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Passos N.89, Dezembro 2007

EXPERIÊNCIA - Educação / Ensino de história

O que é a crítica?

por Marina Massimi *

Reflexões sobre o manual Nova História Crítica


Nos últimos meses pudemos acompanhar na mídia uma intensa polêmica acerca do ensino da história no nível fundamental e médio desencadeada pela avaliação realizada pelo Programa Nacional do Livro Didático do Ministério da Educação (MEC) sobre os livros didáticos mais utilizados no país. Entre estes, foi considerado inadequado um manual elaborado por Mário Schmidt – Nova História Crítica –, que descobriu-se ser um dos livros mais utilizados nas escolas do país. A seguir uma análise do problema


A comissão do MEC julgara inadequado o livro Nova História Crítica 1 por ter informações desatualizadas, conceitos já superados pela historiografia contemporânea, anacronismos e simplificações explicativas, além de exercer formas de doutrinação.
Diante do veredicto da comissão, vários professores e pais posicionaram-se a favor do livro enfatizando algumas qualidades do mesmo, como o amplo uso das imagens e de uma linguagem coloquial que tornaria o conteúdo proposto mais próximo à realidade concreta dos alunos.

Antes de mais nada, cabe entender a importância desta discussão: se, conforme afirma Giussani em Educar é um risco 2, “para educar, é preciso propor adequadamente o passado”, porque “sem essa proposta do passado, do conhecimento do passado, da tradição, o jovem cresce problemático ou cético”, fica claro que a questão do ensino da história não é um aspecto marginal da proposta educativa e como tal constitui-se numa das preocupações determinantes dos educadores.

Pude ter acesso aos volumes da Nova História Crítica dedicados ao Ensino Fundamental e detive-me na consideração da proposta metodológica do autor, pois é neste nível, mais do que propriamente no que diz respeito aos conteúdos propostos, que emerge a inadequação do texto para a formação histórica dos discentes.

Colocaria três pontos cruciais (e graves) que perpassam a elaboração deste material didático e que aparecem logo no começo da introdução dos manuais: 1) a rejeição do valor e da função da memória; 2) a concepção kantiana de crítica; 3) o esvaziamento do sentido histórico.



A história é filha da memória

Comecemos pelo primeiro tópico: a questão da memória. Logo na primeira página, o autor afirma que “decorar é o contrário de raciocinar” e que, portanto, datas, nomes e lugares não “precisam ser memorizados” 3 . Trata-se de um grave reducionismo do valor da memória que, pelo contrário, é estritamente associada à história, como demonstra claramente o título de uma obra clássica de um dos mais famosos historiadores contemporâneos, J. Le Goff: Memória e História. A tendência da historiografia atual, com efeito, é a de realizar uma aproximação cada vez mais estreita entre estas duas dimensões da experiência humana do passado, separadas artificialmente e forçosamente pelo racionalismo iluminista e positivista. Quando se fala em memória, refere-se a uma capacidade humana concreta, profundamente associada ao raciocínio e também à imaginação e à sensibilidade, lugar constitutivo da consciência e do conhecimento de si mesmo e também de preservação e elaboração da experiência pessoal e coletiva, como toda a tradição ocidental evidenciou de várias formas. A memória, por ser profundamente ligada ao afeto (lembramos do que amamos), foi localizada pelos antigos no coração: daqui deriva a expressão de cor, raiz etimológica do verbo decorar, desprezado por Schmidt. Sem o uso concreto da memória e sem recorrer à capacidade psíquica da memorização, não é possível nem preservar nem aprender os acontecimentos históricos. “A história é filha da memória”, afirma P. Veyne 4. É na memória, com efeito, que os acontecimentos permanecem de algum modo presentes, não mais como presença encarnada, mas como presença reapresentada à consciência humana. Não esqueceremos nunca mais o nome da pessoa amada, de um amigo querido, a data de um importante evento ou encontro que marcou nossa existência. As datas, os nomes e os fatos históricos nos foram transmitidos justamente pela memória daqueles que os testemunharam e os transmitiram às gerações seguintes por meio de várias formas (narrativa, iconográfica, relato oral, etc.). Desprezar este patrimônio e menosprezar a modalidade de sua transmissão (a memória) significa, no fundo, afirmar um individualismo aberrante e totalmente alheio à realidade (e talvez este tipo de deformação seja uma das causas do aparecimento destas características na juventude atual). Schmidt afirma que datas e nomes não podem ser nominalmente reduzidos a “etiquetas de um fichário”: elas mantêm em si a densidade e a dramaticidade da experiência dos homens no tempo. De fato, na nossa própria vida, a data de um nascimento, de uma morte, de um aniversário, não são uma simples etiqueta!, nem um marco convencional no fluxo amorfo do devir.

Parece-me que o menosprezo da memória coloque em questão um ponto fundamental, que é o da transmissão da tradição enquanto hipótese de trabalho para o jovem: é na memória que a tradição habita. Le Goff afirma que a memória é “um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” 5. E ainda, “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”.

A memória deve ser educada como uma capacidade inerente à pessoa concebida como um ser integral e em formação constante; neste sentido, faz parte do trabalho educativo da memória, cuidar para que ela seja usada não mecanicamente, mas no conjunto de suas interação com as demais dimensões da pessoa: sensibilidade, afetos, razão, motivação.



O significado da crítica

Segundo Schmidt, o objetivo da crítica é “ensinar a pensar por conta própria”; pois, segundo “o que nos ensinou o filósofo Kant, o principal objetivo da educação é ensinar as pessoas a pensarem com autonomia” 6. Ainda segundo o autor, “o conhecimento histórico é construído pela dúvida, pela crítica e pelo diálogo”, sendo que o “trabalho dos historiadores é feito por meio do confronto de idéias opostas”.

Chama a atenção o fato de que em virtude desta definição de crítica de matriz kantiana, o autor não aprofunde a categoria fundamental no estudo histórico que é de acontecimento. Pois os historiadores não se deparam antes de mais nada com idéias opostas e sim com acontecimentos que resistem às suas interpretações e idéias. É exatamente esta resistência do fato às explicações do presente a faísca que coloca em movimento a investigação histórica. Pernoud 7 afirma que não se faz história para promover as nossas idéias, e sim para a procura da verdade, por meio do “estudo paciente de documentos tantas vezes demasiado áridos, mas sempre concretos, vestígios de acontecimentos vividos por pessoas vivas. (...) Acreditar que a história se faz nos nossos cérebros, que ela se pode construir como se quer, é provavelmente um dos erros capitais do nosso tempo”. Para ela a história é viva e tem a ver com a vida exatamente pelo fato de que “ela comporta um dado, qualquer coisa que preexiste nos nossos conceitos, nos nossos preconceitos, nos nossos sistemas”; “o dado da história está lá, mas é preciso certamente, durante muito tempo, trabalho e respeito para o explorar e expor em seguida a sua substância. Compreende-se perfeitamente que alguns prefiram escapar disto por desdém; é infinitamente mais fácil desenvolver idéias; ora a ignorância dos documentos permite apenas desenvolver idéias com toda serenidade, para tirar delas sistemas históricos-sociológicos satisfatórios para o espírito. Pelo contrário, o que é fecundo na pesquisa histórica é esse obstáculo ou, antes, esses obstáculos perpetuamente encontrados que se opõem aos nossos preconceitos e nos condizem a modificar as nossas idéias preconcebidas”.

M. Bloch 8 afirma que o ceticismo de princípio não é atitude menos irracional do que a credulidade e nega que o historiador seja “esse juiz um pouco rabugento cuja imagem desabonadora, se não tomarmos cuidado, é facilmente imposta por certos manuais introdutórios”: sua principal preocupação é fazer falar as testemunhas para compreendê-las. O passado, afirma Bloch, é “um dado que não deixa mais lugar para o possível. (...) A incerteza está, portanto, em nós, em nossa memória ou nas nossas testemunhas. Não nas coisas”. Ou, como afirma Marrou 9 , “é compreendendo os documentos, familiarizando-se com eles, meditando-os, examinando-os sem descontinuidade, penetrando-os pouco a pouco que se chega a conhecer não só o que na verdade são como também, ao mesmo tempo, o passado humano cujos vestígios conservam e acerca do qual testificam”. Em outro trecho: “é preciso ouvir, deixar falar o documento, dar-lhe a oportunidade de mostrar-se como é; não podemos saber antecipadamente tudo aquilo que é capaz de dizer. Submeter cedo demais esse documento a um questionário estabelecido aprioristicamente é o meio mais seguro de atrofiar e deformar o seu testemunho”. Paul Veyne afirma que o “historiador narra acontecimentos verdadeiros que têm o homem como ator”: “um acontecimento destaca-se sobre o fundo da uniformidade: é uma diferença, uma coisa que não podemos conhecer a priori” 10 . Segundo Certeau 11 , a história nasce da “relação que o discurso mantém com o real”.

Diante destas observações dos historiadores, parece também simplista e marcado com viés positivista o modo como Schmidt descreve a fase da crítica aos documentos como uma das fases da investigação histórica: a desconfiança acerca do conteúdo do documento e de seus autores parece marcar a atitude do pesquisador. Se é verdade que a educação deve ser educação para a crítica, de modo a problematizar o que foi recebido pela tradição, a crítica porém, não possui necessariamente um sentido negativo, sendo muito mais um “dar razão das coisas” 12 do que querer afirmar as próprias razões. A identificação entre o problema e a dúvida, afirma Giussani, “é o desastre da consciência da juventude”. Para explicar a relação entre crítica e tradição Giussani usa a metáfora da mochila colocada sobre as costas da criança por quem a ama e que contém o que de melhor este experimentou e escolheu na vida. Num certo momento da vida, a criança pega a mochila e coloca-a diante dos olhos, remexe o que ela contém e compara o que tem dentro com os desejos de seu coração que são os critérios últimos de juízo (a exigência do verdadeiro, do bom, e do belo). Desse modo, a capacidade crítica pressupõe dispor destes critérios de juízo e afirmá-los. Em seu manual, Schmidt afirma que o que põe em movimento uma atitude crítica na criança é quando ela não gosta, discorda ou pensa diferente de algo que é colocado pelo professor ou pelo livro, mas se a criança não for introduzida no aprofundamento do que isto significa, nas razões, a crítica basear-se-á apenas em reações (como de fato são o não gostar, o discordar, o pensar diferente), e não haverá base alguma para o diálogo, caindo-se num relativismo sem saída. Neste sentido, não se pode educar a uma atitude crítica, sem esclarecer e aprofundar o critério de juízo. E, de fato, o próprio Schmidt, ao relatar o trabalho da escrita do livro e a necessidade de escolher entre diversas interpretações do mesmo acontecimento, admite que o critério foi a resposta à pergunta “qual dos dois parece mais verdadeiro?”. Ou seja, na história a questão da verdade não pode ser colocada entre parêntese.

Em suma, a crítica não pode ser um “pensar por conta própria”, pois o pensamento do historiador sempre esbarra na alteridade do acontecimento sinalizada pelo documento. Depende dele para entender seu sentido e por isto precisa interrogá-lo e ouvir suas respostas. A crítica é justamente buscar as razões da experiência humana sinalizada pelo documento em seu universo de produção e comparar estas razões com as razões próprias da nossa experiência.

Cabe assinalar o mérito de Schmidt de dedicar o primeiro capítulo do manual à descrição do que é a história e como se estrutura o trabalho do historiador, pois isto mostra que esta disciplina é uma área num processo permanente de construção: cada geração reconstrói o processo histórico a que pertence. Por outro lado, a sua definição da história como uma ciência baseada na busca das causas e dos efeitos contradiz esta afirmação: diferentemente do conhecimento científico, o saber histórico é sempre parcial – como Veyne e a maioria dos historiadores atualmente reconhecem. Não existem as leis da história assim como a teoria marxista as imaginava e a categoria de luta de classe não pode ser tomada como um conceito heurístico válido para todas as épocas históricas, como pelo contrário o autor coloca. E se uma causalidade existe trata-se de um “ato de ordenação sempre precário, pois a composição total de casualidades pouco homogêneas, que a própria análise instituiu e constituiu, faz aflorar um problema quase insolúvel” 13 .



O esvaziamento do sentido histórico

A preocupação de Schmidt de que o manual tenha uma linguagem escrita e iconográfica ao alcance de seus jovens usuários faz com que ele recorra a expressões coloquiais e busque reduzir imagens e conteúdos do passado em termos de conceitos e recursos da iconografia próprios da nossa atualidade: a adequação ao destinatário torna-se assim o critério fundamental da construção do texto. Esta operação, porém, esvazia a proposta do estudo histórico do seu objetivo educativo mais importante: aprender o sentido histórico e o da alteridade (que se manifesta concretamente, inclusive por meio de linguagens e imagens outras). Para Pernoud o principal interesse do estudo da história para a educação é a formação do sentido histórico: “na idade em que o adolescente procura o outro, nada seria mais fecundo para ele do que esse encontro com o que o precedeu no tempo e que lhe é, mais uma vez, tão próximo, tão necessário, e que o cerca no espaço” 14. Este alargamento de horizonte propicia-lhe uma revisão crítica de si mesmo e do tempo presente. Ricoeur comenta que “a história é precisamente essa disponibilidade, essa submissão ao inesperado, essa abertura a outrem, na qual a má subjetividade é transcendida” 15.

Schmidt afirma que as imagens utilizadas no manual têm o caráter informativo sobre a cultura de uma época, mas na maioria dos casos tratam-se de leituras iconográficas realizadas a partir do presente e neste sentido não dizem nada a respeito do que passou, sendo totalmente anacronistas.

Aliás, o “presentismo” parece ser o principal pecado do manual: a profundidade ultimamente insondável do passado é achatada e encaixada forçosamente dentro da medida de parâmetros e horizontes do presente. Dessa maneira, não há encontro, não há surpresa, não há novidade. Permanece apenas o monótono monólogo das próprias opiniões e a construção de um universo mental solipsista 16 onde o diálogo é inútil porque, de qualquer forma, tudo é relativo. Como é diferente a maneira como o grande historiador Philippe Ariès descreve a experiência da história na criança, remetendo-nos ao fato e que nesta existe um sentido histórico espontâneo! “Uma criança imersa num ponto colorido do passado tenta adaptar-se a este passado que já não está totalmente assimilado por ela. O passado aprece-lhe algo diferente, mas infinitamente desejável, um reflexo da doçura do viver, uma imagem de felicidade” 17 . Por conter a “preocupação de apreender o passado em sua totalidade” Ariès define esta vivência da história como uma experiência religiosa. E continua: “Ou efetivamente a história é um movimento elementar, inflexível e sem amizade, ou então existe uma comunhão misteriosa do homem na história: a apreensão do sagrado imerso no tempo, um tempo que seu progresso não destrui, onde todas as épocas são solidárias”. Se levarmos em conta o ano em que Ariès escreveu estas palavras, 1946, não podemos acusá-lo de um fácil otimismo diante da história: a hipótese de uma positividade última do tempo humano é o que dá sentido não apenas ao estudo da história, mas também ao presente, fundando inclusive o sentido do empenho na vida social e política e gerando a energia para novos inícios.

* Marina Massimi é Pesquisadora e Professora Associada do Departamento de Psicologia e Educação da USP de Ribeirão Preto (SP).


Notas

[1] Schmidt, M. Nova História Crítica (quinta à oitava série). São Paulo, Editora Nova Geração, 2007.
[2] Giussani, L. Educar é um risco, São Paulo, Companhia Ilimitada. 2004; p. 11.
[3] Schmidt, Op. Cit, Vol.1, p.1.
[4] Veine, P. Como se escreve a história. Lisboa, Edições 70, 1971, p. 13.
[5] Le Goff, J. História e memória. Campinas, Editora Unicamp. 1992, p. 476.
[6] Schmidt, Op. Cit, Vol.1, p.3.
[7] Pernoud, R. O mito da Idade Média. Lisboa, Edições Europa-América, 1980, pp. 128-155.
[8] Bloch. M. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.
[9] Marrou, H.I. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, pp 96-117.
[10] Veine, P. Op. Cit., pp. 13-15.
[11] Certeau, M. De. A escrita da história. São Paulo, Editora Forense, 2000, p.11.
[12] Giussani, Op. Cit., p. 13.
[13] Ricoeur, P. História e verdade. São Paulo, Forense, 1968, p.29.
[14] Pernoud, Op. Cit., p. 155.
[15] Ricoeur, Op. Cit., p. 35.
[16] O solipsismo é a idéia de que a única realidade é o próprio eu; nde.
[17] Ariès, P. O tempo da história. R. de Janeiro, Francisco Alves, 1989, pp. 42-43.

 
 

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