram desse caminho? Dom Giussani observava que, se eliminamos a relação com a Transcendência, o homem não tem mais um ponto de referência objetivo, que independe da conjuntura e da conveniência, ao qual responder. Não basta pertencer a uma realidade sociológica, pois essa não é capaz de se contrapor às tentações do poder. Ou o homem pertence Àquele que é capaz de responder totalmente a seu desejo mais profundo de felicidade e, por causa desse pertencer é capaz de gerar amizades e, assim, comunidade com todos os demais homens que encontrar e se abrirem a esta amizade; ou não pode se colocar realmente a serviço de ninguém, e com o tempo afirmará somente a si mesmo e servirá somente a sua própria medida, inevitavelmente.

Indicações para uma verdadeira incidência política
Muitas vezes somos levados a pensar que a política é praticada apenas nos momentos eleitorais, no contexto da luta pelo poder ou nas práticas de governo. Nosso cotidiano seria “pré-político” ou mesmo alienado da vida política. Com isso, nos sentimos derrotados, parece que não podemos fazer nada; sentimento tão disseminado no Brasil no momento atual. Essa é uma imagem ideológica, que desqualifica as experiências construtivas das pessoas. Tudo que fazemos, quando temos consciência das razões pelas quais fazemos, se torna político, pois representa a nossa tomada de posição diante da realidade.
Existem três dimensões constitutivas da experiência cristã: a cultura, a caridade e a missão 5. Viver essas três dimensões também permite que nosso cotidiano se torne eficazmente político, mesmo quando não se confunde com a política convencional. Por isso, viver integralmente nossa experiência é a forma mais natural e imediata para se viver uma real incidência política e com o tempo essa experiência demonstrará a sua potência. A história é prova disso. Basta citar, por exemplo, as universidades nascidas dentro dos mosteiros medievais e os hospitais e Santas Casas que surgiram a partir do trabalho de ordens religiosas.
A dimensão cultural é um contínuo convite a julgar tudo, a comparar tudo, com a sabedoria que encontramos na experiência comunitária. Uma verdadeira catequese, como aquela proposta pela Escola de Comunidade 6, não é a apresentação didática de alguns princípios religiosos, nem se fecha numa dimensão intimista. Ela, pelo contrário, é sempre a proposta de um modo de viver e de olhar o mundo que deve ser comparado com os demais, utilizado para julgar cada aspecto da realidade. Assim catequese e construção de uma nova cultura andam sempre juntas e são instrumentos fundamentais para uma ação política livre e consciente, e a transformação da realidade.
Na experiência da caridade que, como explica Dom Giussani, é dom de si comovido, a pessoa descobre o quanto essa corresponde ao modo como seu coração foi feito e experimenta a alegria que essa experiência gera. Assim ela descobre o valor da solidariedade e do compromisso com o outro. O exercício da caridade combina uma dimensão educativa, que ajuda a julgar e a se posicionar de forma justa diante das propostas de construção do bem comum, através de obras que são respostas verdadeiras às necessidades das pessoas, porque não são realizadas como instrumentos para chegar ao poder, mas pela alegria que gera o doar-se.
A missão nos lança a anunciar aquilo que já vivemos, propondo a todos a mesma experiência de liberdade e realização que já vivemos. Não se trata de proselitismo, nem deve ser com propaganda política. Anuncia-se a Cristo, e à experiência de vida nova que fizemos ao encontrá-Lo. Mas não é possível separar esse Anúncio de suas conseqüências também para a vida político-social, pois dele nascerá um povo novo com uma nova afeição e inteligência das coisas.

As obras
Esse caminho, contudo, pode parecer um discurso abstrato e teórico que não incide na realidade. É a experiência concreta de cada um de nós que mostra o valor e a veracidade de tudo isso. Por isso, as obras são os sinais mais evidentes de uma novidade que transforma tanto a pessoa quanto a sociedade.
Aqui se coloca o valor de um gesto como a Coleta de Alimentos 7, pois cada ser humano precisa ser educado à gratuidade, ao amor e à doação de si. Sem essa educação, não se pode falar adequadamente de solidariedade ou de construção do bem comum. Ao trabalhar numa coisa aparentemente simples como a coleta de alimentos, a pessoa descobre que viver a solidariedade, compartilhar com outros uma ação pelo bem comum, a realiza e a ajuda a compreender o sentido de todos os momentos de sua vida. Vai se construindo, dessa forma, uma novidade já em ato, que não depende dos rumos da política partidária, da ação dos que detém o poder, mas sim da liberdade de cada um. Por isso, Dom Giussani diz que a maturidade de um caminho dentro da Fraternidade de Comunhão e Libertação acontece quando, livremente, o grupo ou cada pessoa pertencente a ela sente a necessidade de se envolver com uma obra.
Na obra, a pessoa reconhece o sentido mais completo de seu “eu” e se torna capaz de enfrentar a realidade, a família, o trabalho, com um novo vigor, com uma nova consciência de seu papel no mundo. Por tudo isso, não nos colocamos diante da política procurando confrontar discursos ideológicos, mas propondo experiências concretas que nascem da nossa vida e de nossas obras.

Notas

[1] Uma apresentação sistemática dos princípios da Doutrina Social da Igreja pode ser visto em Pontifícia Comissão Justiça e Paz. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Ed. Paulinas, São Paulo. 2007.
[2] Giussani, L. O senso religioso. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2000.
[3] Giussani, L. Dinâmica e fatores do acontecimento educativo. [in] Educar é um risco. EDUSC, São Paulo. 2004.
[4] Giussani, L. O eu, o poder e as obras. Ed. Cidade Nova, São Paulo. 2001.
[5] Giussani, L. Diretrizes metodológicas para o chamado. [in] Educar é um risco. EDUSC, São Paulo. 2004.
[6] Catequese permanente do Movimento Comunhão e Libertação.
[7] Trabalho voluntário para recolher alimentos em supermercados, que se integra a uam grande rede de apoio a entidades sociais (cf. Passos n. 88, novembro 2007, pp. 24-29)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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