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Passos N.90, Fevereiro 2008

É POSSÍVEL VIVER ASSIM / APONTAMENTOS

É possível viver assim

A partir de agora, o texto da Escola de Comunidade será o livro É possível viver assim? Quando a obra saiu pela primeira vez na Itália, em 1994, Dom Giussani a comentou num encontro com a comunidade de Comunhão e Libertação de Roma. Publicamos aqui os apontamentos desse diálogo, que podem ser úteis como introdução ao livro e apoio ao trabalho dos próximos meses.

Giacomo Tantardini. O conteúdo do encontro que teremos esta noite com Dom Giussani é seu novo livro, É possível viver assim?, que sairá na próxima semana. A dinâmica de hoje será a seguinte: pessoas que leram as provas do livro vão fazer algumas perguntas...
Luigi Giussani. Antes de mais nada, acho importante dizer alguma coisa sobre o estilo do livro. Ele é a transcrição literal de diálogos realizados semanalmente, todos os sábados, durante um ano, entre mim e cerca de cem jovens que levaram a sério a hipótese de dedicar sua vida a Deus. Esta última coisa é um detalhe interessante, mas não decisivo. Na realidade, o conteúdo das conversas era a natureza, o tecido da experiência cristã. Eu acredito que as pessoas que conseguirem superar o impacto um tanto tosco das primeiras dezenas de páginas, adaptando-se, por assim dizer, ao estilo do livro, talvez possam aprender alguma coisa. No que diz respeito à fé, à esperança, à caridade, nem o catecismo, hoje em dia, parece-me ser muito útil, pois muitos deixaram de frequentá-lo ou nunca o fizeram.
Permitam-me dizer também alguma coisa sobre o valor mais caro, aquele que serve de motivo condutor para todo o livro. O motivo mais caro, ou, melhor dizendo, a paixão que determina este livro, capítulo a capítulo, é a herança mais imediata que recebi do fato de ter entrado numa escola de segundo grau para dar aulas de religião. As aulas de religião me deram esta intuição, esta paixão: a intuição de que a fé precisa demonstrar em primeiro lugar sua familiaridade com a razão, com todas as consequências que isso implica; em outras palavras, a intuição de que a fé é razoável, de que a fé é a coisa mais razoável que pode existir e, neste sentido, a coisa mais humana que pode existir. Pois a razão é o nível da natureza em que a natureza toma consciência de si mesma, e esse nível se chama “eu”. A razão tem duas características principais. Em primeiro lugar, a mobilidade, a riqueza dinâmica da vida: recebem o nome de “métodos” as formas assumidas pela razão, as formas de que ela se arma para entrar em contato com a realidade, com a realidade inteira, sem excluir nada. Antes de mais nada, o problema da fé deve ser descoberto como problema de “método”. Mas talvez o vejamos mais adiante (não é possível que as perguntas tenham deixado de contemplar esse ponto, que é a primeira coisa que o livro sublinha). Em segundo lugar, além de possuir essa mobilidade viva – a razão é o eu vivo e está no eu vivo, vida na vida da pessoa, portanto não é uma fórmula matemática ou um pedaço de chapa de ferro bem definida por um projeto, que já tem fixo o seu formato –, a razão é exigência, paixão e exigência de conhecimento de tudo, da totalidade. A fé consciente brota de um modo inesperado, providencial, gratuito, fortuito, precisamente dessa paixão por conhecer tudo, que é característica fundamental da razão. Uma razão viva é uma razão que tem o todo como horizonte para o qual tende, uma razão que pretende saber tudo. É suficiente dizer isto. Obrigado.

Pergunta. Dom Giussani, o senhor pode nos explicar o que significa dizer que “a fé é um método natural de conhecimento, um método de conhecimento indireto que advém da mediação de uma testemunha”
Giussani. Você acertou em cheio a questão que para mim é a mais interessante e, acredito, a mais decisiva, se quisermos que um sentimento religioso não perca o rumo, não seja subjetivamente exaltado ou rebaixado, e, sobretudo, não seja monstruoso. O sentimento religioso se transforma em monstruosidade quando o objeto a que se dirige, ou indica, ou lhe interessa, é criado por ele mesmo, por sua imaginação. Se existe um objeto “objeto”, é justamente o objeto do senso religioso. Tudo depende – para o cristão, mas, no fundo, para todos – do problema apontado pela pergunta.
Conhecimento. Minha tentação seria desafiá-los a respeito da concepção que vocês têm do conhecimento, da ideia que têm de conhecimento. O conhecimento é uma coisa extremamente simples: isto é um microfone, e isto é um livro, e este é padre Giacomo Tantardini, etc. Mas o conhecimento não termina como o reflexo num espelho, seu valor não se esgota totalmente dessa forma. Imaginem o olho de um cadáver – perdoem-me o exemplo –, mas um olho do tamanho do de um animal pré-histórico (pode até ser que exista, quem sabe, com todas as questões sobre a evolução que são lançadas!); um olho morto é uma espécie de espelho, pois o olho é vítreo: uma coisa passa à sua frente e se reflete nele como numa chapa ou numa película fotográfica. Mas, se esse olho estivesse vivo, o mesmo objeto, passando diante dele, se refletiria com nuanças de cor, com vibrações; essa figura seria vibrante nesse olho, ela se refletiria nesse olho de maneira vibrante: a figura “feriria” esse olho. O olho recebe e hospeda o objeto em sua estrutura, mas o objeto que passa à sua frente, na medida em que é recebido, fere o olho; não no sentido ruim: não é que lhe dê um soco, mas, de certa forma, choca-o. Essa palavra, em latim, deveria ser traduzida por affectus, como se disséssemos “um olho affectus por”. A palavra affectus realiza, portanto, a dinâmica do conhecimento. O fato de a pessoa não querer ver faz que ela não veja, pode fazer que ela não veja, até o extremo da patologia. Que dose de moralidade entra no conhecimento! É um tema que tocamos e desenvolvemos amplamente em nossos diálogos (nós falamos de tudo, foi um ano interessante – um ano! –, por mais que a transcrição possa ser uma objeção intransponível para aqueles que apreciam a pureza da língua).
O conhecimento, portanto. Isto aqui é um livro, esta coisa diante de mim é um livro. Mas suponham que eu tenha de ir – como fui tantas vezes – a São Paulo, no Brasil. Venho primeiro a Roma, vim primeiro encontrar o padre Giacomo, que está de cama com um pouco de febre, nada grave, só um pequeno resfriado; eu o cumprimento, lhe dou um abraço, depois vou para o aeroporto de Fiumicino. Embarco no avião. Ponho minha valise lá em cima, me sento... Mas veja só quem está ali!? A Nádia! “Nádia, faz um tempão que eu não vejo você! Oi, como vai? De onde você está vindo?” É uma antiga colega de escola; já se passaram anos desde a última vez que nos vimos. “Estou vindo de Beirute”, ela me responde. E me diz: “Estou vindo de Beirute e vou agora para Buenos Aires”. “Como assim? No que é que você trabalha?” “Sou corretora de seguros.” “E... tem família?” “Tenho três filhos.” “Três filhos! E ainda consegue trabalhar!? Nossa, que vida pesada a sua!” “É mesmo, é um pouco pesada.” Nesse meio tempo, o avião decolou; depois de alguns minutos de silêncio, ela me diz de repente: “Você se lembra do Carlos?” “Claro!” – era o brincalhão da classe, que azucrinava todos os professores; uma vez colou nas costas do professor de religião, que vivia louvando a pátria, a bandeira da Itália enrolada, de um jeito que, de pouquinho em pouquinho, o professor acabou coberto pela bandeira branca, vermelha e verde (o coitadinho se chamava Monza!). O Carlos a cada dia aprontava uma nova... – “Claro! Mas que fim terá levado aquele ‘pilantra’!”. Porque todos os professores reclamavam dele, e em todas as reuniões de pais as pessoas reclamavam dele. “Não! Ele mudou! Eu digo isso porque o vi na semana passada, em São Paulo: ele virou um grande trabalhador! Tem indústrias em tudo quanto é lugar, está riquíssimo, endireitou a cabeça, e tem cinco filhos!” “Nossa!” Eu a faço me contar tudo o que sabe do Carlos – ela é muito amiga dele, já era no tempo do colégio. Quando chegamos ao Rio de Janeiro: “Tchau”, “Tchau”, nós nos separamos, porque ela tem de partir para Buenos Aires e eu, para São Paulo. Foi puro acaso, uma providência. Vou fazer o check-in e quem é que encontro ali? O Carlos! Depois de quarenta anos, vejo o Carlos. Eu o cumprimento pelos cinco filhos, ele está todo tranquilo, depois o cumprimento também pela seriedade que adquiriu, contrariamente a todas as nossas previsões e das outras pessoas, dos colegas aos adultos. Eu lhe dou parabéns especialmente pela filial que construiu na África do Sul, segundo me falou a Nádia: digo a ele tudo o que soube pela Nádia, como se eu mesmo tivesse visto. E não estou enganado; ele não me diz: “Não, isso não é verdade, eu não tenho essa filial!”. Eu lhe disse tudo o que sabia sobre ele não porque tivesse visto tudo aquilo antes, porque tivesse constatado essas coisas antes, mas porque a Nádia, a amiga Nádia, me disse.
Isto aqui é um livro: eu sei disso mesmo sem que ninguém me diga. Eu sei disso, não porque alguém me diz, mas porque vejo que é um livro, o reconheço como livro. Mas será que o método, a minha maneira de agir diante do Carlos e diante da Nádia, o meu conhecimento do Carlos e daquilo que fez em sua vida, induzido da conversa com a Nádia, e que ele não desmente – pois não há o que desmentir, é tudo verdade –, é “racional”, enquanto reconhecimento, conhecimento, ou será que não é? Se o que a Nádia me disse corresponde à objetividade das coisas, se aquilo que eu sei porque a Nádia me disse corresponde à objetividade das coisas, esse método é perfeitamente racional. Eu entendi então, realmente ninguém me havia explicado isto antes, foi então que eu entendi isto, dando aulas no colégio Berchet – se bem que por outros motivos, graças a um outro acontecimento –, que a razão era aquela coisa viva de que falei antes: que a razão era eu mesmo, correspondia a tudo o que eu era, entrava em todos os meus membros. Para reconhecer esses dois rapazes que estão ali – um deles de cachecol preto –, eu tenho de me mexer para cá; agora, se eu tiver de reconhecer aquele senhor muito bem-apessoado que está lá no fundo, terei de me levantar e ficar de pé: é o objeto que determina o modo, o “método”, ou seja, o caminho que o olhar da razão deve seguir. Por esse caminho ela chegará ao objeto, à realidade. Assim, eu descobri, generalizando a questão, que a razão, a “minha” razão, possui um método para conhecer a realidade que é direto – direto mais ou menos, pois eu aqui não tenho a intenção de dar uma aula de psicologia ou gnoseologia –, segundo o qual o sujeito do conhecimento sou eu e o meio que me leva a conhecer está dentro de mim mesmo; mas existe também um método indireto. Eu soube as coisas que fiquei sabendo do Carlos por intermédio da minha amiga, cheguei a uma certeza a partir do que a minha amiga me contou. Eu tinha certeza de que o Carlos tinha cinco filhos, tinha-se tornado uma boa pessoa, etc., antes de encontrar o Carlos no aeroporto do Rio de Janeiro: minha amiga me havia dito tudo isso! Existe um método da razão que é conhecimento indireto: ele se chama – usando um termo técnico, empregado nos tribunais – “testemunha”, o instrumento que não está mais em mim, mas fora de mim, que me leva a conhecer alguma coisa; ele se chama testemunha. É um método como qualquer outro, por meio do qual a razão toca a realidade. Não aceitar que esse método seja um método “racional” é irracional: é um preconceito. Santo Tomás 1, por sinal, fazia uma observação que boa parte da psicologia de hoje confirma: o homem tem muito mais certeza a respeito daquilo que ouve do que a respeito daquilo que vê; o homem tem muito mais certeza de algo que lhe é dito do que de algo que ele mesmo vê. O testemunho disso nos é dado por todo o povo de hoje, por esse povo que Pasolini prefigurava ao usar o termo “homologação”, esse povo totalmente homologado pelos meios de comunicação de massa, homologado por completo. As pessoas que não se esforçam para refletir, diferentemente de mim, que me esforçava, com aquela centena de jovens, são todas homologadas. Todas! Eu me lembro de que no primeiro ano em que dava aulas de religião – há quarenta anos – li numa revista americana que um homem que visse um filme todas as semanas, que fosse ao cinema todas as semanas, depois de não sei quantos anos – mas eram poucos, dois ou três, talvez –, passaria a pensar, passaria a ter como critérios éticos, mas também gnoseológicos, cognoscitivos, a média das opiniões, dos critérios próprios dos vários diretores de cinema. Se juntassem todos os diretores e fosse estabelecido um termo médio de suas convicções, essas convicções seriam também as convicções do indivíduo que tivesse visto seus filmes uma vez por semana. Imaginem hoje! Uma vez por semana? A toda hora há um filme para ver! É por isso que é irresistível a homologação temida por Pasolini, ou melhor, “constatada” por Pasolini. Certamente, qualquer um de nós a poderia constatar. Ele a constatou porque tinha uma preocupação em relação ao homem que os outros escritores, pensadores, políticos não tinham.
Sendo assim, respondo sua pergunta dizendo que a fé é um dos métodos ou dos caminhos que a razão viva e ágil usa, utiliza para chegar à realidade, seguindo o convite da realidade: se a pessoa está ali, faz assim; se a pessoa está acolá, faz de uma outra maneira. Agora, se a realidade vem ao meu encontro por meio do testemunho de um outro, por meio do outro, enquanto testemunha, eu posso chegar muito bem à certeza como se eu mesmo a tivesse visto. Parece uma coisa óbvia, mas não é de jeito nenhum.
Quero acrescentar uma observação. Para considerar como certo o que a pessoa me testemunha, tenho de ter uma estrutura moral e uma postura de ânimo tais, que nada se oponha a priori, aprioristicamente, de forma “preconcebida”, àquela pessoa que me fala; em outras palavras, que eu não seja instintivamente “contra”, definitivamente já em oposição à pessoa que me dá testemunho: isso é necessário para que eu possa aceitar aquilo de que a pessoa me dá testemunho, para que eu possa entender – entender! –, me dar conta, reconhecer que é verdade que ela me diz aquilo com verdade, e que eu, agindo assim, não erro. A pessoa, agindo assim, pode errar, nós falaremos disso depois, em outra observação; a pessoa pode errar, mas pode também não errar; portanto, o método é válido: a pessoa pode não errar.
A questão é identificar quando é que usamos tão bem esse método que não erramos. O provérbio: “Confiar, desconfiando” é um provérbio estúpido, contrário ao que há de mais evidente. A capacidade de confiar é própria do grande homem e do homem adulto, do homem que conheceu muitas coisas, que refletiu a respeito de tudo: ele sabe de imediato, quando o outro lhe fala, se deve duvidar dele ou se o outro fala francamente; ele o sabe com muito mais facilidade do que um jovem diante de um colega da mesma idade com quem está conversando. Quanto mais a pessoa é rica em humanidade, quanto mais é crítica de si mesma, consciente dos limites de sua caminhada humana, consciente de sua realidade, mais sabe quando e como confiar. Saber confiar: essa é a genialidade. Não saber confiar: esse é um erro que todos cometem, até o marido diante da mulher, a mãe diante do filho, o filho diante dos pais; e essa é a origem de muitas crises. A pessoa pode errar, é claro. Se, por exemplo – como eu dizia àqueles jovens –, você está caminhando pela calçada, está pensativa, olha um pouco distraída para os lados, não se dá conta de que está vindo na sua direção um indivíduo de barba malcuidada, comprida, muito comprida, de cabelo desgrenhado, cheio de falhas, usando um casaco todo sujo, com os dedos dos pés fora dos sapatos furados, de olhos transtornados... ele vem direto para cima de você, você o percebe no último minuto, e ele lhe diz: “Senhorita!”. “Pois não?” – e você pensa: “É um mendigo”, e já está levando a mão à carteira –, mas ele diz: “Sabe o que aconteceu?!”. “O que aconteceu?” “Clinton morreu!” “Ah, é?!” “Clinton morreu, assassinado.” “Assassinado?!” Se você fosse dali pensando: “Minha nossa, em que pé estão as coisas! Quando acontece um negócio destes, é sinal de uma decadência geral; é uma decadência tão grande que ninguém mais pode ficar tranquilo. E eu, que vou me casar daqui a dois anos! Será que vou conseguir realizar tranquilamente o meu projeto? E o resto da vida, depois de me casar? Que tristeza!”; se você continua o seu caminho impressionada com o que aquele indivíduo lhe disse, é uma tola, pois um indivíduo desses não tem pé nem cabeça, nem contexto, não apenas do ponto de vista social, mas também do ponto de vista fisiológico, de comportamento: evidentemente, é uma pessoa transtornada, um louco. Num caso como esse, não seria justo acreditar. Mas não é tarefa minha, aqui, entrar em detalhes; não estou dando uma aula sobre quando e como acreditar.
Chama-se “acreditar” um conhecimento da realidade ao qual o homem chega, na forma de certeza, como se ele mesmo a tivesse visto, quando na verdade esse conhecimento chega até ele por intermédio do testemunho de outro homem. O homem deve, portanto, lidar com esse outro homem, com essa pessoa, com esse outro, e a relação com o outro é também uma relação ética – psicológica e ética. Vejam o quanto a capacidade de aproveitar juízos, informações e notícias que derivam do outro depende da honestidade que você tem – da sua honestidade! –, da sua sinceridade, da sua simplicidade, da sua clareza, da sua perspicácia! Quando conhecemos uma realidade por intermédio de uma testemunha, por obra de uma testemunha, toda a nossa personalidade está implicada nisso; não é só a razão, enquanto “engrenagens” do cérebro, que está implicada nisso, mas toda a realidade do cérebro, com os olhos, as mãos, o olfato, e com eles o coração, a memória do meu passado, as minhas reações, a vivacidade, a clareza, tudo isso está implicado. Enfim, toda a personalidade é obrigada a se comprometer com uma outra personalidade. Por isso, a fé, o conhecimento por fé – conhecimento da realidade mediante o testemunho de um outro – delineia e revela a capacidade de posicionamento e de disposição adequada, humana, diante de algo que é humano.
A propósito – perdoe-me –, onde foi que você nasceu? “Em Salerno.” Nasceu em Salerno: dizer isso, para ele, é um ato de fé, pois ele não estava presente a seu nascimento; estava presente, mas inconscientemente. Dizer isso é um ato de fé.
A convivência humana, a sociedade, portanto, com toda a sua complexidade, o desenvolvimento da história, a caminhada contínua da cultura rumo aos horizontes últimos das coisas, da realidade, dependem desse tipo, desse esquema de conhecimento. Se o homem tivesse de começar sempre do princípio e tivesse de admitir apenas o que vê, seríamos ainda trogloditas: o homem teria de voltar sempre ao princípio, nunca poderia partir daquilo que os outros lhe deram. Nós, porém, partimos sempre, e com segurança, daquilo que recebemos como herança de um passado. Podemos discernir, naquilo que recebemos do passado, entre as coisas que consideramos melhores e as que consideramos piores. E facilmente, nesse juízo, podemos errar; mas esse juízo depende do coração, da pureza do coração, ou da pobreza do espírito, como diria Jesus. Pretendi, desta forma, responder.
Acrescento uma frase. É claro que são importantíssimas as observações que eu fiz, pois, se existe alguma coisa além do nosso horizonte, um horizonte impossível de ultrapassar, quando chegamos ao limiar a partir do qual a realidade se torna incógnita por sua natureza, quando chegamos ao limiar daquilo que se chama “mistério”, só esse método pode nos permitir conhecer algo do mistério. E como poderemos verificar que o que sabemos do mistério, mediante o testemunho de alguém que vem do outro lado da linha última, que entra no mundo humano, é verdade? Como poderemos saber que aquilo que esse alguém nos revelará é certo? Nós só o saberemos pelo fato de que aquilo potencializa o humano. Se potencializa todo o humano, então é verdadeiro.

Pergunta. No livro, você fazia uma distinção entre a fé como definição e a fé da maneira como surge, como começa. Eu gostaria de entender melhor este ponto.
Giussani. A relação entre fé como definição e fé como... realizada.
Giancarlo Cesana. Eu poderia ler uma resposta que você deu em É possível viver assim?, até para nos familiarizarmos com o tom do livro, que, como vocês vão ver, é muito fácil de entender, porque é um diálogo. Por isso mesmo, a gente começa de longe: “Se você anda de bonde e há um motorneiro como todos os outros, e você abre caminho em direção à frente porque gosta de andar de bonde ali, e fica olhando o motorneiro fazer tra-trac, tra-trac... usando a manivela, você não chega em casa dizendo a sua mulher: ‘Sabe, eu fiz um encontro!’ ‘Que encontro?’ ‘Com o motorneiro.’ Mas se, enquanto você está ali ao seu lado, ele breca repentinamente o bonde porque um cara passa correndo na frente, e ele abre a porta e grita: ‘Corno!’ E esse outro corre atrás do bonde e, na parada seguinte, sobe no trem; pede passagem, chega até a frente, aproxima-se de você e do motorneiro, que começa a tremer um pouco, e lhe diz: ‘Desculpe-me, mas por que me chamou de corno? Como o senhor sabe que eu sou corno?’ O motorneiro responde: ‘Desculpe-me, mas fiquei tão assustado porque o senhor passou correndo na frente do bonde, que o injuriei... Porém o senhor deveria prestar mais atenção’. ‘Não, não, o senhor tem razão, eu sou corno. Porque, veja, eu me casei. Depois fui para a Inglaterra, para Londres, fiquei dois anos trabalhando lá, voltei e minha mulher tinha um filho. O que o senhor teria feito?’ O motorneiro abana a cabeça. E o outro: ‘Eh, fiquei com ele! Pobre criança, não tinha culpa nenhuma, fiquei com ele. Só que o menino cresceu e era preciso, primeiro, mandá-lo para a creche... E minha mulher disse: ‘Vamos mandá-lo para a creche das irmãs, porque ficaremos mais tranquilos’. O que o senhor teria feito? Eu disse a ela: ‘Mandemo-lo para as irmãs!’ Depois da creche, o primário, e minha mulher me disse: ‘Deixemo-lo ali nas freiras...’ O que me custa, me custa o olho da cara, o senhor sabe quanto custam as escolas particulares... Mas deixei-o ali nas freiras. Depois do primário, o ginásio, ainda nas freiras... O que se pode fazer, eu tenho um coração muito bom e deixei-o também lá, nas freiras, pagando um horror! E minha mulher que não merece. Terminando o ginásio, minha mulher me persuadiu: ‘Vamos colocá-lo no liceu’. O que o senhor teria feito? Eu o mandei para o liceu... E numa escola particular! Assim... custou-me muito, esse filho! Mas na semana passada não aguentei mais! Minha mulher me disse: ‘Escuta, ele acabou honrosamente o liceu. Mandemo-lo para a Universidade’. ‘Ah, não, não!’, desabafei. ‘A esse ponto, não! Porque o filho da mãe, no máximo, pode ser motorneiro!!!’ Eu”, prossegue o relato, “e os outros três ou quatro que estávamos ali ouvindo, rimos... Depois, quando vou para casa, digo à minha mulher: ‘Sabe, eu tive um belo encontro hoje!’ Isto é justo, sim ou não? Porque é um pouco excepcional encontrar uma coisa assim”.
Portanto, continua o texto, “segunda característica do ato de fé: o fato do qual se parte, o encontro feito, tem algo de excepcional. Mas fiquem atentos: quando se pode chamar algo de excepcional? Esta é realmente uma observação, não sei se mais dramática ou cômica – a natureza, sendo criada por Deus, é capaz de ser cômica algumas vezes, rapazes –, porque nós sentimos uma coisa como excepcional quando corresponde às exigências mais profundas pelas quais vivemos e nos movemos. Existem exigências profundas que dão objetivo ao viver, ao raciocinar, ao mover-se: quando algo corresponde ao critério pelo qual se vive e se julga tudo, quando corresponde aos critérios com os quais se vive a vida, com os quais se desejaria vivê-la, quando corresponde aos desejos mais profundos do coração, quando corresponde àquilo que a Escola de Comunidade chama ‘experiência elementar’, quando corresponde às exigências mais profundas do coração, isto é, àquelas com as quais se vive tudo e se julga tudo, quando corresponde às exigências mais naturais e plenas do coração, quando realiza aquilo que a vida espera, então é excepcional. Um encontro para ser excepcional deve corresponder àquilo que você espera. O que você espera deveria ser natural, mas é tão impossível que aconteça aquilo que você espera, que quando acontece é excepcional”. Portanto, essa é a segunda característica do ato de fé.
E depois há um “último ponto: a resposta”. Quando acontece esse algo excepcional, o que respondemos? “Qualquer ato verdadeiramente humano, e sobretudo o ato humano que está diante do seu destino, qual é a característica suprema do ato humano? Lembrem-se de Péguy: Deus nunca obriga ninguém, liberdade! Diante disso, em que tudo é claro – ‘Se eu não acreditar em Ti, não acredito nos meus olhos’, esta é a substância da posição de São Pedro –, diante da pergunta: ‘Quem é Ele?’, e diante da resposta que Pedro dá, pode-se dizer ‘sim’ ou ‘não’, aderir àquilo que Pedro diz, ou ir embora, como todos os outros. A única coisa razoável é o ‘sim’. Por quê? Porque a realidade que se propõe corresponde à natureza do nosso coração mais do que qualquer imagem nossa, corresponde à sede de felicidade que temos e que constitui a razão do viver, a natureza do nosso eu, a exigência de verdade e de felicidade. Cristo corresponde a isto, de fato, mais do que qualquer imagem que possamos construir. Pense o que quiser: diga-me se há alguém que seja mais do que este homem assim como O descreve o Novo Testamento! Diga-me, se você consegue imaginar! Não se consegue; Ele corresponde ao nosso coração mais do que qualquer possibilidade que consigamos imaginar”.
Giussani. Só que esse sistema tem um inconveniente: para entender que o Barolo é um bom vinho, é preciso bebê-lo e de uma certa maneira, com uma certa cautela, mas é preciso bebê-lo. É por meio da experiência do que este livro afirma, é por meio da nossa experiência, que a pessoa entende que fora de Cristo é impossível viver, como disse São Pedro no sexto capítulo de São João: “Nós também não compreendemos o que Tu dizes, mas, se Te deixarmos, aonde iremos? Só Tu tens palavras que explicam a vida” 2. É experimentando que se entende. E, sendo que é o único caso de desafio que lhes é feito, é conveniente a vocês que, antes de pretender aderir a outra coisa, verifiquem esse desafio, ou seja, experimentem-no, sigam-no de modo tal que se torne experiência. E então vai se tornar um hábito para vocês constatar, no seu dia-a-dia, aspectos ou pontos destacados da sua experiência que não podem ser encontrados em outras, que não podem ser imaginados por uma posição diferente.
Quando estava no barco naquela noite, Ele estava tão esgotado que dormia e nem sentia a terrível tempestade que estava caindo – um tipo de tempestade que ainda hoje costuma aparecer de repente, no lago de Tiberíades, e aí as pedras do fundo são trazidas para a tona e pegas pelo vento e jogadas pelos ares. O barco já estava inundado. Então eles decidiram acordá-lo: “Senhor, ajuda-nos, pois estamos perdidos!”. Ele se levanta, acena para o mar, para a tempestade, e tudo se acalma. Aqueles homens, que eram seus amigos, aqueles sete ou oito que iam sempre à casa dele, havia meses, que conheciam tudo a respeito dele – o pai, a mãe, e todos os seus antecedentes –, aqueles amigos, atemorizados, diziam entre si: “Mas quem é este?” 3. A desproporção entre a maneira como aquele indivíduo se apresentava e o que eles podiam imaginar era tal, que eles eram obrigados, depois de conhecê-lo, a dizer isso. A mesma pergunta, idêntica, dois anos depois, foi feita por seus inimigos, que antes disso esgotaram todas as respostas que conseguiam dar, todas as tentativas de resposta, e no final lhe disseram: “Até quando nos deixarás sem fôlego? Dize de onde vens!” 4. Eles tinham a certidão de nascimento dele, eles mesmos a haviam emitido. Às vezes parece impossível que um homem possa escapar, deslizar para fora do apuro doce e imponente desses fatos. Mas depois a pessoa olha com mais atenção para si mesma e entende: é claro que o homem pode escapar! Pois o homem é impostor. Diz Jesus: “Vós sois todos maus” 5; ele disse isso num momento triste, mas a constatação também era triste, e era uma constatação: “Vós sois todos maus!”.

Pergunta. O senhor pode nos explicar melhor o que entende por esperança, quando diz: “Se a fé é reconhecer uma Presença certa, se a fé é reconhecer com certeza uma Presença, a esperança é reconhecer uma certeza no futuro que nasce dessa Presença”? O que o senhor entende por esperança?
Giussani. Não me lembro mais como desenvolvi a questão (pois ainda não reli o livro), mas agradeço a Deus pela certeza que me concedeu; e, como diz São Pedro: “Estai sempre prontos a dar razão da vossa esperança” 6. Uma criança que tem de atravessar uma torrente profunda, se está com seu pai, sabendo muito bem a força que ele tem nos braços... Ele sempre a segurou em seus braços! Mesmo naquela vez em que foi buscar feno e levou junto o filho, o pai encheu o cesto de feno até a boca e o menino queria ajudá-lo, não parava de bater os pés, dizendo: “Eu também quero carregar um pouco de feno, papai!”. E o pai afinal se decidiu: arrancou uma porção de feno, pôs a porção nas mãos do menino e, assim, levou uma hora a mais para chegar a sua casa; é que normalmente ele pegava o menino e o punha em cima do feno... O menino sabe muito bem que o pai tem braços fortes; ele tem horror a passar por essa ponte estreitinha (eu digo isso porque ainda tenho horror a passar por esses lugares acidentados), mas o pai lhe diz: “Eu pego você no colo”. O menino é pego no colo e não tem mais nenhum medo: graças a uma presença; uma presença que assegurava um passo que ainda não tinha sido dado no presente, mas que se daria, aconteceria.
Imaginem a viúva de Naim, aquela mulher que seguia o féretro de seu filho único, sendo já viúva, e que Jesus foi encontrar, sem dizer logo de uma vez: “Eu te devolvo teu filho: filho, levanta-te!”. Mas a primeira coisa que disse foi: “Mulher, não chores” 7, uma frase que poderia parecer até estúpida, de um certo ponto de vista, pois como é possível ter a pretensão de que uma mulher naquelas condições não chore? Como é possível? Esse pequeno antecedente ao gesto sublime que Cristo realizou depois, porém, é o sinal de que o amor com que se aproximava dos homens era um amor, uma piedade, pessoal até esse ponto, profunda até esse ponto, comovida até esse ponto: era caridade. Como está explicado em É possível viver assim?, a caridade, a caridade de Deus para com o homem, é um amor comovido; se não fosse comovido, não seria divino – uma pessoa pode retirar lama ou distribuir dinheiro sem comoção. A comoção é o sinal de que um indivíduo participa profundamente, compartilha profundamente alguma coisa. Ninguém vive para morrer, mas para viver; tanto é que até a morte – como dizia Huizinga 8 –, sendo parte da definição da vida, parte integrante da definição da vida, até a morte é uma passagem, um limiar para uma vida maior, mais profunda.
É claro que, se eu tenho um presente seguro, graças a esse presente seguro posso projetar para o futuro projetos sábios e, portanto, adequados ao que tenho. Não era esse, porém, o aspecto da pergunta que nos interessava; isso é óbvio: a esperança, psicologicamente, se baseia num presente, sempre. É algo que você tem no presente que lhe permite projetar tendo certeza do futuro. Certeza até certo ponto; por isso seu projeto deve ser bem prudente, sua imaginação deve ser bem governada, não deve ser uma pretensão; mas, de fato, estruturalmente, a esperança é ter algo no presente que permite elaborar uma hipótese de construção para o futuro. Não é algo a mais, pois o homem vive para um amanhã, não vive o instante esgotando na prisão desse instante todos os seus desejos: só um bêbado pode ser que viva assim, um bêbado em todos os sentidos, por muitos motivos, mas sempre e somente um bêbado – como dizia Jesus numa frase conservada nos papiros encontrados no Egito, em Oxirrinco: “Veio ter com eles e os encontrou a todos embriagados; nenhum deles tinha sede” 9. Ibsen o traduziu em outros termos: com a imagem de um quarto no qual o dono não estava mais. E o dono, no fim, diz: “Senhor, tu és o sol do universo, sempre iluminaste este quarto, mas nunca encontraste seu dono. Por isso, iluminaste-o inutilmente; tu o iluminaste e aqueceste inutilmente” 10. É claro, de qualquer forma, que dentro de certos limites esse ímpeto à construção, à edificação, ao organismo, à organização do tempo que se encaminha para o futuro não pode ser reprimido. Aliás: por que você vive hoje? Para o amanhã, para um amanhã. Você não pode restringir isso: se continua mudo – se não responde –, é sinal de que já está morto. Você já está morto!
Mas a pergunta nos interessava sobretudo em relação ao que nos disse Cristo, Aquele que veio do outro lado da margem última, que veio da outra margem em nossa direção, para dizer: “Estais aqui reunidos, apinhados nesta orla de terra. Comeis com dificuldade, tudo é árido, tudo termina em aridez, mas eu vos levarei à outra margem, à outra praia, onde haverá um verde perene”. A certeza que eu tenho de Jesus, agora, me dá a capacidade de esperar pelo futuro com segurança, e a esperança é esperar pelo futuro com segurança: esperar pelo futuro, ou seja, esperar um conteúdo novo, um futuro novo, com segurança. Não “dentro de certos limites”...; ou melhor, sim, “dentro de certos limites”, aparentemente limites: dentro dos termos do desígnio de Deus, da vontade do Pai, que é uma vontade infinita e eterna. Sem a perspectiva do eterno, até o abraço mais amoroso – dizia Claudel em O sapato de cetim –, até o abraço mais terno se torna prenúncio de morte. E, como dizia Rilke: “E tudo se concerta para nos calar, em parte por vergonha, talvez, em parte por indizível esperança” 11. Aquilo para o qual somos feitos é algo que não pode ser dito, algo que pode ser pressentido e não pode ser dito; quanto mais a vida transcorre perto de Cristo, consciente da presença de Cristo, mais esse pressentimento se torna regra e norma, fonte de vitalidade. Porém, os poetas, eu dizia desde o colégio, os grandes poetas são todos profetas: você percorre muitas páginas, de repente encontra um verso, uma estrofe, uma página em que Deus é realmente aquilo do qual eles são profetas; mais ainda: é Cristo. E isso porque é humano aquilo de que partem, e é humana a imagem que fazem, é Cristo, é Deus feito homem, do qual eles são profetas. E estudar a literatura – como, graças a Deus, eu a estudei – faz que o estudo também se torne como que participar de um conto extraordinário.
Esperar em vão: existe alguma coisa mais cruel do que isso, um final mais terrível do que esse? A vida não é tragédia, mas é trágica, como a última palavra sobre a vida dos grandes pensadores e poetas gregos, que representam o melhor da literatura humana. Só com o cristianismo é que a vida não é mais trágica, mas dramática. E a dramaticidade é a luta entre um eu e um tu: como a de Jacó, do Jacó bíblico, quando chegou de noite àquele vau, mandou que passassem os servos, as mulheres, as crianças, os animais, depois foi a vez dele. Já estava tudo escuro e ele quis passar do mesmo jeito, mas uma mão o deteve, e ele lutou a noite toda com o Ser misterioso, até que de manhã o Ser misterioso venceu, o feriu na coxa, de modo que ele ficou manco a vida inteira, marcado a dedo 12. Quem é que vive, quem é que vive buscando realizar a consciência da grande Presença? São Paulo diz: “Quer comais, quer bebais, lembrai-vos de que tudo é glória de Cristo” 13. Comer e beber: a comparação mais banal que ele poderia usar, depois da qual só restaria o vulgar!

Pergunta. No livro, você dizia que a grande questão é voltar a ser criança, voltar às origens, voltar justamente a ser como Deus nos fez. Depois acrescentava – para explicar isso –, dava a definição de moralidade: “Viver na postura em que Deus nos fez”. Pode esclarecer essa relação?
Giussani. Meu amigo Carlo vai responder a vocês.
Carlo Wolfsgruber. Vou reler a frase que ele citou, pois assim dá para entender melhor: “Por isso, a grande questão é voltar a ser criança [...]. A grande questão é voltar à origem, a grande questão é voltar a ser como Deus nos fez. Com efeito, o que é a moralidade? A moralidade é viver na postura em que Deus nos fez”. Esse trecho se apresenta como resposta a uma pergunta, feita pouco antes, que diz: “Mas Deus, quando veio, foi reconhecido por quem?”. Justamente: a grande questão é voltarmos a ser crianças, ou seja, a ser morais, a viver a postura em que Deus nos fez.
Como primeiro comentário, a coisa que mais impressiona é que essa postura em que Deus nos fez é uma postura que temos diante de toda a realidade, e portanto também do problema de Cristo: tanto é que não é um problema abstrato, uma ideia, não é um problema teórico, mas a tomada de posição diante de um fato presente na realidade. É tão verdade que Cristo é uma presença na realidade, que a postura adequada que permite reconhecer Cristo é a mesma postura que é adequada diante de toda a realidade, diante de mim, diante de minha mãe, diante das coisas que eu tenho e que desejo ter, diante dos outros, diante dos amigos, diante da realidade, enfim. Reconhecer Cristo requer determinada postura, adequada, moral; mas essa postura moral é a mesma que me permite ter uma relação adequada com tudo.
Então, entremos no mérito do que é essa postura adequada. Ele diz ali: é a postura da criança. Num determinado momento, explica o que é essa postura, na assembleia que se segue, e diz: a criança é “abertura, curiosidade e adesão”. Portanto, a postura moral, ter uma postura moral diante da realidade, que é também a postura que permite a você reconhecer Cristo, significa ter diante da realidade uma abertura, uma curiosidade e uma adesão. Numa palavra, parece-me que se poderia dizer: não ter preconceitos, ou seja, não ser irracional, não ser dominado pela irracionalidade do preconceito. Pois o preconceito é, a meu ver, irracional ao menos por dois motivos: primeiro, porque você pretende conhecer uma coisa que não sabe pretendendo que já sabe – portanto, é uma contradição evidente –; e, segundo, é irracional porque normalmente o que você pensa que já sabe sobre o que não sabe é simplesmente o que os outros pensam, não chega nem a ser uma ideia original sua.
Seja como for, “a grande questão é voltar a ser criança”, e isso é a moralidade. Depois o texto aplica essa posição à relação com Cristo. Se me permitem, lerei essa parte: “Todos os apóstolos eram assim, com exceção de um que ia atrás dele – era totalmente como os outros, aliás, era cheio de iniciativa, tanto é que Jesus tinha deixado sob responsabilidade dele o caixa: tornou-o administrador do grupo –, mas ia atrás não com aqueles sentimentos, ia esperando alguma coisa. Também os apóstolos esperavam alguma coisa, esperavam que Jesus restabelecesse finalmente o reino de Israel, o reino do povo hebreu para dominar o mundo e torná-los ministros desse mundo; porém – se com essas imagens espelhavam a mentalidade de todos – havia um apego a Jesus que era mais agudo do que aquelas imagens às quais tinham permanecido fiéis. Tanto é assim que quando Jesus ressuscitado os encontra pela primeira vez, eles dizem: ‘Mestre, será agora que hás de restaurar a realeza em Israel?’, como se não tivesse morrido, como se não tivesse acontecido nada; repetem a mentalidade de todos. E Jesus, pacatamente, responde: ‘Não é assim! O tempo desses acontecimentos só o Pai o sabe’. E eles são tão crianças perto de Jesus que não insistem mais, não estão apegados à pretensão de que Ele responda às suas perguntas da forma como as imaginam, mas estão mais profundamente apegados a Ele do que às suas próprias opiniões, com uma simplicidade maior. [...] É exatamente o grande perigo que todos nós corremos: o predomínio das nossas imagens sobre a espera que Deus despertou no coração e que Cristo renovou em nós, aliás, tornou-a precisa para nós. Como a tornou precisa? Tornou-a precisa como relação com Ele: ‘Confiem em mim’”.
Há uma parte de um livro que se chama Moralidade: memória e desejo – é a parte que mais me impressionou nesse livro –, que descreve com outras palavras o significado dessa abertura, dessa curiosidade e dessa capacidade de adesão sem preconceito; ali se diz: “Na relação entre um filho e seu pai, na relação entre um discípulo e o verdadeiro mestre, o filho e o discípulo vivem tudo a partir de dentro daquela relação” 14. Pois essa é a posição original, que é a moralidade.

Pergunta. O senhor afirma que o problema da compreensão da realidade está todo no episódio de João e André, no primeiro capítulo de São João, quando eles seguem Jesus, que foi indicado por João Batista. E depois diz que o fundamento da moral verdadeira está no capítulo 21 de São João, quando Cristo pergunta a Simão: “Tu me amas?”, e ele responde: “Tu sabes que te amo”. Eu gostaria que me explicasse essas duas coisas.
Giussani. Ali – no livro –, eu queria simplesmente resumir em dois pontos (Jo 1 e Jo 21) tudo o que é o verdadeiro movimento do homem que Cristo trouxe ao mundo e que passou a poder ser experimentado por qualquer um – quando a pessoa é chamada a experimentá-lo. Pois o que não está no presente, na experiência presente, uma coisa que não esteja de uma forma ou de outra na experiência presente, não existe: só a experiência presente, só o que é pode ser afirmado como ser. A situação incômoda em que vivemos, religiosamente falando, é que não temos uma percepção do cristianismo como uma realidade presente na experiência presente. Mas, para viver, nós partimos, julgamos, etc., de uma experiência presente. O que não é presença na experiência não existe: se uma coisa é, deve estar presente de alguma forma – mesmo a mais distante estrela, sem que nós conseguíssemos vê-la, se refletiria na disposição atual do meu presente por meio de uma luz, insinuaria, daria a possibilidade de um ponto de vista que, de outra forma, não teríamos.
Eu quis resumir em dois pontos tudo aquilo que Cristo nos trouxe e que nós somos chamados a experimentar, do ponto de vista do valor real, a respeito da pessoa de Cristo e, portanto, do valor real do mistério de Deus que penetrou em nosso mundo e está presente hoje, aqui e agora, desta misericórdia – diria o Papa – que tem um nome na história: Jesus Cristo.
Como começou, qual é o ponto, a página literária e histórica em que é narrado de que forma começou o problema sobre Cristo no mundo? Como começou a presença desse problema no mundo? É olhando para essa imagem que nós podemos tomar consciência do que devemos fazer no presente, do que nos é necessário no presente para entendê-lo. Cristo não pode ser um nome abstrato, mas é um nome abstrato quando não corresponde a nada da experiência que fazemos. Sendo que entrou – o cristianismo é o anúncio de que Deus se fez homem, entrou na nossa experiência –, existe alguma coisa que falta na nossa observação, existe alguma coisa que falta na nossa atenção: nós o eliminamos antes, o apagamos da memória obstinadamente, o censuramos, para podermos fazer parte das pessoas de hoje em dia.
O primeiro instante em que o problema se apresentou no mundo, na história – historicamente, cronologicamente –, foi quando dois galileus foram ouvir João Batista, que era famoso em todo o mundo judeu de então, testemunhado até por outras fontes, além do Evangelho, até por fontes pagãs: depois de cento e cinquenta anos sem um profeta, finalmente tinha chegado um. Toda a gente ia ter com ele: amigos, inimigos, fariseus, povo. Esses dois galileus foram vê-lo pela primeira vez. Imaginem como estavam lá com o rosto todo aberto pela maravilha ao ouvi-lo falar, impressionados; não entendiam tudo o que ele dizia, mas estavam impressionados com seu rosto, com seu tom de voz, com os contornos do seu pensamento. Num determinado momento, observando-o, viram que não tirava os olhos de um jovem que estava indo embora, que tomava a trilha que ia para o norte, à direita do rio, e viram que João se pôs a gritar: “Eis Aquele que tira os pecados do mundo”. O povo, em geral, não deu bola para isso; estavam acostumados, quando o ouviam, a vê-lo de vez em quando explodir em frases incompreensíveis, sem ligação com o que dizia antes ou diria depois. Mas aqueles dois, tendo entendido onde o olhar de João Batista estava fixado, foram atrás daquele homem, daquele jovem, e, não ousando se aproximar dele, seguiam-no sem que ele soubesse. “Ele sentiu que o estavam seguindo. A certa altura, voltou-se e disse: ‘O que quereis?’ ‘Rabi, onde moras?’ ‘Vinde ver.’ Foram com ele, e ficaram em sua casa o dia inteiro. Era por volta da hora décima (das quatro da tarde)” – mas não especifica mais nada. Logo depois, a página do relato evangélico diz – sem nenhuma conexão, como nós fazemos quando tomamos notas, como faz alguém que anota, num caderninho, observações sobre o dia que passou; realmente, eram anotações de um dos dois, João, que ele fez depois que ficou velho –: “Voltaram para suas casas e André disse ao primeiro que encontrou, seu irmão, que vinha da praia, pois estivera pescando: ‘Encontramos o Messias’” 15. Não diz antes “por que”, “o que disse” aquele homem, “como” o demonstrou, não! Imaginem os dois sentados olhando para ele enquanto falava, e falava de uma maneira tal que “ninguém jamais falara assim”. Estavam tão impressionados com a excepcionalidade daquele jovem, que nem respiravam. Quando voltaram, vieram embora em silêncio. Imaginem-nos quando voltaram para casa, em silêncio. André entrou em sua casa, onde estavam sua esposa e os filhos, e a esposa lhe disse: “Ué? O que é que você tem? Está diferente. Você hoje está diferente!”. E ele não respondia, e talvez a tenha abraçado sem dizer nada; e ela nunca havia se sentido abraçada assim em sua vida. E então diz: “Que foi que aconteceu com você?”. Ele deve ter dito a ela o que depois diria ao irmão Simão: “Encontramos um homem que disse ser o Messias”. Repetiu a ela algumas palavras que tinha ouvido d’Ele, indubitáveis: “Se eu não pudesse crer nesse homem, não acreditaria mais nem nos meus olhos, não poderia acreditar mais em ninguém: estou diferente, me tornei diferente!”. Meu Deus, como isso é verdade! Quantos de vocês poderiam dizê-lo: “Eu me tornei diferente. Não: ‘Era cego, mas agora vejo!’. Não: ‘Era coxo, mas agora ando!’. Estou diferente: não sei dizer...”.
Imaginem, depois de semanas em que essas conversas se repetiram, e depois de meses não apenas de conversas, mas de convivência com ele: eram testemunhas de tudo o que dizia, de tudo o que fazia, passavam dias, semanas, sem dizer uma só palavra, pois toda a atenção deles era arrebatada por aquela presença excepcional, por aquela presença misteriosa. Até que, três ou quatro meses depois, veio aquela noite – pois ele ia pescar com eles: além de falar com eles durante o dia, ia pescar com eles à noite. Chegou aquela noite de que já falamos antes. Perto do amanhecer, a tempestade ameaçou virar o barco e aquele homem “deu ordens ao vento e ao mar e fez-se uma grande calmaria”, tanto que entre eles diziam: “Mas quem será este?”. Aqui surgiu o problema cristão no mundo, dessa forma precisa: num tempo e num espaço preciso. Forma que depois se comunicou aos amigos a quem contavam aquilo, aos familiares, aos amigos do povoado; e muitos deles corriam para ouvi-lo e – como a Samaritana – exclamavam: “Agora sou eu que digo o mesmo que você dizia. Eu digo isso porque eu mesmo vi, eu mesmo ouvi: ‘Ninguém jamais falou assim’. Eu também repito isto: ‘Ninguém jamais falou assim’”. De um para outro, para outro, para outro, foi chegando até a mim, esse acontecimento chegou até a mim, até você, até vocês: está aqui! E eu lhes juro que nós todos passaremos e Ele ainda estará entre aqueles que virão até aqui estudar matemática ou filosofia, ou ouvir uma “arenga” sobre Ele: é a mesma coisa – a mesma coisa! Agora vocês vão voltar para casa, e não podem tirar isso de vocês. Podem tirá-lo de vocês não pensando nisso. Mas, se pensam nisso, não entendem nada, mas perguntam: “Deus, se tu existes, revela-te a mim”, na posição mais desesperada e mais consciente, a do Inominado 16; mas, mais simplesmente: “Senhor, fazei que eu também entenda alguma coisa! Vem, Senhor, também em mim, na minha casa, pois eu entendo que o mundo, a paz do mundo, o valor do mundo, o gosto do mundo, a alegria da vida dependem da mudança que Tu trazes”. Pois não há nenhum partido, nenhum presidente da República, nenhum dinheiro americano, nenhuma vitória sobre o muro de Berlim, nenhuma invasão do Leste Europeu por parte do Ocidente, nenhuma vitória dos japoneses ou dos chineses, não há nada no mundo que possa mudar o homem: essa Presença, sim. “Não sou mais como antes: sou como antes, mas não sou mais aquele de antes; eu vejo, Senhor, coisas que estas pessoas não vêem: faze que elas também as vejam”. Como é possível não dizer isso? Não é porque está exaltada que a pessoa diz isso, mas porque isso é verdade – porque é verdade! Pois, se vocês têm filhos, o que é que dão a eles, se não dão isso? Para que os põem no mundo? Realmente, virou normal a impressão de que faltam razões para pôr filhos no mundo. Por quê? Não existe o “porquê”. A Sua presença traz de volta o “porquê” da vida.
O segundo ponto (Jo 21), tratado de maneira análoga ao que vimos aqui, merece uma reflexão ainda mais atenta, que faremos uma outra vez.

Pergunta. Eu gostaria de entender por que o senhor diz que a experiência do cêntuplo aqui e agora passa por um sacrifício do imediato e, também, que a experiência de uma posse maior, de uma posse verdadeira, se dá por meio de uma distância.
Giussani. Normalmente digo a meus amigos que não é possível estabelecer uma relação verdadeira com nada, e especialmente com ninguém, se isso não implica um sacrifício. Para estabelecer uma relação verdadeira entre mim e você, imagine que tenhamos de superar estes seis metros. Nestes seis metros, a cada centímetro, aparece alguma coisa, surge uma aparência que me convida, que de certa forma me convida. Se eu paro nessa aparência, não chego mais a você: se paro nisso, se vou atrás disso, eu me perco e não reconheço mais o caminho. Se há uma aparência a cada centímetro, tenho de largar essa aparência para chegar até você. Largar uma aparência, para o homem, sempre – mesmo a aparência dolorosa –, é um sacrifício, é uma dor. Distanciar-se da aparência: a aparência tem uma espécie de cola por cima que segura você, que bem ou mal, ou felizmente, segura você; mas é um presente falso: o aparente é um presente falso. Por isso, ai de quem apoia nele o futuro! É o contrário da esperança, é a origem da decepção: a aparência é a origem da decepção. Se eu fito uma coisa certa – certa! –, certamente exata: que você está aqui, se eu quiser chegar até você... Como um jovem que quer chegar até sua garota, pois sabe que é boa, sabe que é justo, sabe que lhe quer bem, pode até ter cometido erros, mas sabe que lhe quer bem e que seu errar é provisório: deve largar tudo o que prende seu braço para segurá-lo; tudo prende seu braço para segurá-lo: deve se desprender e continuar, se desprender dali e continuar. E ao chegar diante do rosto de sua garota, essa aparência – pois ela também é aparência – o atrai cem milhões de vezes mais do que todo o resto, mas, se ele se atirasse sobre ela como o ímpeto lhe sugere, arruinaria tudo; se ele se atirasse sobre ela, se a tomasse, seria como uma... sim, uma posse. A posse traduz ou trai você, faz você assumir a forma de uma pata de animal que rasga – como eu dizia hoje –, que “dilacera” toda a face do outro: dois ou três anos depois, não é mais como antes! No sentido de que morre, morre aquilo que despertou você por dentro. Com Cristo, a cada dia que andavam com Ele, crescia aquilo que era despertado dentro deles, e ainda cresce; cresce de tal forma que comove até a mim, depois de dois mil anos; está aqui, agora; aqui e agora.
Por isso, em primeiro lugar, não se pode estabelecer uma relação de conhecimento, de afeição por uma coisa ou uma pessoa sem um sacrifício por dentro, sem desprender-se de alguma coisa, sem desprender-se de uma aparência. É algo que está além da aparência que deve aflorar, tornar-se concreto, fazer você mudar, arrancar a você mesmo de sua aparência, mudar o jogo. É aí que você pode realmente formar uma família, pode começar uma família de forma verdadeira. Imagine-se todas as noites, não quando vocês rezam juntos a Ave-Maria (o que muitas vezes não fazem), mas quando você se vira para o outro lado e pensa: o dia de hoje também foi cheio de objeções, de um incômodo; só que existe uma coisa, uma memória, uma imagem, a consciência de uma Presença. Pois a memória é a consciência de uma Presença: a presença de uma coisa que começou no passado – por isso se chama memória –, mas invade o presente. É isso que purifica seus pensamentos, fazendo que venha à tona a esperança. Aquilo pelo qual você é feito, aquilo pelo qual encontrou sua esposa, aquilo pelo qual teve um filho, isso vencerá, está destinado a vencer, pela força de um Outro, pela força do Ser; de fato, não foi você que se deu a vida, também não foi você que fez sua esposa, o filho não é seu, e tudo isso pertence: se você pensa n’Aquele a quem pertence tudo isso, que está tão presente a ponto de gerar sua carne neste momento (lembrem-se do décimo capítulo do primeiro livro da Escola de Comunidade, O senso religioso 17; releiam esse capítulo, sim, esse décimo capítulo desafia qualquer outro livro; não é presunção a minha: é mais simplicidade que presunção), é esse pensamento de Cristo que purifica. Então você diz: “Ave, Maria, cheia de graça...”, “Que eu nasça, renasça como nasceu de ti, de tuas entranhas, o Deus feito homem”, e fica em paz outra vez.
O sacrifício faz que você não esqueça nada, abraça tudo, e desemboca na alegria; desemboca, às vezes, na alegria. É impressionante como essa é a última palavra dita por Cristo aos apóstolos – portanto, aos homens – antes de morrer, ao final daquela noitada terrível, daquela noite terrível narrada nos quatro capítulos de São João: “Eu vos disse isso, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” 18. Desafiemos a Cristo, vejamos se isso é verdade, se essa alegria é possível! Mas vivendo a experiência da vida como Ele diz que ela é! E, vivendo a experiência da vida como Ele diz que ela é, continuamos a ser pobres pessoas como todos os outros; pessoas que não julgam mais ninguém, tamanha a consciência que têm de seus limites, mas que têm a possibilidade da alegria, que, em termos normais, cotidianos, se chama letícia: “Tornarei evidente que Eu sou Deus pela letícia do coração deles”. A palavra “letícia” deveria ser suprimida de qualquer dicionário, pois no homem normal não existe a possibilidade da letícia: do contentamento, sim, da letícia, não, e é altamente impossível que exista a alegria, a não ser à luz de Cristo, da certeza trazida por Cristo. Falamos usando o estilo do livro.

Mas antes de ir embora permitam-me ler meia página do diálogo que tive com os estudantes do ensino médio em Cervia, há algumas semanas, quando, antes de começar, cantamos a Sevillanas del adiós (me disseram que vocês ainda não a aprenderam; aprendam-na, pois é belíssima). A canção diz: “Algo morre na alma quando o amigo vai embora. Quando o amigo vai embora e vai deixando um rastro que não pode ser apagado. Não vá ainda; não vá, por favor, pois até o meu violão chora quando diz adeus. Um lenço de silêncio no momento da partida. No momento da partida, porque você tem palavras que ferem e não podem ser ditas. E eis que o barco vai se tornando pequeno quando se distancia no mar. Quando se distancia no mar e quando vai se perdendo, que grande é a solidão! Esse vazio que deixa o amigo que vai embora. O amigo que vai embora é como um poço sem fundo, que não pode mais ser preenchido” 19. Então, imaginem esse homem ou essas pessoas que estão no cais e dizem adeus ao amigo que vai embora num barquinho; vai indo, vai indo, até que desaparece no horizonte. Desaparece no horizonte, e a linha do horizonte não pode ser ultrapassada, e o poço não pode mais ser preenchido, e a pessoa está sozinha. O cristianismo é o inverso: é o homem que está sozinho, lá no cais, mas espera, pois tudo nele espera; e eis que no horizonte aparece um ponto, um ponto que vem na direção da costa: ele vai crescendo, crescendo, crescendo... é um barco, no qual a certa altura dá para ver o barqueiro, dá para vislumbrar o barqueiro. Vai chegando, chegando, chegando... atraca; e aquele que estava no barco abraça o homem que estava no cais. “Aparece um ponto no horizonte, na linha do horizonte: é esse barco. Esse barquiño, que é um ponto, se torna cada vez maior; aos olhos do homem atento que o fita, ele se torna cada vez maior, cada vez maior, até que se delineiam até seus elementos internos e se vê um homem, o barqueiro, sentado dentro dele. O barco se aproxima da costa, atraca, e o homem que estava esperando abraça o homem que chega. O cristianismo nasce assim, como o homem que espera, que abraça o homem que chega daquele horizonte do contrário enigmático e antes ignorado” 20. O homem que chega é Deus que se fez homem.

Tantardini. Obrigado.


Notas

[1] Cf. Santo Tomás de Aquino. Summa contra Gentiles, III, 40, 30.
[2] Cf. Jo 6,68.
[3] Cf. Mt 8,23-27; Mc 4,35-41.
[4] Cf. Jo 10,24.
[5] Cf. Mt 7,11; Lc 11,13.
[6] 1Pd 3,15.
[7] Cf. Lc 7,11-17.
[8] Cf. Huizinga, J. O declínio da Idade Média. São Paulo, Verbo/Edusp, 1978, p. 11.
[9] Erbetta, M. (org.) Gli apocrifi del Nuovo Testamento, I/1, Scritti affini ai Vangeli canonici, composizioni gnostiche. Materiale illustrativo. Casale, Marietti, 1975, p. 101.
[10] Cf. Ibsen, H. Peer Gynt. Turim, Einaudi, 1959, p. 131.
[11] Rilke, R. M. “Segunda Elegia”. In: Poemas. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p. 115.
[12] Cf. Gn 32,23-32.
[13] Cf. 1Cor 10,31.
[14] Cf. Giussani, L. “Moralidade: memória e desejo”. In: Em busca do rosto do homem. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1996, p. 274.
[15] Cf. Jo 1,35-41.
[16] Personagem do romance Os noivos, de Alessandro Manzoni.
[17] Cf. Giussani, L. O senso religioso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, pp. 143-154.
[18] Jo 15,11.
[19] Cf. “Sevillanas del adiós”. In: Canti. Milão, Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo, 2002, pp. 269-271.
[20] Giussani, L. Realtà e giovinezza. La sfida. Turim, SEI, 1995, p. 80. Cf. também: Giussani, L. Realidade e juventude. O desafio. Lisboa, Diel, 2003, pp. 103-104.

 
 

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