Há dez anos da sua morte, a partir das suas cartas sobre o “silêncio do Senhor”, houve quem colocasse em dúvida a sua fé. E, no entanto, a verdade é o contrário. Daquela experiência entende-se melhor o que significa abraçar a Cristo até o fim
Quatro anos após a beatificação de Madre Teresa, volta a ser notícia a “noite escura da alma” (trevas da fé) que a freirinha de Calcutá atravessou, por quase cinqüenta anos. A ocasião foi o anúncio da publicação, dez anos depois da sua morte, com a antecipação à imprensa de alguns trechos, de um livro editado pela Postulação da Causa, Come to be my light (“Venha, seja a minha luz”). O livro reproduz numerosos trechos das cartas que Madre Teresa escreveu ao seu diretor espiritual e ao então Bispo de Calcutá, sobre sua experiência mística de diálogo com Jesus e sobre a experiência da escuridão interior.
Hoje, como há quatro anos, quando o postulador revelou que havia muita dor escondida atrás do sorriso de Madre Teresa, essa experiência de escuridão recebeu duas interpretações. A noite da alma é, em geral, apresentada ou como algo “já conhecido” na experiência dos grandes santos do passado, ou como uma espécie de scoop sobre um “quase ateísmo” de Madre Teresa.
No entanto, no dia da sua beatificação, 19 de outubro de 2003, a imagem da praça de São Pedro e da Via della Conciliazione, em Roma, lotadas de gente, transmitida via satélite para todo o mundo, ofereceu a todos, em qualquer canto da Terra, a possibilidade de entender o quanto aquela escuridão da fé era atual e havia levado Madre Teresa para tão perto não só da pobreza material, mas também da pobreza espiritual dos homens do nosso tempo, transformando a sua “noite escura da alma” numa participação no desespero e nas dúvidas do nosso tempo.
Promessa de felicidade
Na praça, uma grande faixa citava as palavras do convite de Jesus a Teresa: “Venha, seja a minha luz”, que se tornaram o título do livro da Postulação. Do adro da basílica, João Paulo II olhava a praça, contente e comovido. Durante 25 anos, ele semeara pelo mundo a Boa Nova que havia transformado a sua vida, e nela continuava a crer, apesar de tudo. Apesar do sofrimento e da dor que ele testemunhara por quase um século e também no início do novo milênio. E apesar da mortificação de uma doença, que o tornara pobre também no corpo. Durante 25 anos inventou de tudo para não deixar cair no esquecimento que existe uma possibilidade, que o mundo não é governado por um destino cego, e sim, apesar de tudo, por uma promessa de felicidade. A única, dentre muitas promessas, que ainda conseguia fazer palpitar o coração e fazer esperar, embora tivesse (que estranho!) o rosto sofrido de um Homem crucificado.
Quando a encontrou pela primeira vez, João Paulo II logo entendeu: também ela, aquela mulherzinha cheia de rugas, com aquele estranho hábito de freira, que dizia poucas palavras mas distribuía generosamente, como se fossem doces, medalhinhas de lata com a imagem de Nossa Senhora..., também ela tinha impressa na alma a mesma obstinada fé.
Nos dois primeiros setores da praça, o Papa via cerca de dois mil pobres assistidos por ela. Quase todos italianos, eram uma pequena parcela de todos aqueles que Madre Teresa havia socorrido e que suas missionárias continuavam a ajudar. Em volta, porém, havia muita gente que fazia questão de não perder aquela ocasião. A ocasião era ela, a santa da escuridão, aquela que durante cinqüenta anos da sua vida havia aceitado – chorando sozinha lágrimas amargas e continuando a sorrir para todas as pessoas que encontrava – a escuridão da fé.
Carne à santidade
Só depois de sua morte, durante o processo de beatificação, foi descoberto, pelas cartas de Madre Teresa ao seu diretor espiritual, a grande cruz que ela carregou durante boa parte de sua vida. Ela, que havia obedecido à voz de Jesus que lhe pedira que fosse pobre entre os pobres, abraçasse a miséria espiritual, o desprezo, o abandono e a angústia de quem não tem nada, havia abraçado com força a sua Cruz. E os sinais desse abraço se fizeram presentes em sua alma, que se transformou num Jardim das Oliveiras, obrigando-a a gritar: “Deus Pai, onde estás?”.
Está certo, ela duvidou. E assim fazendo deu carne à santidade, tornando a santificação próxima dos homens, uma possibilidade para todos. Inclusive nesta época de apostasia, rica em arrogância e cinismo, imersa numa escuridão tão culposa que provocou o silêncio de Deus.
Sua beatificação era uma ocasião também para a Igreja, aquela que João Paulo II tanto amava e procurou despertar. Em 2003, apesar dos preparativos para a beatificação, parecia que o destino de Madre Teresa era continuar pobre e escondida, também depois da morte. Devido a alguns imprudentes títulos de jornais sobre seus escritos inéditos, que a transformariam numa espécie de “santa do ateísmo”, uma cortina de silêncio caiu sobre sua herança mais preciosa. Na Igreja também havia os que, espantados com as matérias jornalísticas, temiam que o tema da escuridão da fé fosse ousado demais para ser abordado. Outros sequer haviam entendido o laço providencial entre aquilo que Madre Teresa havia vivido e a condição existencial de tantos homens, pois ela havia percorrido a estrada e demonstrado que podemos atravessar a escuridão permanecendo abraçados à Cruz de Cristo.
Repetir mecanicamente a Ave Maria
Em seus escritos, ela confessava ter chegado ao ponto de duvidar da existência de Deus. Mas logo em seguida escrevia: “Perdoa, Jesus, minha blasfêmia”. E acrescentava: “Em certos momentos, nada mais posso fazer que repetir mecanicamente a Ave Maria”. Mas contra a tentação de trair, continuava a perceber o sussurro daquela Voz que, em 1946, lhe havia pedido que fosse o sinal do Seu Amor entre os mais pobres dos pobres, que iluminasse a noite do mundo: “Venha, seja a minha luz”. Súplica de um Deus que precisa dos homens e que implorava àquela mulherzinha: “Você não faria isso por mim?”.
João Paulo II não sabia nada a respeito desse tormento da alma, mas entendera que ela era a santa do seu pontificado: uma Mãe como Maria. Por isso, queria-a santa, e logo. Escolheu para a beatificação uma data cheia de significados. O 19 de outubro já era o dia mundial das missões, e também próximo do aniversário de 25 anos de seu pontificado; e ele marcara para aquela data o encerramento do Ano do Rosário.
Mas, apesar de a indicação ser clara, na distração geral – devida também à preocupação com a chamada “guerra preventiva” – o dom de Madre Teresa parecia escorregar para o esquecimento. Ninguém parecia mais tão interessado na beatificação de Madre Teresa. Claro – pensavam muitos – era preciso dar uma mão às freirinhas para a organização do evento, pois as missionárias não tinham a estrutura dos grandes movimentos eclesiais, capazes de levar para a praça de São Pedro milhares de fiéis. Mas em nome de Madre Teresa já haviam sido organizadas muitas coisas: espetáculos, concertos, inclusive coletas de fundos para projetos que, talvez, nada tinham a ver com ela; e pouco importava que as missionárias da caridade não fossem convidadas e sequer informadas de todas essas iniciativas. Claro que, agora, alguém haveria de se interessar por organizar alguma coisa! Por que se preocupar?
Dom da Previdência
Os intelectuais católicos também hesitavam. O tema da escuridão da fé era conhecido. Por que voltar ao assunto? Alguém havia interpretado mal os escritos inéditos de Madre Teresa? Paciência. E também os editores dos jornais não estavam tão interessados no tema. Sim, como é de praxe, alguma coisa haviam escrito, mas a santidade de Madre Teresa era considerada algo tão óbvio que deixara de ser notícia. No fundo, dizia-se, se não declarassem santa essa mulher tão bondosa, quem mais a Igreja declararia santo?
Naqueles dias, conversei longamente com um sacerdote americano, pároco no Bronx, em Nova York, e fiquei fascinada com a ótica com que ele olhava Madre Teresa e a experiência dela de dupla pobreza. Ele gostaria – e dizia-o com grande simplicidade – que a Igreja norte-americana, abalada com o escândalo da pedofilia e à beira da falência, recomeçasse justamente a partir desse evento de 19 de outubro e dessa mulher que a Providência havia doado ao mundo; partisse da sua pobreza e da sua gigantesca fé, capaz de atravessar a escuridão da alma; das suas mãos que haviam acariciado os moribundos, das suas rugas que haviam subvertido os cânones estéticos de beleza.
Acrescentou ele que recomeçar a partir do amor dela por Jesus Cristo era uma boa idéia não só para a Igreja nos Estados Unidos, mas também para cada um de nós, e que João Paulo II, que já havia inventado grandes eventos, merecia que, pelos seus 25 anos de pontificado, visse organizado em torno dele o maior dos eventos: o de uma Igreja inteira conduzida pelas mãos de uma pequena freira e levada por ela aos pés da Cruz para reencontrar a luz necessária a fim de oferecer esperança ao mundo todo.
Na conversa, ele evocava a imagem das capelas dos conventos de Madre Teresa, completamente vazias e dominadas por um crucifixo, acompanhado de uma frase: “Tenho sede”. E esperava que, um dia, todos chegassem a uma simples confissão: “Nós também temos sede de Ti”.
CARISMAS EM AÇÃO
A retomada de uma antiga amizade
por Davide Perillo
Padre Ambrogio Pisoni pregou os Exercícios Espirituais às irmãs de Madre Teresa, em Amã. A seguir o seu relato
Nove dias de trabalho duro, com duas palestras por dia. E 22 mulheres vestidas de sáris nas cores azul e branco ali estavam, tendo chegado dos quatro continentes para um gesto que, nas Constituições das Missionárias da Caridade, é definido como um modo de “estar em diálogo pessoal com Deus de maneira comunitária, no silêncio e na oração”. Eram os Exercícios espirituais, dirigidos pelo padre Ambrogio Pisoni, no início de setembro, em Amã, na Jordânia, numa das dezessete casas que as irmãs de Madre Teresa mantêm no Oriente Médio.
O convite fora feito por irmã Benedetta, a madre provincial daquela região. Ela é italiana, de Olgiate Comasco. Antes de iniciar o noviciado, em 1987, ela estudara Medicina, em Varese, e viveu a experiência do CLU. Isso há vinte anos. Mais ou menos o mesmo período em que padre Ambrogio escrevia para Communio um breve ensaio sobre as Missionárias de Madre Teresa, assim descrevendo a essência da sua experiência: “Viver a caridade é viver a missão, que nada mais é que tornar Cristo presente no mundo”. Releu e logo captou o coração de uma ligação que resistiu ao tempo e à distância até levá-lo ali, na Jordânia, repassando com as irmãs o fio condutor de Na origem da pretensão cristã, texto-base dos Exercícios, justamente nos dias em que a Ordem celebrava os dez anos do desaparecimento da beata.
No final, entre os muros de Amã ficaram dois livros de Dom Giussani em inglês (além de Na origem, foi entregue O caminho para a verdade é uma experiência), alguns exemplares de Traces (“Deixem na casa, não diretamente com as irmãs, pois elas não podem possuir nada”). E a idéia de se reverem depois, provavelmente em fevereiro, para retomar o fio de uma amizade e ir mais a fundo naquilo que, segundo padre Ambrogio, é o ponto de contato mais evidente entre o carisma delas e o do nosso Movimento: “O testemunho de Cristo encarnado que se faz próximo de nós”.
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