No último dia 23 de junho aconteceu, na República de San Marino, o encontro “Padre Francesco Ricci: paixão pelo homem”, promovido pela Fundação João Paulo II pelo Magistério Social da Igreja, pela Fundação Ricci, e pela AVSI. O encontro foi dedicado à figura extraordinária de um sacerdote que atualizou, no século XX, a figura dos grandes missionários que difundiram a Igreja pelo mundo. Foi também um dos “pais” do Movimento Comunhão e Libertação no Brasil
Sacerdote, educador, homem de cultura, editor e missionário, Francesco Ricci (1930-1991) foi o padre italiano que, em pleno século XX, ajudou na (re)construção da Igreja desde a Europa Oriental oprimida pelo comunismo até o Japão, passando por uma América Latina que se mantinha católica, mas perdia cada vez mais o sentido de sua identidade cristã.
Envolvido na fumaça do inseparável cachimbo, Ricci era conhecido pelo apelido de “padre Quilômetro” por causa de sua altura (mais de 1,90 m) mas, sobretudo pela incansável capacidade de viajar. Nascido em 1930, padre desde 1955, Ricci trabalhava com entusiasmo entre os jovens para reconduzi-los a uma fé que, na sociedade italiana, estava se perdendo e, com ela, a cultura e a civilização formada pela experiência cristã.
Padre Francesco tinha uma sólida preparação filosófica e teológica. “Porém, – ele mesmo disse – um problema me angustiava: não queria que este conteúdo se tornasse abstrato, que o cristianismo fosse uma ideologia. Queria que o conteúdo se tornasse experiência. O encontro com Dom Giussani e com Comunhão e Libertação foi a resposta ao meu problema”.
No início dos anos 60, conheceu Dom Luigi Giussani e, em seguida, assumiu um lugar de responsabilidade em CL. Foi o primeiro verdadeiro braço direito de Dom Giussani. O Bispo Luigi Negri, idealizador do encontro “Padre Francesco Ricci: paixão pelo homem” explica: “Ele foi o homem que fez CL perceber o que quer dizer, na prática, fazer missão na Igreja”.
No início da história do “padre Quilômetro” encontramos a influência da figura e da coragem de Pietro Leoni, um jesuíta condenado a dez anos de gulag na Rússia por causa de sua fé. Depois, em Forlì, padre Ricci formou-se na escola de padre Giuseppe Prati, com quem amadureceu a vocação jornalística que lhe permitiu, anos depois, salvar o semanário católico “Il Momento”, que iria fechar. Fez isso fundando uma cooperativa de jovens aos quais “infundia a sua indômita paixão por Deus e pelos homens. Eu também estava entre aqueles jovens”, lembra o atual diretor, Alessandro Rondoni. “Ele ajudava a nós, jovens, a acertar as contas com a realidade e o infinito”: este é o retrato comovido pintado pelo cantor italiano Claudio Chieffo, que participou do encontro em cadeira de rodas. “Conheceu o projeto da antropologia moderna que vende uma falsa idéia de autonomia e liberdade, e profetizou sua falência. – disse Onorato Grassi, professor de História da Filosofia Medieval. Contrastou o falso messianismo com o marxismo, fez cultura falando coisas das quais outros não falavam”.
Quem o conheceu jamais se esquecerá de sua figura esguia e sorridente, bradando alegremente que o cristianismo era um acontecimento de vida, que para ser cristão não era necessário censurar ou esquecer nada de nossa humanidade. Ou da solicitude com a qual aquele homem alto, que ia a todos os lugares, que sabia falar com as pessoas mais importantes onde quer que fosse, literalmente se curvava para responder a uma jovem ou a um jovem universitário que lhe falava, como se aquela conversa fosse a ocasião mais importante de sua viagem, a razão de ser de ter cruzado o mundo.
Na Europa Oriental
Padre Ricci foi um dos primeiros sacerdotes estrangeiros, talvez o primeiro, a transpor o “muro” do comunismo e entrar no leste Europeu, oprimido pelo regime. Viajava clandestinamente e quando partia de cidade de Forlì, na Itália,onde morava, sempre levava consigo uma boa quantia em dólares, escondidos em caixas de chocolate ou tabaco para seu querido cachimbo.
Da Polônia e também de outros países do Leste, voltava com outros materiais: folhas de papel de carta muito finas escondidas em caixas de queijo ou dobradas em guardanapos de bar. Eram escritos preciosos, artigos e livros clandestinos, entre eles, os do escritor, ativista pelos direitos humanos e depois presidente da Tchecoslaváquia, Vlaclav Havel, do jornalista e líder político polonês Tadeuz Mazowiecki, do teólogo Joseph Zverina, dos movimentos de oposição Charta 77 e Solidarnosc.
Numa época em que não havia Internet e que as máquinas copiadoras eram raras e perigosas (pois podiam ser monitoradas pela ditadura), os opositores do governo na Europa Oriental copiavam, em máquinas de escrever ou mesmo a mão livre, os textos dos mais importantes dissidentes do regime e iam repassando o material uns para os outros. Padre Ricci havia fundado o Centro de Estudos Europa Oriental e publicava todo esse material. Havia também testemunhos do Cardeal Wyszynski e o livro “Discursos ao povo de Deus”, que continha as homilias do Cardeal de Cracóvia, Karol Wojtyla.
Poucos sabem disso, mas a silenciosa e extraordinária obra deste padre da região da Romagna, alto e magro, contribuiu para escrever uma parte da história da Igreja, quiçá do mundo. “Ele desvendou a riqueza do Leste – explicou o enviado do jornal italiano Avvenire, Luigi Geninazzi, que teve, muitas vezes, o próprio padre Ricci como companheiro de viagem. Pretendia trazer do Leste aquilo que podia salvar o ocidente”.
O amigo Carletto
Na última entrevista, que deu 70 dias antes de morrer, em 1991, perguntaram a padre Ricci sobre o Papa e ele se pôs a falar de um certo Carletto. Karol Wojtyla, João Paulo II, o Grande Papa, para padre Francesco Ricci era simplesmente Carletto. Havia um motivo para que ele o chamasse assim: havia conhecido-o há muito tempo, no final dos anos sessenta, quando o futuro papa ainda era um jovem Cardeal da Cracóvia.
“Em outubro de 1978 – lembra Vittorio Citterich, ex-vaticanista da RAI (Rede de Televisão Italiana) – eu preparava, em pleno conclave, as fichas dos 35 papáveis. Encontrei padre Ricci e ele me aconselhou: ‘Acrescente o nome de Wojtyla’. Foi a ficha de número 36, a última. O próprio padre Ricci a preencheu. Eu lhe disse: ‘Tudo bem, já que você, em Forlì, tem linha direta com o Espírito Santo, escreva para nós duas páginas da biografia desse Cardeal’. Aquela edição do telejornal foi um sucesso”.
Na América Latina
Mas é preciso saber que as andanças do “padre Quilômetro” não se limitaram à Polônia e ao Leste Europeu. Qual! Girou meio mundo, da América Latina à África, das Filipinas ao Japão. Além da Europa Oriental, a América Latina tornou-se, a partir dos anos ’70, outro de seus amores. Por anos dividiu seu ano em períodos mais ou menos equivalentes na Itália, na América e na Europa Oriental. Arturo Alberti, da Associação de Voluntários para o Serviço Internacional (Avsi), que revela: “Graças a ele foi aberta a primeira faculdade de medicina na Universidade Católica do Paraguai”. A América Latina foi outra grande terra de missão de padre Ricci. Em 1988 lançou o semanário católico argentino Esquiù, assumindo sua direção, trabalhou na preparação de Puebla. Era, onde fosse, figura emblemática de uma fé não fechada nas sacristias. Um “adelantado”, segundo o subsecretário do Pontifício Conselho pelos Leigos, Guzman Carriquiry, “um caminhante que ajudava as pessoas a avançar”.
No Brasil, em particular, foi o mestre que acompanhou os primeiros passos de Comunhão e Libertação na realidade latino-americana. Percebeu e encantou-se com a capacidade que a Igreja tivera de fecundar, na América, uma cultura profundamente humana, que sintetiza elementos vindos das mais diferentes origens. Percebia a força e a beleza das experiências eclesiais nascidas a partir dessa matriz cultural que enfrentava as ditaduras de direita latino-americanas, com a mesma força com que a Igreja se opunha às ditaduras comunistas no leste europeu.
Contudo, percebia também os limites de uma politização das comunidades cristãs que as impedia de perceber que a grande Novidade não era a mudança política, mas o encontro com Jesus Cristo vivo e atuante na história pessoal e comunitária de cada um. Assim, iniciou um intenso trabalho de encontros e atividades de formação para resgatar a beleza e a contribuição original que a Igreja podia dar à América Latina.
Não havia intelectual que demonstrasse apego à Igreja e/ou riqueza humana que não fosse procurado por ele. Estava sempre “em giro”, procurando pessoas, conversando com elas, procurando criar laços. Para os jovens, era o sinal de uma fé que não se cansava nunca, que estava sempre pronta a acolher o outro, a dialogar com ele. Uma fé intelectualmente inquieta, porque queria inundar a tudo com sua luz e com sua profunda humanidade.
(Textos de Massimo Pandolfi, Paolo Guiducci
e Francisco Borba Ribeiro Neto)
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