Uma proposta simples de doação de alimentos aos mais necessitados. E por trás desse gesto, milhares de encontros que testemunham o desejo de bem que o homem tem em seu coração e a alegria que experimenta ao realizá-lo
No sábado, 6 de outubro, a Companhia das Obras do Brasil (CdO Brasil) e a Fondazione Banco Alimentare (FBA) realizaram o primeiro Dia Nacional da Coleta de Alimentos. Foi o gesto de tantas pessoas que doaram gratuitamente seu tempo e energia em um trabalho voluntário. Uma das frases mais pronunciadas ao final do dia foi: “Estou cansado, mas feliz”.
Tudo começou em 2003 quando Marco Lucchini, diretor executivo da FBA (Milão), participou do primeiro encontro latino-americano da Companhia das Obras no Rio de Janeiro. Naquela ocasião, ele conheceu um pouco da realidade brasileira e da experiência dos bancos de alimentos existente aqui. Em novembro de 2005, Gisela Solymos, presidente da CdO Brasil, teve a oportunidade de participar da Coleta de Alimentos na Itália. Ao voltar para casa, provocada por aquele gesto de gratuidade, apresentou-o a um grupo de amigos: nascia a proposta de organizar uma Coleta na sua cidade. Assim, em outubro de 2006 aconteceu, em São Paulo e São Bernardo, a primeira Coleta de Alimentos que envolveu 800 voluntários alocados em 12 supermercados. A arrecadação surpreendeu: foram 12 toneladas de alimentos repassados a 60 entidades assistidas pela ONG Banco de Alimentos. No entanto, mais importante do que os números foi o fato de que as pessoas que participaram dessa experiência ficaram muito marcadas pela dimensão da verdadeira caridade: “um dom de si comovido ao outro”. Em pouco tempo, a experiência de São Paulo chegou aos quatro cantos do Brasil: pessoas de várias comunidades do Movimento Comunhão e Libertação em todo o país ficaram atraídas pelo fascínio que viram no rosto de quem já havia participado do gesto e pediram ajuda para realizá-lo em suas cidades. Iniciou-se, então, a organização nacional da Coleta e, de encontro em encontro, no sábado, 6 de outubro, o evento aconteceu em onze cidades do país, quando 40 mil pessoas doaram 46 toneladas de alimentos a mais de 3 mil voluntários que atuaram em 83 supermercados. Os alimentos foram repassados, através de bancos de alimentos locais, a 891 entidades beneficiando 162 mil pessoas.
Uma amizade além do Oceano
O relacionamento estabelecido com a Fundação Banco Alimentar (FBA) foi fundamental para a realização do gesto. Além de oferecer seu apoio na captação de recursos junto a empresas italianas – tais como: Tecnomatic, Obiettivo Lavoro, Team Service e Companhia das Obras de Pesaro –, a FBA destacou Fernando Riva para colaborar com a Coleta brasileira. Nando, que é aposentado e tem 72 anos, chegou ao país no final de agosto e permaneceu 45 dias trabalhando na etapa final da organização nacional. Ele resumiu sua atuação deste modo: “Comecei a explicar a todos que a verdadeira motivação da Coleta não era a quantidade de alimentos a ser recolhida, mas dar aos voluntários a possibilidade de um enriquecimento pessoal ao experimentar este simples gesto de ajuda aos irmãos, dentro de uma companhia. Penso que os brasileiros são um povo que tem esperança, que espera algo real e que estão prontos para acolher com simplicidade algo novo. Participando dos encontros para preparar a Coleta, minha maior contribuição foi a de explicar a realidade cristã do Movimento Comunhão e Libertação, de como nós consideramos todas as pessoas, sejam elas cristãs ou não. Acho que acertei o rumo e as pessoas confiaram em mim porque entenderam a bondade desse gesto de caridade e deram um voto de confiança a essa proposta. A coisa bonita é que aderiram pessoas de todas as religiões e nas assembléias que fizemos logo após a Coleta, todos testemunharam que este modo tão diferente de enfrentar a vida lhes enchia de alegria”.
Doação de si: a verdadeira liberdade
Muitas pessoas aderiram ao gesto, e o trabalho de doação começou bem antes daquele sábado na porta dos supermercados. Leonardo, ex-jogador de futebol tetracampeão da Seleção Brasileira que hoje mora na Itália, gravou um vídeo para divulgar a Coleta. O empenho de voluntários que deram tudo de si permitiu a realização de coisas que pareciam impossíveis: a produção do vídeo e todo o processo de edição e veiculação nos canais de TV, bem como a assessoria de imprensa do próprio evento, a doação do transporte para distribuir o material impresso para o Brasil inteiro e a oferta de caminhões, armazéns e funcionários para armazenar o material recolhido. Cada um contribuiu e aderiu com tudo de si. O resultado desse empenho foi a alegria, testemunhando que a verdadeira liberdade é dada pela adesão a uma proposta.
Uma proposta simples como a de doar alguns reais em alimentos para responder às necessidades dos menos favorecidos coloca em evidência a liberdade da pessoa. Os produtos pedidos não pertenciam à cesta básica, pois o objetivo era oferecer alimentos com maior valor nutritivo e que talvez uma família neces-
sitada nunca tenha podido comprar. Por isso, as pessoas puderam entender que a Coleta era estar diante da necessidade de alguém.
Um coordenador de supermercado testemunha: “os doadores eram muito espontâneos, doavam com amor. Houve doadores que não tinham dinheiro para comprar os alimentos pedidos, mas foram até suas casas e trouxeram os produtos da lista ou produtos que receberam na cesta básica.”
A Coleta nasceu da experiência educativa do Movimento Comunhão e Libertação. Não foram poucos os voluntários que ouviram dos funcionários dos supermercados: “Mas vocês são diferentes”, referindo-se ao modo como eles agiam com todos. A grande diferença estava na preocupação da coordenação de que todos conhecessem o significado último do gesto, que era a compartilha do sentido da vida através do ir ao encontro da necessidade do outro. Assim, os voluntários que doaram tempo e energia para viabilizar a Coleta podem ter aderido por desejar fazer algo de bom, ou apenas para acompanhar um amigo, mas, ao se envolverem, também experimentaram um florescimento do próprio eu que se realiza verdadeiramente na doação ao outro.
Certamente é uma alegria reconhecer que as doações feitas beneficiaram tantas pessoas, mas isso é muito pouco diante das necessidades cotidianas de cada ser humano, que é sede de Infinito.
O comunicado final da Companhia das Obras resume o evento de 2007: “Aconteceram milhares de encontros e gestos que testemunham o desejo de bem que o homem tem em seu coração e a alegria que experimenta ao realizá-lo. Fatos como a senhora que, não podendo fazer a compra, foi a sua casa e pegou um alimento de sua despensa para participar da Coleta, ou como o empenho sem medidas de milhares de voluntários e doadores, ou as centenas de jovens que se levantaram às 5h da manhã para participar do gesto, ou daqueles que, não podendo trabalhar como voluntários, prepararam o almoço para quem trabalhava, testemunham isso. E o desejo de cada um de nós é o de poder chegar em casa todos os dias e, como no Dia da Coleta, poder dizer: Nossa, como estou cansado, mas feliz! A experiência da Coleta pode se estender durante todo o ano através da continuidade das amizades e dos relacionamentos iniciados com este gesto. Para todos aqueles que quiserem construir conosco a Coleta de 2008, escrever para coletadealimentos@cdo.org.br”.
Maiores informações:
www.cdo.org.br/coletadealimentos;
www.bancoalimentare.it
TESTEMUNHO
CINCO MILHÕES DE AMIGOS
Notas de um testemunho de Marco Lucchini, diretor da Fondazione Banco Alimentare, sobre a sua experiência na obra em que está envolvido há mais de 20 anos. Rio de Janeiro, 03/07/2007
Sou formado em agronomia e sempre trabalhei na produção e distribuição de alimentos. Essa sempre foi minha paixão. Trabalhei em uma rede de supermercados e, depois, em uma empresa que preparava alimentos para restaurantes. No final dos anos 80, um amigo foi a trabalho para Barcelona, na Espanha, e tendo conhecido o Banco Alimentar de lá, logo telefonou para Giorgio Vittadini, responsável pela Companhia das Obras (CdO) na Itália, associação que favorece e apóia o desenvolvimento de obras e empresas segundo a Doutrina Social da Igreja. Vittadini me telefonou, pois ele sabia que eu trabalhava com alimentos, e me pediu para ir a Barcelona. Com efeito, fiquei impressionado com aquilo que vi: um armazém muito grande que recebia alimentos que, pelas leis de mercado, não poderiam mais ser vendidos, mas eram utilizáveis e muito bons, sendo distribuídos a centenas de associações.
Imediatamente, pensei naquilo que acontecia diariamente nos supermercados que eu acompanhava: havia uma grande quantidade de alimentos ainda utilizáveis que não eram mais vendidos porque a embalagem estava destruída ou a promoção terminara e não sabíamos o que fazer. Olhando para aquela experiência, percebi que era uma resposta adequada ao problema de desperdício que eu enfrentava cotidianamente em meu trabalho. Ao voltar para a Itália, falei sobre isso com muitas pessoas, mas sem ter um projeto, apenas contando uma coisa bonita e interessante que tinha me acontecido. Em seguida, aconteceu outro fato interessante: meu amigo Davide, que trabalhava em uma grande empresa de alimentos, foi chamado pelo dono da empresa. Naquela época, havia as “comunidades de fábrica” que eram comunidades nascidas para viver a experiência do Movimento Comunhão e Libertação naquele ambiente: organizavam passeios, ajudavam-se. Mas também havia muitas contestações, a fábrica era um ambiente vivaz. Por isso, quando o chefe o chamou, ele pensou que seria demitido. O presidente, Danilo Fossati, perguntou se Davide era de Comunhão e Libertação e ele, com muito medo, disse que sim. Danilo respondeu: “Que bom, gosto muito de vocês!” e lhe disse que embora ele parecesse ausente, olhava com interesse aquilo que eles faziam na fábrica. É preciso lembrar que naqueles anos o sindicato tinha muito poder e Fossati sofreu muito com isso. Quando abriu a fábrica, jogava futebol com seus operários depois do trabalho, conhecia suas famílias, ajudava-os quando precisavam. Uma manhã chegou na empresa e encontrou os sindicalistas que queriam discutir sobre uma nova relação de trabalho. Ele se sentiu traído. Contratou um gerente para dirigir seu negócio e durante 15 anos não voltou mais. É como se dissesse: “Se eu não posso mais ter um relacionamento direto com meus funcionários, esta não é mais a minha empresa”. Assim, Fossati, vendo essas pessoas que ajudavam a quem precisasse sem se preocupar se era ou não do sindicato, sentiu novamente entusiasmo em envolver-se com seus funcionários. Fossati vinha de uma família com uma tradição cristã muito forte e sua mãe era conhecida em toda a região por ajudar a todos aqueles que batiam à sua porta. Ele era como ela e ajudava tanta gente que não sabia mais quem e nem como ajudava. Então, pediu a Davide que o auxiliasse na organização de todas as obras de caridade que possuía. Davide, ainda perplexo porque em vez de ser demitido acabava de receber uma incumbência importante, aceitou a proposta e ficou muito contente.
Depois de um tempo Davide contou-lhe sobre o Banco Alimentar. Fossati disse que já tinha conhecido essa iniciativa na Espanha e que uma empresa sua doava alimentos para o Banco de Barcelona. Assim, marcaram um novo encontro, do qual eu também participei. Falei sobre o que vi em Barcelona, e disse que nós gostaríamos de começar algo parecido na Itália, mas que precisávamos de um financiamento. Fossati aceitou o desafio. Desta vez, porém, no final do encontro ele pediu para conhecer nosso chefe, sem saber que se tratava de Dom Giussani. Voltamos com Dom Giussani que, assim que o viu, mesmo sem conhecê-lo, abraçou-o e disse: “O senhor tem um coração grande como o de sua mãe”. Fossati, que tinha mais de 60 anos, começou a chorar como uma criança porque não se sentia digno de ter um coração grande como o de sua mãe. Desde então, nos encontrávamos pelo menos a cada seis meses para almoçarmos juntos: Fossati, Dom Giussani, Vittadini e eu. Fossati morreu de infarto em 1995 e numa das últimas vezes em que nos encontramos com ele, disse: “A empresa que comprou uma das minhas disse que só fecharia o negócio se eu demitisse pelo menos 50 pessoas. Eu decidi não vendê-la enquanto não arrumasse um outro trabalho para aqueles operários. Se fiz isso é por culpa de vocês: desde que os conheci não sou mais o mesmo!”
O encontro com Danilo Fossati e a ajuda que sempre nos deu, permitiu que, a partir de 1992, uma pessoa se dedicasse totalmente ao Banco Alimentar, pois até aquele momento éramos todos voluntários e fazíamos as atividades do Banco depois do trabalho. Eu me dispus a deixar o meu emprego para fazer isso, mas precisava ter condições de sustentar minha família e pedi que nunca me deixassem só. Nestes 20 anos nunca me deixaram só! O Banco Alimentar mudou a minha vida e a vida de muitos na Itália.
A Coleta de Alimentos
É importante dizer que o Banco não nasceu de uma idéia de Comunhão e Libertação, mas em 1967, nos Estados Unidos. Por meio de uma série de encontros o Banco difundiu-se em outras cidades chegando ao Canadá e à França, depois ao meu amigo Diego, Davide, eu, Fossati, etc. Assim, copiamos o Banco de Barcelona e, depois, a Coleta da França.
Em 1995 fui a Paris porque me haviam falado sobre a Coleta de Alimentos realizada ali. Vi um gesto muito simples: milhões de encontros diante de um supermercado onde cada um, substancialmente, propunha a si mesmo. Não havia repórteres de televisão presentes, nem havia personalidades importantes, mas homens que perguntavam a outros se estavam dispostos a fazer uma doação de alimento para aqueles que precisavam. Correspondia plenamente ao modo com o qual eu tinha encontrado a fé e o Banco Alimentar. Entusiasmou-me a idéia de que em toda a Itália pudesse acontecer algo semelhante. Sozinho, eu poderia encontrar cem pessoas, mas multiplicando os encontros... Depois, tinha me impressionado a forma concreta do gesto. Pedia-se algo muito simples que qualquer pessoa podia fazer, tanto crianças quanto pessoas de 40 anos, pobres ou ricos. Comprar alimentos é uma coisa que todos precisam fazer, não tem a ver com discursos sobre pobreza, mas com alguém que pede a outra pessoa que participe de um gesto simples de caridade.
Naqueles anos, na Itália, fazer uma coisa assim era uma loucura porque a caridade tinha sido abolida tanto pelos partidos de esquerda quanto pela igreja. A proposta era a da formação humana: não dar o peixe, mas ensinar a pescar. Porém, até que as pessoas aprendessem a pescar, poderiam morrer de fome! A Coleta de Alimentos foi proposta e hoje, na Itália, tornou-se o gesto mais popular em nível nacional.
No último encontro que tivemos com Giussani e Fossati, quando Giussani entrou em seu em escritório, Fossati foi ao seu encontro quase correndo e disse: “Olha que chegaremos a recolher 50 mil toneladas”. Quando ouvi o número pensei que ele estava se gabando diante de Dom Giussani. Naquele ano, de fato, tínhamos coletado mil toneladas. Giussani, imediatamente respondeu: “E você vai ver, milhões de pessoas serão envolvidas neste ato de caridade”. Naquele ponto, pensei que Dom Giussani também tinha perdido a cabeça, porque éramos dez naquela época e para chegar a milhões faltava muito. Mas há três anos recolhemos mais de 50 mil toneladas, não só com a Coleta, mas em todas as atividades do Banco Alimentar e, na Coleta, mais de 5 milhões de pessoas fizeram as compras. Para mim, aquela frase me havia feito rir, mas sempre ficou dentro de mim como um desafio, e acabou se tornando uma profecia. Isso me faz dizer que o que eu desejo da vida é ter um coração bom. Quando se tem um coração bom, se tem olhos que conseguem olhar muito além do particular, portanto, aquilo que eu desejo é ter esses olhos. Não vale a pena participar da Coleta porque ajudamos os pobres, mas porque compartilhamos com os outros a riqueza que temos. Nunca partimos da falta de algo, mas da abundância daquilo que nos preenche.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón