Há 25 anos morria uma das maiores cantoras do Brasil. Passos neste número relembra sua vida e algumas de suas interpretações. Para Elis, cantar era despertar algo de belo e de grande em quem a escutava – como dizia –, a perfeição é uma meta
Elis Regina Carvalho da Costa nasceu em Porto Alegre no dia 17 de março de 1945. Desde cedo era estimulada a cantar nos encontros familiares. Aos 11 anos de idade começou a se apresentar no programa Clube do Guri da Rádio Farroupilha e já aos 14 anos ajudava no sustento da família. Iniciou, assim, um relacionamento com a música que durou a vida inteira. Impulsionada pelo sucesso, aos 19 anos chega ao Rio de Janeiro na companhia de seu pai, para ir, logo em seguida, a São Paulo. Se lançou cedo no mundo artístico, altamente competitivo e difícil. Em menos de dois anos ela havia vencido o I Festival de Música Popular Brasileira com Arrastão, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, e, ao lado de Jair Rodrigues, tornara-se apresentadora do programa O Fino da Bossa.
Extremamente competente do ponto de vista profissional, cresceu linearmente, alcançando qualidades vocais incomparáveis que lhe permitiam brincar com as palavras e com as notas musicais. Era considerada não apenas uma cantora, mas um músico, sendo capaz de atingir os sons mais agudos e os mais graves numa harmonia perfeita entre a voz e os demais instrumentos. A canção Vento de Maio (Telo e Márcio Borges) exemplifica esta extensão vocal do grave ao agudo, com afinação espantadora.
De personalidade forte, Elis manteve-se fiel à sua vocação, não aceitando ancorar-se em um gênero que lhe garantisse o sucesso meramente comercial, negando-se a satisfazer modelos previamente estabelecidos.
Com o tempo, foi se tornando mais claro para ela que possuía um dom precioso, não só para si, mas também para o povo ao qual pertencia. Desse modo, levou a sério a tarefa de ser a voz deste povo. Cantou não só as vicissitudes próprias mas as de sua nação.
Em Arrastão, Elis canta a experiência da religiosidade popular, onde a melodia expressa ao mesmo tempo a intensidade de vida de um homem que se joga na realidade do trabalho e a doçura própria daquele que reconhece, religiosamente, que tudo lhe é dado.
Eh! tem jangada no mar
Eh! eh! eh! Hoje tem arrastão
Eh! Todo mundo pescar
Chega de sombra, João
J’ouviu, olha o arrastão entrando no mar sem fim
Eh, meu irmão me traz Iemanjá pra mim
Minha Santa Bárbara me abençoai
Quero me casar com Janaína.
Eh! Puxa bem devagar
Eh! eh! eh! Já vem vindo o arrastão
Eh! É a rainha do mar
Vem, vem na rede João pra mim
Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim
Em Upa Neguinho (Edu Lobo e G. Guarnieri) canta a contradição entre a condição sofrida do sistema escravista e a dignidade do ser humano.
Upa, neguinho na estrada
Upa, pra lá e pra cá
“Vixe”, que coisa mais linda!
Upa, neguinho começando a andar
Começando a andar, começando a andar
E já começa a apanhar
Cresce, neguinho e me abraça
Cresce e me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito te posso ensinar
Capoeira, posso ensinar
Ziquizira, posso tirar
Valentia, posso emprestar
Liberdade só posso esperar.
Mas o grande momento em que se torna explícita e decisiva a consciência de ser a expressão de um povo é quando grava O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc) que no final da década de 1970 se torna, na sua voz, o Hino da Anistia.
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco -
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarices no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser
inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
tem que continuar.
Vivia intensamente cada música. Cantava o que vivia e chorava freqüentemente no palco. São várias as suas interpretações nas quais mistura a técnica e os sentimentos mais sinceros, com uma evidente paixão por tudo que existe. Cantava com o corpo inteiro. A música lhe saía pela boca e pelos poros, sem dificuldade, não deixando de lado nenhum aspecto de sua existência. Nesse sentido, foi absolutamente coerente com a sua vida. Um belo exemplo é quando canta Aos nossos filhos (Ivan Lins e Vítor Martins) e lhes pede perdão, aparentemente, se despedindo deles:
Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço...
...Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim...
...Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim...
Agora quero voar
Uma frase recente de Bento XVI descreve aquela que foi a sua experiência humana: “Como não sentir que exatamente do fundo desta humanidade festiva e desesperada se levante uma invocação dilacerante de ajuda?“ (Mensagem Urbi et orbi –Natal 2006). Elis Regina certamente foi marcada por esta invocação, como em Modinha, de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes:
Não, não pode mais meu coração
Viver assim dilacerado
Escravizado a uma ilusão
Que é só desilusão
Não, não seja a vida sempre assim
Como um luar desesperado
A derramar melancolia em mim
Poesia em mim
Vai, triste canção, sai do meu peito
E semeia emoção
Que chora dentro do meu coração.
Ou em Cais, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos:
Para quem quer se soltar
Invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento Lua nova a clarear
invento o amor
E sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir
Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais e sei a vez de me lançar.
Poucos meses antes de morrer disse: "Passei anos complicando as coisas, agora quero voar”. Esta auto-definição aproxima-se muito da figura do mito grego de Ícaro, que ao nosso ver, descreve bem a experiência humana da “Pimentinha”, como foi devidamente apelidada por Vinícius de Moraes. O mito do Ícaro conta de um jovem que, voando, quis chegar até o sol. À medida que se aproximava, suas asas frágeis e de cera derreteram e ele caiu e morreu.
Toda trajetória verdadeira é determinada pelo desejo de bem, não só no instante presente, mas de um bem que permaneça. E Elis Regina, sem dúvida, desejou isto em toda a sua vida. Uma busca inexaurível em tudo, em todos os relacionamentos. Não se contentou com nada, lançando-se sempre mais em direção a horizontes desconhecidos, num ímpeto incansável de desvendar a realidade, de responder às suas necessidades mais profundas, de perfeição. Em poucos intérpretes podemos verificar de forma tão clara a natureza do homem como desejo. Não por acaso a palavra desejo tem a sua raiz em sidera, estrela, e quer dizer tender às estrelas. Como o Ícaro, Elis quis voar e atingir a estrela maior, a mais brilhante. Mas, desafiando a inadequação de seus meios limitados, experimentou a queda, inevitável para qualquer criatura humana.
Aos 36 anos de idade atingiu o ápice de uma procura, de um coração que grita e que não encontra satisfação em nada, morrendo de overdose de cocaína. Sobre este fato, que talvez seja o objeto maior de escândalo para quem se aproxima de sua história, é preciso dizer que esse vôo arriscadíssimo na droga não era só para afogar a tristeza e a dificuldade nos relacionamentos, a solidão que vivia por uma história crescente de relações rompidas, dois casamentos terminados, rompimento definitivo com o pai, mal-entendidos com tantos artistas seus amigos, etc., mas era também, inspirada pelos músicos americanos que a ensinaram a usá-la (pelo que se sabe), uma clara tentativa de busca para cantar melhor. Em Trem Azul, seu último show, pela primera vez, dizem, o público se levantou para aplaudí-la enquanto cantava. Ela foi tentando tudo, absorvendo tudo o que lhe diziam e o que poderia ajudar para cantar de maneira cada vez mais perfeita. O único problema é que esse vôo foi solitário e determinado pela sua fragilidade. O cristão sabe que só Cristo pode levar uma pessoa à perfeição e à superação dos próprios limites. O encontro com a comunidade cristã poderia ajudá-la a encontrar a paz e a unidade necessária para ela – essa é a experiência dos santos, que têm a característica de junto com Cristo superar os próprios limites para chegar a uma perfeição e beleza de vida acima da normalidade.
“Em qualquer gênio humano existe a profecia de uma realização que a pessoa de Cristo assegura encarnar”( Luigi Giussani, L’autocoscienza del cosmo, p. 151). Sem Cristo, a vida humana é destinada ao des-astre (queda da estrela), oposto, inclusive etimologicamente, ao desejo de que a vida é feita. À Elis, grande musa e cantora do nosso povo, rendamos homenagem. Salve Elis! Agora você encontrou a resposta ao desejo do seu coração. Porque um grito grande como o seu, o Senhor não pode ter deixado de responder.
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