Notas da palestra de Cláudio Pastro no evento “Cultura e Ciência: Expansão da Razão”, realizado em São Paulo a 11 de agosto de 2007. O renomado artista plástico é o autor do projeto artístico do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida
Eu agradeço àqueles que me convidaram para este encontro. Com toda a certeza, como todos aqui, eu sou fruto de uma história. Sou parte de um processo que envolve praticamente a todos, senão pela amizade, certamente pelo desejo em comum. Vendo um pouco do meu trabalho nos slides apresentados, eu refletia sobre a minha função. Como um artista sacro, um artista cristão, eu me vejo como um bom fossore. Este era o coveiro das catacumbas cuja função ia desde preparar o pré-defunto antes de morrer, a sua família, as covas, até a festa da passagem, de modo a conduzir esta alma ao paraíso. A função de um artista sacro – penso eu – é, com muita responsabilidade, a de ser um mistagogo, quer dizer, levar, primeiramente, a si mesmo e, depois, os demais para o paraíso. No meu caso específico, fazê-lo com a minha linguagem, a da arte plástica.
Eu gostaria também de começar com uma frase de Michelangelo Buonarroti: “Quando pego uma pedra para esculpir, fui eu que cativei a pedra e peguei-a ou foi ela que me cativou primeiro? Quem cativa quem?” Outro grande literato, padre da Igreja Oriental, Virgil Gheorghiu, diz em seu belíssimo romance A vigésima quinta hora (não editado no Brasil; nde): “O primeiro ícone [quer dizer imagem perfeita], o primeiro ícone que eu vi ainda no berço, ao abrir os olhos foi o rosto do meu Pai”.
Gostaria, também, de citar uma grande mulher, já falecida: Irmã Gertrudes, do Mosteiro de Campos do Jordão. Era dinamarquesa, jornalista, que se tornou monja beneditina. Na década de oitenta, durante um curso de arte sacra ministrado por mim ela era uma das participantes. Um dia, durante a aula, ela deixou cair do colo o seu livro de oração, esparramando uma porção de santinhos. Fui ajudá-la a recolhê-los e fiquei surpreso ao me deparar não com santinhos, mas com imagens de Van Gogh, de Renoir, de Matisse. E ela me disse: “Eu preciso rezar diante da Verdade”. Era uma mulher que possuía uma integridade de vida.
Aqui ao lado está a Catedral Ortodoxa Russa do Brasil. Ali há um conjunto unitário pleno entre as imagens, as paredes, o que se faz lá dentro, as pessoas com a sua postura e atitudes; há uma unidade, um universo, uma plenitude, sem rachaduras e sem rugas; há um referencial belo de vida que me projeta no Infinito, no amanhã, quando seremos em plenitude, onde mora o belo, o perfeito, aquilo a que cada um de nós foi convidado a ser nesta vida.
Como eu sou um artista e não um palestrante, falarei a partir da minha vida, de como foi a minha infância, do por que fiz Ciências Sociais e não outra faculdade; por que morei onze anos na Casa Cultura e Fé com o padre Gigio, o padre Cássio, o padre Vando e outras pessoas; como, a partir desta história, aos 28 anos, solteirão e artista – porque na nossa sociedade, artista é aquilo que não presta, quem não gosta de trabalhar –, comecei este trabalho ao qual me dedico há trinta anos. Mais tarde, em 9 de agosto de 2001, dia de Santa Edith Stein, eu entrei em coma. Foi exatamente neste dia que, horas antes, juntamente com três arquitetos, criei o presbitério de Aparecida, aquela forma redonda, que tem no centro a pedra que é o próprio Cristo, o altar de onde sai para o universo, para os quatro cantos, a água da vida que vem d’Ele. Após um ano e meio à procura de um fígado, depois o transplante seguido de dezenove re-operações e outros cinco dias de coma, eu estou aqui. É esta história que conta, os fatos reais.
Já aos cinco anos de idade, um grande fato real me tomou a vida quando eu ia à missa em frente de casa no convento das Irmãzinhas da Assunção. A missa era em latim, os cantos eram gregorianos e o padre ficava de constas e, quando acabava a celebração, permanecia ajoelhado cerca de meia hora, rezando. Durante o ofertório, uma das irmãs tocava, ao órgão, um clássico de Haendel, de Bach. Além do perfume do incenso, eu não entendia mais nada. Dos cinco aos quinze anos, eu não entendia uma palavra de cristianismo. Mas então, como eu fui tocado? Certamente não foi um entendimento intelectual, mas fui tocado pela linguagem, pela dança, pela situação de vida que a realidade me passou e que agora, com quase 60 anos de vida, eu ainda estou tentando entender.
A música de Maria Callas que ouvimos no começo – “Meu coração se abre à tua voz, à tua voz que me busca” – tem como finalidade nos colocar na nossa verdadeira dimensão, diferente daquilo que a sociedade nos mostra, nos pede e nos revela. No fundo, todo artista é cristão e todo cristão é artista, pois ambos buscam a Beleza à qual nós fomos chamados nesta vida, a Beleza plena daquilo que nós somos na realidade e não esta aparência fantasiosa de uma moda da época. É algo mais além o que me permite ser artista. Nós esquecemos que o Cristianismo é uma religião do Oriente que com o passar dos séculos se ocidentaliza, tornando-se algo moral depois da reforma e da contra-reforma, nos últimos cinco séculos. Assim, o cultuum deu lugar ao honestuum: a beleza deu lugar ao bom. É como se “ser cristão” fosse “ser bonzinho” e a beleza – algo pleno que toca a realidade mais funda, drástica e terrível do drama de cada um de nós – não entrasse. É mentira.
Leio um trecho do Evangelho de Mateus, onde Cristo, no final das bem-aventuranças, nos diz: “A lâmpada do corpo é o olho. Se o teu olho está são, todo o teu corpo será luminoso. Mas, se o teu olho está doente todo o teu corpo estará às escuras” (Mt. 6). Então o olho é fundamental pra Jesus Cristo. A lâmpada, a luz do corpo é o olho. Ensinaram-nos a falar, a escutar, a escrever, mas nunca nos ensinaram a olhar e isto é terrível porque é pelo olho que somos formados. Aquilo que nós colocamos nos olhos nos marca para toda a vida. O olhar nos forma. No contexto judaico da Bíblia, quando nos detemos sobre os seus diferentes livros – o Antigo Testamento –, em particular os salmos, verificamos que estes são cheios de figuras que nos conduzem sempre aos olhos, a olhar. Eis alguns exemplos: “O Senhor pousa o seu olhar sobre os que o temem” (Sl. 33); “Venho contemplar-Vos no templo para ver Vossa glória e poder” (Sl. 62); “Tenho sempre o vosso amor ante os meus olhos” (Sl. 26); “Abri os meus olhos e então contemplarei as maravilhas que encerra a vossa lei” (Sl. 119); “Em Vossa luz vemos a nossa luz” (Sl. 36).
Assim, eu que trabalho fazendo igrejas, posso falar apenas a partir de um referencial que é a nossa tradição judaico-cristã. Nesta tradição nós somos atraídos pela beleza. Porém, cuidado: eu não compro um copo porque é belo, mas é ele que me atrai. Não é o que me agrada que faz a beleza, a beleza é terrível e ela me chama, me atrai, como eu citava Michelangelo no caso da pedra: quem cativa quem? Nós somos atraídos pela beleza através dos olhos, pelos sentidos. Então, para enfrentar a vida, na busca de um sentido para a vida, em geral, o homem toma duas posturas: Primeiro, em qualquer cultura, há uma nostalgia de paraíso no ser humano, do paraíso perdido que, na realidade, é uma busca de perfeição, de felicidade. Nós não descansamos enquanto não o alcançamos. É esta nostalgia de paraíso que faz com que os nossos templos e os de qualquer cultura sejam arrumados como se fossem um microcosmo. Nós estamos buscando e fazendo experiência de um paraíso perdido. A segunda atitude é a do Shekinah, da glória, do esplendor, do estar já agora nos novos céus e na nova terra. Todas as grandes religiões, mas em particular o cristianismo, arrumam e embelezam de tal forma o seu espaço, que se tem a certeza de ali estarmos no limiar da Jerusalém Celeste. O espaço sagrado não é uma sala de baile, não é um lugar de cinema ou uma sala de conferência ou de reunião, mas é o lugar onde eu experimento a beleza como um todo, a plenitude da vida, a glória de Deus que desce e nos envolve e nos faz ser o que somos de verdade.
Então, há duas posturas: ou só desejamos o paraíso, ou – se for verdade – já experimentamos o paraíso, a glória, o Shekinah: espaço no qual a fumaça, a nuvem de Deus nos envolve e voltamos gloriosos. Continuamos os mesmos limitados de sempre, mas de maneira diferente: sei que sou outro acima deste pobre; sou muito mais do que aparento ser. Para falar de arte é preciso entender que a beleza não é só algo que nos seduz, mas tem uma razão maior de verdade e bondade que a completa. Trata-se de uma busca (não lançada ao futuro) e uma penetração em nosso Deus que é o Deus da Beleza, o Deus kallos: Verdade, Bondade, Justiça e Beleza em si. Um não vive sem o outro.
Há uma profunda relação entre espiritualidade e beleza. Nos primeiros cinquenta anos do cristianismo, os batizados eram chamados de iluminados, recebiam o disco solar, representado até hoje pela auréola que envolve os nossos santos. Ou seja, cada batizado carrega em si a plenitude da verdade, que deve reluzir. Do contrário, eu sou uma meia-verdade ou uma grande mentira. O cristianismo, portanto, é uma vida, não um folclore.
A Beleza também é um dos mais importantes e esquecidos direitos humanos. Todo ser humano tem direito à Beleza, ao ócio, ao prazer, à gratuidade, a uma vida em plenitude. Isso não está na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta só leva em conta as necessidades básicas: vestir, comer, construir, ter casa e, quando consideram a educação, tomam-na em sentido utilitarista e de produção. As pessoas são educadas a produzir e ganhar dinheiro, mesmo quando aprendem arte sacra. São ensinadas a trabalhar o barro, a cerâmica, mas estão aprendendo sobre a beleza do que é ser santo, do que é ser cristão? A questão não é que tenhamos mais escultores, mas pessoas que sejam esplendor da verdade, que resplandeçam a Beleza onde estiverem, em qualquer condição.
O ser humano é integral, como já nos dizia São Paulo na Carta aos Tessalonicenses: corpo, alma e espírito. Ele não pode viver em função de apenas um destes. E, aí, nós entramos no maior dos direitos humanos, aquele que nos faz semelhantes ao Criador: o direito à criatividade, ao gratuito, ao ócio, ao lúdico, à contemplação, ao prazer da Beleza. Os animais estão sempre olhando para baixo, para a terra – inclusive as aves. O ser humano é um animal diferente: olha para cima, olha para algo acima de si, o que faz com que ele seja bípede e ereto. O homem olha para cima porque ele tem este direito à beleza e o maior de todos os direitos é o de reproduzir aquilo que ele é por natureza: imagem e semelhança de Deus. Nada, na sociedade, hoje, fala, comenta ou nos dá esse direito.
O direito à Beleza gera a festa e a celebração. Vejamos um exemplo do Antigo Testamento: Moisés e Aarão [no clima de Êxodo] apresentam-se ao Faraó na páscoa, antes de partirem para o deserto e lhe dizem: “assim diz o Senhor: ‘deixa partir o meu povo para que Me celebre uma festa no deserto’” (Ex 5,1). A finalidade de sair do Egito não é evitar uma prisão, uma situação de escravidão, mas celebrá-Lo no deserto. A escravidão continua. O que dá coragem para o povo sair do Egito, atravessar o deserto é a visão de festa, de celebração.
Uma grande amiga já falecida, Maria Tereza Porcilli Santiago, certa vez me disse: “a festa é o segredo da força do povo que sofre”. Mas de que festa se trata? Que sentido, que beleza existe em sair de uma escravidão e passar para um deserto? O deserto é este mundo, esta vida que vai nos acompanhar do nascimento à morte, mas é no momento da celebração que eu vivo em Deus, experimento a glória e gozo aquilo que eu sou. Que celebração é esta? Para nós é domingo, para os judeus é sábado, para os muçulmanos é sexta-feira. Ou seja, a cada sete dias é o momento de parada total para celebrar na gratuidade: nas cores, na música, na poesia. A mim, que sou estrangeiro neste mundo, pois o meu lugar não é aqui, mas acima daqui, o que me faz aguentar o aqui é esta parada, esta celebração que é absolutamente gratuita e que revela a verdadeira dimensão daquele prazer, daquela plenitude maior a que fomos feitos.
A sociedade está em crise e a beleza é a que mais denuncia esta crise. Quando nós estamos em crise não percebemos muitas vezes e até lutamos para defender o erro. Mas a beleza é a primeira a gritar. Em uma sociedade em crise tudo é caótico, feio, sujo. Assim, a música – cuja função é nos dar algo de gratuito, de deleite e, ainda mais, algo para nos recompor, para nos dar uma harmonia que nos tranquilize e nos faça ser aquilo que somos, ao contrário leva à violência, ao barulho e quando termina não resolveu nada para mim, continuo a mesma porcaria de antes. No que diz respeito ao consumo de produtos como cosméticos ou carros, eletrodomésticos e outros, a Beleza passa a ser explorada com outra função: vende-se o fogão ou o automóvel ao som de grandes clássicos.
Nós vivemos hoje em uma crise que, por sua vez, atinge o ponto maior: explorar o feio, a cultura do mau gosto. Nas faculdades de arte isto impera. Esta cultura do feio hoje é como uma nostalgia de estar à margem e mostrar que ser marginalizado é mais importante do que atingir a profundidade de uma transformação, do kallos. Como não se deseja a Verdade, a Bondade, então a Beleza atrapalha e começa-se a explorar o feio.
Ao contrário, a Beleza, em todas as culturas, particularmente com o cristianismo, serena a alma e nos educa por inteiro. Infelizmente, hoje parece haver um distanciamento desta verdade. Nas igrejas, católicas ou protestantes, os jovens começaram a não ver sentido em ir àquele lugar, pois aparentemente não encontram nada de novo nas músicas, nas roupas, nas atitudes. O mesmo acontece com o folclore que se tornou um elemento da feiúra, com fins meramente lucrativos para quem o explora, em vez de celebrar a Folia de Reis, a Folia do Divino, do Espírito Santo. É bonito o que Adélia Prado diz sobre a Beleza: “a beleza enche os olhos d’água”. Ou seja, a Beleza nos coloca frente a um estupor, a um maravilhamento. Quando eu olho um quadro eu não olho simplesmente por uma beleza estética de linhas e cores. Sem dúvida foram elas que me chamaram atenção, mas este chamado de atenção é idêntico ao de uma música que me leva às lágrimas e que é o que me coloca, através da arte, em contato com algo mais. Eu não estou me encontrando diretamente com este algo mais, mas ele existe. A Beleza nos permite um encontro com o Invisível. Por isso eu tenho que estar atento pois são os meus olhos, os meus sentidos que me chamaram para algo além daquela música, daquela pintura, daquela bela igreja: estas coisas são sinal de algo maior do que elas.
Uma pintura continua uma tinta na parede, no tecido, na madeira. Todos são elementos da vida que apodrecem e que acabam, mas sinalizam algo superior. Maria Callas cantou muitas músicas belíssimas com grande técnica e expressão. Maria Callas morreu. Saint-Saëns, o autor da música apresentada, também morreu. Mas a Beleza que nos colocou em contato com eles permanece e nos aponta algo mais que eles. Também eles foram tocados por essa beleza. A beleza fere e os seres feridos pela beleza repousam os olhos numa outra Beleza. Quem fez esta música na cabeça de Saint-Saëns? Quem deu este dom de voz a Callas? Quem me deu o dom da arte, por exemplo? Quando acabo uma igreja fico estremecido, pois eu não correspondo àquele dom. Aquele dom é maior do que eu mesmo. Certa vez, quando eu morava na Casa Cultura e Fé e estava no começo da pintura, os padres camilianos me pediram para fazer uma capela no hospital deles. A capela era em frente ao berçário. Um dia, eu havia acabado de fazer em uma parede a mãe de Deus oferecendo seu filho e ainda estava no alto da escada a pintar, quando uma senhora saiu do berçário com o filho, ajoelhou-se diante de Nossa Senhora e, em voz levemente alta, o entregou a Maria, a mãe de Deus, para que cuidasse dele. Isto me impressionou porque aquela imagem foi feita por mim, mas foi um Outro que a fez! É um outro sentido do artista. Hoje a arte chegou ao máximo do individualismo, ao máximo de uma sensibilidade apenas estética. Quando a arte tem um sentido que vai além desta percepção ela gera encontro com o Invisível.
Educação pela arte
O artista verdadeiro é aquele que supera a si mesmo e que busca esta superação até a hora da morte; deseja sempre o melhor, não se contenta com qualquer coisa.
Então, o que é arte? A palavra latina ars significa serviço, função. Na antiguidade e sobretudo no primeiro milênio do cristianismo e na Igreja Oriental até hoje, a ars é um serviço, uma função. Se você vai a uma loja de arte sacra onde há vinte imagens de Nossa Senhora Aparecida, uma pior do que a outra, e compra uma para por no seu espaço a que você chama de sagrado, não tem relação nenhuma com o sagrado e, muito menos com a arte. Por isso se torna feio, pois não percebemos mais o sentido da Beleza plena daquela arte que é estar a serviço da celebração.
Gosto muito de uma imagem do cineasta russo Andrei Tarkovski quando filma um pedreiro comum levantando um muro no regime comunista, na Polônia. Quando ele diz: “Agora, ação!” o pedreiro persigna-se e começa a assentar o tijolo. Alguém interrompe: “Não, pare, pare! Você só tem de trabalhar, assentar o tijolo. De novo, ação!”. E ele se persigna novamente e começa a trabalhar. Por quê? Porque aquele pedreiro trabalhava não em seu nome, mas em nome de Jesus Cristo, em nome de quem ele se persignava. Então o trabalho tinha que ser perfeito. Ele não trabalhava para a produção do sistema (no caso, o comunista). Assim, a arte só tem sentido enquanto está a serviço. Não está a serviço de mim mesmo, para o meu deleite ou para que alguém compre minhas obras; não existe para o deleite do outro que gosta do amarelo, e por isso eu tenho que pintar tudo amarelo. A arte significa estar a serviço, estar a serviço de uma celebração.
Nós perdemos a tal ponto o sentido de Beleza que esta coincide com o que eu acho belo, mas o que eu acho não interessa. Platão, Plotino, Santo Agostinho, São Bento, todos os grandes Padres da Igreja, Gregório de Nissa, Gregório Nazianzeno, Ambrósio, Leão Magno, Gregório Magno, todos os grandes doutores da Igreja afirmam a mesma coisa: a beleza é objetiva, e não subjetiva. A beleza é. A beleza se impõe. Ela está acima de nós. Marco Aurélio, no século IV, diz: “Tudo o que é belo, seja como for, é belo em si mesmo. A beleza não necessita de admiradores. Toda jóia, ouro, púrpura conserva o seu brilho mesmo que ninguém veja”. A beleza se impõe. A palavra beleza tem origem no sânscrito: bet-El-za. za: brilho; El: Deus, o que está acima; bet: casa. Beleza: a casa onde Deus brilha.
Totalmente diferente do nosso conceito de beleza de hoje. Nós precisamos, portanto, passar por uma purificação: para pintar a divindade eu preciso passar por um esvaziamento, não me colocar ou colocar-me o mínimo possível: “Eu sou só um pincel nas mãos do Espírito Santo”. Eu sou só o pincel.
Infelizmente nos separamos da Igreja Oriental em 1054: nela, quando o artista morre, é automaticamente canonizado. O artista de arte sacra, que está ligado à Igreja, faz parte dos sagrados ministérios juntamente com o sacerdote, com o diácono, etc. É um ministério, é um serviço: ministrare é serviço também. João Paulo II quando beatificou Fra Angélico – um grande frei dominicano – não o beatificou pelos elementos exigidos pela Igreja Católica Latina, mas pela Igreja Oriental: um homem que fez tais obras só pode ser santo. Beleza: a casa onde Deus brilha.
Outra palavra interessante para ressaltar sua origem é “elegância”. El-gan-tia, tudo que termina com –cia se refere a movimento; gan: veste; El: Deus. Elegância é a postura de quem se movimenta com a veste de Deus. Aliás, é bom lembrar que o sentido de “postura” em todas as religiões orientais, assim como no cristianismo, se refere ao modo como nos apresentamos. Ao nos apresentarmos, devemos cuidar 70% da nossa postura; 25% vêm do tom de voz. É um erro quando, ao ler o Evangelho, o padre lê baixo ou lê alto demais ou dramatiza aquela cena. O tom de voz tem de ter ligação com a postura. E apenas 5% se referem ao conteúdo. Então, o conteúdo não vale? Vale. O conteúdo está também nos 95% da postura e tom de voz. Se não for assim, mentimos, lemos o Evangelho como se lêssemos uma coisa qualquer. Como era inteligente que, no período pré-concílio, o padre ficasse de costas ao celebrar a Missa! Permanecia o essencial, a Glória de Deus, e não a aparência humana do sacerdote e as possíveis objeções que se possa ter contra a sua figura.
A função da arte, portanto, é nos purificar, nos educar, nos conduzir. É também criar uma comunhão entre as pessoas, que passam a falar a mesma linguagem. A arte passa a ser um referencial para a vida.
A arte sacra
Para tratarmos de arte sacra, precisamos considerar o que é o sagrado. A palavra sagrado vem do latim sancire que quer dizer seccionar, separar. Então, é sagrada uma pedra que eu retiro da pedreira para ser altar. É sagrada uma pessoa que é tirada da multidão para ser batizada, no sentido cristão. Os ritos de iniciação de qualquer religião têm esse caráter de ser tirado: tornar-se incorruptível em relação ao resto que continua corruptível. A palavra “sagrado” tem um sinônimo em grego que é “mistério”. Na Igreja Romana usa-se mais o termo “sagrado”; na Igreja Oriental, a palavra “mistério”. “Mistério” vem de duas palavras gregas: mio que significa “fechado” e mixa que significa “fresta de luz”. Se apagarem todas as luzes da sala, fico no escuro e quero sair dele, busco e sigo uma fresta, um mínimo de luz. Mistério é aquele mio-mixa, aquela frestinha de luz que vai me levar para fora da escuridão. O mistério é isto: é você, estando na escuridão, seguir uma luz que vai te tirar das trevas.
Qual é, então, a postura do artista de arte sacra? O artista de arte sacra, como vimos, celebra. Mas celebra o quê? Nós celebramos a páscoa, a passagem, a saída do Egito, a saída da morte para vida. Nós celebramos uma única coisa: Jesus Cristo, que é a vida. Então, o primeiro elemento para ser arte é que o artista tem de celebrar um fato. É o sentido que a palavra “artefato” carrega. O artefato era uma arte feita por causa de um feito, um fato. Foi-se vitorioso em tal batalha, então foi feita uma celebração, um mausoléu etc. Portanto, tem uma razão de ser e não de vender. Artefato: celebrar um fato preciso.
O segundo elemento é a gratuidade. A gratuidade tem relação com a nossa postura: vamos à missa no domingo para ganhar dinheiro ou alguma coisa do comércio ou da sociedade? Não, é gratuito. Vou “perder” uma hora em que eu vou ganhar a vida: é a gratuidade.
O terceiro elemento é a questão do sagrado. Para o sagrado se manifestar quando celebramos algo é preciso espírito de sacrifício e adoração. Sacrifício é o que é pedido para que o sagrado se apresente. Tudo aquilo que o Evangelho nos apresenta sobre Jesus Cristo seria palavra morta se Ele não tivesse se sacrificado por nós. Este é o cristianismo na antropologia cristã. Ele é o Cordeiro Pascal. Este foi o preço que o grande amante nosso – Deus – pagou por nós. Por isso nós não pagamos mais. O sacrifício, no sagrado, exige uma atitude, uma postura de adoração. Assim, aquela obra de arte vai me conduzir à adoração (do latim ad-os. Ad: para; os: boca: “Ficar boca a boca com aquele que me dá o respiro, que me dá a vida”). No dia em que entrei em coma, depois do jantar, de repente cortou-se o ar: comecei a agarrar os móveis, pensando “agora eu vou morrer” porque não tinha ar, até que tive um jorro de sangue pela boca e entrei em coma. Faltou este respiro. Nós vivemos sem adoração. Nós vivemos com a relação boca a boca cortada. Então nós não vivemos, somos mortos ambulantes. A arte tem sentido para a adoração.
Um outro elemento é que a arte, para ser verdadeira e sagrada, tem de ser comunitária e objetiva. Ela não fala de minha subjetividade ou do que eu acho. Confundem arte sacra com arte religiosa. Pode-se ter arte religiosa sem sagrado. Por exemplo, quando pedem para fazer uma Santa Terezinha, um São Francisco de Assis, fazem a partir do que acham que eles foram: São Francisco tem de ser cercado por passarinho. Mas isso é subjetivo. São Francisco de Assis é um fato na história do cristianismo maior do que ele mesmo e maior que todos. A grande felicidade dele foi ter recebido as chagas de Cristo e morrer. Foi o prêmio que ele pedia. A objetividade significa que eu, ao fazer uma obra de arte, penetro no Mistério celebrado, que é comum a todos. A páscoa de Jesus Cristo ou é para todos ou não é para ninguém. Então, para fazer um trabalho de arte sacra eu tenho que entrar no mistério pascal. Isto é muito mais que fazer uma figura adocicada, bonitinha, boazinha ou uma música que me deleita, mas não me leva a algo mais, à presença do Invisível.
Um quinto elemento é uma anamnese. O que quer dizer isso? Do grego anamnesis: fazer memória. É quando o Logos, a sabedoria, nos fala no momento da memória. Eu vou domingo à missa porque a cada lua está acontecendo o mesmo fato, o mesmo de sempre, mas é naquele dia que o Logos fala. Pego a leitura bíblica do domingo e leio, mas o faço simplesmente “com a cabeça”; eu preciso estar naquele espaço, eu preciso fazer aquela hora de silêncio, eu preciso estar com os demais: também Deus não é propriedade minha, Ele é comunitário. Naquele momento da celebração, no memorial, Ele fala. É, aliás, quando o artista adquire o estilo: são os traços de Deus porque cada vez mais o artista procura se moldar ao mistério d’Ele.
Por fim, a obra de arte também precisa ser mistagógica: tem a função de conduzir os demais para dentro do Mistério. É uma janela que nos leva para o contato com o Invisível. Tudo isso requer um sentimento que as religiões nos dão e que no cristianismo é fundamental: o de estar “em presença de”. Jesus Cristo não é um produto de dois mil anos atrás, mas um fato que entrou na vida dos apóstolos e chegou até mim, hoje. Então estamos “em presença de”. Cada vez que eu vou trabalhar, cada vez que eu vou conversar com alguém, cada vez que eu vou me encontrar com alguém eu tenho o cuidado de saber que não sou somente eu e a pessoa, mas há um terceiro entre nós. O sentimento de “estar em presença de” nos leva ao rito. E é no momento do rito – portanto para nós, católicos, no domingo – que se dá o grande casamento entre o Invisível e cada um de nós. O rito é o momento em que, a cada domingo, se dá o esponsalício, o matrimônio de Deus conosco, com a amada Igreja. Se não acontece isso a cada domingo, ficamos no deserto desta vida. É neste domingo que ele vai nos abraçar, nos amar, nos falar, ter contato conosco. São elementos da antropologia cristã que nos fazem entender porque Jesus falou em arrancar o olho: Ele está mandando olhar a plenitude do ser.
Se a obra de arte não nos transforma ela é uma mentira, ela é só um deleite passageiro. A obra de arte tem que estar ligada à profundidade do meu ser.
* Notas não revistas pelo autor da palestra.
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