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Passos N.90, Fevereiro 2008

IGREJA / DOCUMENTOS BENTO XVI E O JESUS DE NAZARÉ – 2

A pregação de Jesus

por José Miguel García

Continuamos a viagem através de alguns temas sensíveis abordados pelo Papa em seu livro. Uma ajuda a se aproximar dos Evangelhos ecrescer na amizade com Jesus. Neste artigo, o anúncio da boa nova aos “pobres” (os publicanos e os pecadores) e o escândalo de um Deus que se senta à mesa com eles

No livro “Jesus de Nazaré”, Bento XVI dedica um longo capítulo (o quarto) à pregação de Jesus, comentando o Discurso da Montanha. O anúncio da boa nova certamente vai além desses três capítulos do Evangelho de Mateus. Provavelmente o Papa reflete sobre essa grande composição do evangelista porque nela Jesus é apresentado como o novo Moisés: “Com essa grande composição em forma de discurso, Mateus apresenta-nos Jesus como o novo Moisés, precisamente nesse sentido profundo que antes, no contexto da promessa de um profeta feita no livro do Deuteronômio, tornou-se evidente para nós”. Não inclui, porém, em sua reflexão, um aspecto importante da pregação de Jesus: a boa nova aos pobres, que, segundo Joachim Jeremias – um dos grandes estudiosos do Novo Testamento –, é o aspecto mais importante do seu ministério público.

A resposta de Jesus aos emissários de João Batista
Segundo os evangelistas Mateus e Lucas, João Batista, enquanto estava na prisão, ficou sabendo da atividade de Jesus e quis se certificar de que o homem que realizava tais obras era ou não o Messias esperado. Enviou, então, alguns dos seus discípulos para que fizessem a pergunta pessoalmente a Jesus. Segundo Mateus, Jesus assim respondeu: “Ide contar a João o que ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é pregada a boa nova, e bem-aventurado aquele que não se escandalizar por causa de mim!” (Mt 11,4-6).
A resposta de Jesus evoca o cumprimento das profecias de Isaías (cf. 35,5-6; 61,1), mas ao final acrescenta uma frase bastante estranha: “E bem-aventurado o que não se escandalizar por causa de mim”. Por qual razão alguém poderia achar escandaloso o fato de os cegos verem, os coxos andarem, os leprosos ficarem limpos ou os mortos ressuscitarem? Se no ministério público de Jesus essas profecias de salvação se tornavam realidade, não se entende por que podiam ser motivo de escândalo. O escândalo está em se considerar contrário à Lei divina ou ofensivo a Deus alguma coisa que alguém diz ou faz.
Na realidade, não são motivo de escândalo os gestos miraculosos elencados, mas a afirmação de que aos pobres é pregada a boa nova, expressão que alude à salvação que Jesus oferece a um determinado grupo de pessoas. Para compreender por que essa oferta de salvação é motivo de escândalo, precisamos saber quem são aqueles que Jesus chama de “pobres”.

Os “pobres” do Evangelho
Os evangelhos afirmam que, entre os seguidores de Jesus, havia publicanos e pecadores. No judaísmo da época de Jesus, o termo “pecador” não designava somente quem desprezava ou agia em sentido explicitamente contrário aos mandamentos de Deus, mas também, e sobretudo, o homem que exercia uma função considerada essencialmente pecaminosa. Nos escritos judaicos existem elencos desses trabalhos proscritos. Em parte, trata-se de ofícios que, segundo a opinião pública, induziam à imoralidade; mas, sobretudo, induziam à injustiça, como a experiência o demonstrava. A essa segunda categoria pertenciam, entre outros, os jogadores de dados, os agiotas, os pastores e os publicanos.
Como se sabe, os publicanos eram coletores de impostos, mas de um tipo de imposto muito especial. Os tributos sobre terrenos, casas, atividades ou pessoas eram controlados pelo fisco, dado que, para recolhê-los, com certa regularidade eram feitos recenseamentos. Existiam, ao invés, outros impostos que incidiam sobre o tráfego de mercadorias, através da alfândega ou para o seu ingresso nas cidades, impostos que não podiam ser fixados a priori, embora houvesse tarifas que os regulavam. A cobrança desses impostos era confiada pelo fisco a cidadãos notáveis, os quais, por sua vez, serviam-se de coletores para exercer a tarefa; estes eram os publicanos.
O desprezo pelos pecadores desse tipo era tão profundo que até seus direitos civis eram limitados. Num elenco de homens que não podiam fazer parte de um tribunal, nem como testemunhas, o tratado Sanhedrin da Mishnà enumera “aqueles que jogam os dados, os agiotas, os que criam pombos, os que traficam com os frutos do ano sabático (que, segundo a Lei, Lv 25,1 ss., não têm dono)” (3,3). E um outro texto acrescenta: “Os pastores, os publicanos e quem vive de rendas” (bSanh. 25b). Além disso, as pessoas devem evitar entrar em contato com eles, pois ficariam impuras. O publicano, segundo uma passagem da Mishnà, ao entrar numa casa torna impuro tudo o que existe dentro dela, o que valia também para o pagão (Baba Q. 10,2). Mais: esse tipo de pessoas é equiparado, na literatura rabínica, aos escravos pagãos (Ros Ha-Shana 1,8). Na sociedade judaica da época de Jesus, a proscrição mais rígida era a religiosa. Assim, por exemplo, um fariseu que se dedicasse a recolher impostos tinha que ser expulso da comunidade farisaica.
Uma boa parte dos seguidores de Jesus era formada, pois, por gente que, segundo os cânones da ortodoxia farisaica, não tinha acesso à salvação divina. A atitude de Jesus em relação a eles está maravilhosamente expressa em sua resposta àqueles que se escandalizavam porque ele comia com os publicanos e pecadores: “Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2,17); ou em palavras como estas: “Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus”, ou seja, eles entrarão, e vocês, não (Mt 21,31).
Segundo os evangelhos, Jesus perdoou explicitamente os pecados somente em duas ocasiões: ao paralítico que lhe foi apresentado numa maca (Mc 2,1ss.) e à pecadora que lhe ungiu os pés durante um banquete (Lc 7,36.50). Aliás, os termos “perdão” e “perdoar” não aparecem com frequência em sua boca. Essa circunstância induziu alguns estudiosos a duvidar que Jesus tenha alguma vez perdoado pecados. Aqui, a estatística ajuda pouco, pois Jesus, como bom oriental, não se expressa através da linguagem abstrata, mas mediante imagens e metáforas, e muitas delas servem para expressar a realidade do perdão: a dívida do servo endividado (Mt 18,27), o publicano justificado (Lc 18,14), o encontro de quem estava perdido (Lc 15,5), o filho pródigo acolhido de novo em casa (Lc 15,22-24), etc. Todas essas metáforas e parábolas são descrições plásticas do perdão e da comunhão restabelecida com Deus.

O perdão pelas ações
Jesus não proclamou a concessão do perdão dos pecados somente através de palavras, mas também por meio de ações. Entre estas ações, segundo J. Jeremias, as mais relevantes são as refeições com os publicanos e pecadores: “O modo de proclamar o perdão – proclamá-lo pela ação – que mais impressionou os homens daquela época foi participar de refeições junto com os pecadores, o fato de Jesus se sentar à mesa com eles. Jesus convida-os a irem à sua casa (Lc 15,2), e num banquete senta-se à mesa com eles (Mc 2,15ss.). Esses relatos são historicamente verossímeis, como o demonstra a frase depreciativa dirigida contra Jesus (Mt 11,19; Lc 7,34), que seguramente remonta ao tempo do seu ministério público” (J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento). Diferentemente do modo de se comportar dos fariseus, que evitavam qualquer contato com os publicanos e pecadores, Jesus acolhe em sua mesa todos aqueles que, segundo a interpretação ortodoxa judaica, não eram dignos de perdão e para quem as portas da salvação estavam cerradas. Essa conduta de Jesus não nasce de um sentimento humanitário em relação aos marginalizados ou de uma rebelião contra as barreiras sócio-religiosas impostas pela sociedade; interpretar desse modo a comunhão de Jesus com os pecadores durante as refeições significaria censurar seu verdadeiro significado e ser incapaz de compreender o motivo da violenta rejeição que esse fato provocou entre os fariseus.
Para entender o que Jesus fazia quando comia com publicanos e pecadores é necessário saber que no Oriente, ainda hoje, receber um homem à própria mesa é uma honra que significa conceder-lhe paz, fraternidade e perdão.
No judaísmo, várias pessoas participarem juntas de uma refeição assumia também uma dimensão religiosa. O banquete começava com a bênção do pão, pronunciada pelo chefe de família, que depois entregava um pedaço de pão bento a cada um dos comensais; estes, ao comê-lo, participavam da bênção. Participar da mesma mesa, portanto, significava também comunhão com Deus. Por isso Jesus, ao admitir à sua mesa publicanos e pecadores, está concedendo a eles o perdão dos pecados: “Essas refeições – afirma J. Jeremias – são a expressão da missão e da mensagem de Jesus (Mc 2,17), são refeições escatológicas, celebrações antecipadas do banquete salvífico do final dos tempos (Mt 8,11ss.), em que já agora é representada a comunhão dos santos (Mc 2,19). Acolher os pecadores na comunidade salvífica – acolhida que se realiza na mesa comum – é a expressão mais significativa da mensagem sobre o amor divino que redime”.

Deus faz refeição com os homens
A comunhão de Jesus com os pecadores, na mesma mesa, é testemunhada não somente nos evangelhos, mas também na literatura judaica intertestamentária. Por exemplo, no livros dos Testamentos dos doze patriarcas, obra judaica do século II a.C., encontram-se claras interpolações cristãs nas cópias gregas introduzidas por copistas judaico-cristãos, que conheciam a mentalidade e a linguagem judaicas. Duas interpolações são muito interessantes. No discurso do patriarca Simeão, em que ele declara a sua fé na salvação futura e na ressurreição, lê-se: “Então eu ressurgirei na alegria e bendirei o Altíssimo pelas suas maravilhas [porque Deus, ao assumir um corpo e comer junto com os homens, salvou-os]” (6,7).
A mesma ideia de Deus fazendo refeições com os homens encontra-se no testamento de Aser. Esse patriarca, anunciando que a sua descendência será castigada por causa da sua impiedade, até que Deus tenha compaixão e a liberte das tribulações e angústias, diz: “Vós [sereis] dispersos pelos quatro cantos da Terra; e sereis na diáspora desprezados como água inútil, até que o Altíssimo visite a Terra, vindo ele próprio comer e beber como homem entre os homens; ele salvará Israel e todos os povos” (7,2ss.).
Na linguagem judaica, essas interpolações proclamam que Deus salvará os homens fazendo-se homem e comendo com eles. Esses copistas não somente conheciam o profundo simbolismo, entre os judeus, da comunhão na mesma mesa, mas também os fatos narrados nos evangelhos: Jesus fez refeição junto com publicanos e pecadores. Portanto, ao fazer isso, Jesus realiza um gesto simbólico que expressa a amizade entre Deus e o pecador. O perdão de Jesus é o perdão de Deus; a amizade que oferece, ao compartilhar a mesa com publicanos e pecadores, é a amizade de Deus.
Entre os seguidores de Jesus há pelo menos dois publicanos cujos nomes conhecemos: Mateus e Zaqueu. O primeiro é chamado por Jesus a fazer parte do círculo dos seus seguidores mais íntimos (Mc 2,14; Mt 9,9; 10,3); o segundo era o cobrador geral dos impostos no distrito de Jericó e, portanto, uma pessoa muito conhecida. Jesus, diante de todos, entra na casa dele e ali permanece por um tempo (Lc 19,5). Com tudo isso, Jesus quer demonstrar que esses homens são acolhidos por Deus, têm acesso à amizade de Deus e o direito de serem felizes em Seu reino. Essa proclamação e esse comportamento de Jesus certamente resultaram escandalosos sobretudo para os fariseus, que eram os judeus mais observantes da Lei.

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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