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Passos N.83, Junho 2007

EXPERIÊNCIA - Milão / Universitários

A batalha da razão

por Davide Perillo

Foi considerado muito “estreito” o encontro sobre as células embrionárias de que participaram alguns jovens da Universidade Estatal de Milão, no final de janeiro. Muito “estreito” nas perguntas, muito estreito no juízo. “Uma feira de opiniões”, afirmaram. Por isso não concordaram e oito deles fizeram um abaixo-assinado endereçado a uma das professoras que organizaram o encontro, e o levaram ao conhecimento de todos os alunos da universidade. As polêmicas, as réplicas, as acusações, a instrumentalização da mídia, mas também a descoberta e o nascimento de novos relacionamentos.
Nestas páginas, o relato do que aconteceu



Uma folha só e três perguntas. Bastou isso para deflagrar uma crise em quase toda a faculdade. Ou para voltar a enchê-la de vida. Questão de ponto de vista. E o deles é claríssimo: ao sair do encontro sobre as células-tronco embrionárias, preparado pela UniStem, na Universidade Estatal de Milão, com a cabeça ainda cheia de opiniões de estudiosos que teorizaram sobre “diversos estágios de valor na vida humana”, tiveram a idéia de escrever a “Carta a uma professora” (Elena Cattaneo, a organizadora), que foi parar nas páginas dos jornais. Motivo? As perguntas, justamente: “É possível fazer pesquisa sem se colocar a pergunta fundamental: o que tenho diante de mim? Indo ao ponto: o que é o embrião? É vida?”. E as assinaturas: oito alunos de faculdades científicas da Estatal. O suficiente para desencadear os costumeiros reflexos condicionados em meia imprensa (“CL na cruzada contra as células-tronco”, L´Unità), a reação ressentida da professora (“o texto é tão sumário, descuidado e divulgado com métodos impróprios, que não merece comentários”) e a tentativa de transformar tudo numa questão política, porque “dentro em breve, como se sabe, haverá as eleições universitárias”.

Só que há um problema. Esses “jovens de CL” não estão nem aí para os rótulos. São tão obstinados quanto o tema que colocaram sobre a mesa. E insistem. Propõem um encontro aberto a todos no qual se volte a abordar o assunto. E convidam a professora Cattaneo, bem como os professores que se posicionaram “pró” ou “contra”, porque também entre os professores a questão acirrou os ânimos, e enquanto uns pediam censura aos subversivos, outros colheram assinaturas para uma carta de apoio às suas “preocupações não banais”. Em suma, o questionamento continua. E novas perguntas surgem. Sobretudo uma: o que está acontecendo na Estatal? O que esse gesto de liberdade suscitou?


Perguntas sem resposta
“Partamos de um dado: a essas perguntas ninguém deu resposta”, diz Michele Benetti, aluno de Física e presidente da Associação dos alunos da Universidade de Estudos de Milão, um dos signatários: “Ainda estamos na expectativa de começar a trabalhar sobre os temas que propusemos. Não é uma reivindicação: abordamos temas importantes. Queríamos que todos soubessem que na Universidade Estatal de Milão se fazem pesquisas sobre as células-tronco embrionárias humanas. E queríamos que se discutisse a realidade dos embriões. Se a gente não aborda essa questão, não está usando a razão. E, de fato, naquele encontro não se lançou um desafio à verdade: ele era uma feira de opiniões. Ninguém falava da realidade que tinha diante de si”.

Como resposta, receberam ataques. Ao menos por ora. Mas, além da questão principal, abriram-se outras, relativas ao mérito da questão e ao método, sobre o uso da razão, justamente. Mas também sobre a liberdade de expressão. Podem-se fazer perguntas? Ou só quando – e onde – outros decidirem permitir, como pensa, evidentemente, quem alega que “os alunos podiam falar durante o encontro, não depois”? Liberdade ou liberdade vigiada? “É como se fôssemos balões a serem enchidos sem limite, mas que ninguém ouse levantar a cabeça”, diz Agnese Taboni, aluno de Farmácia. “Hoje, na universidade, é mais fácil invadir uma classe do que fazer perguntas. Se a gente a invade, no fundo continua sob controle. Mas se usar a cabeça, não. Aliás, passa a ser uma ameaça”.

Resultado? “Tudo o que aconteceu me levou a uma decisão. Passei a me perguntar: Agnese, o que lhe interessa de fato? A que coisa você está disposta a se entregar, inclusive arriscando a própria face? E, então, resolvi me lançar”.


Os chatos
É verdade, o risco está presente. Há professores que, quando nos vêem, dizem entre si: “Lá vêm os chatos”; alguns colegas enchem a nossa caixa de e-mails com comentários nada agradáveis. “Mas com muitos deles nasceu um relacionamento. A gente discute. Se encontra”. Vive. “Ficou mais rico inclusive o relacionamento com os professores”, acrescenta Michele. “Sob certos aspectos, é o ponto mais entusiasmante”. E aí vêm as narrativas de fatos, de coisas engraçadas, pequenos episódios cheios de significado. Como o amigo que se aproxima de um professor e daí nasce um diálogo que termina com esta frase: “Ainda bem que ainda existem alunos como vocês”.

Sorte? Quantos professores estão de acordo conosco? E quantos perceberam – ou quiseram perceber – que a questão ia além da polêmica sobre as células-tronco, ampliando-se para temas como a razão e os mestres? No fundo, esse é o alicerce de uma universidade. Ou, pelo menos, deveria ser. No entanto... “não sei quantos dentre nós captamos o ponto principal: o que estamos fazendo aqui dentro, nós e os jovens?”, observa Carlo Soave, titular de Fisiologia vegetal. “O que está em jogo é a situação atual da relação professores-alunos. Frente a questões desse tipo, a reação normal não é mais ir à sua origem, mas engavetá-la. Mas, assim, rompe-se o laço de parentesco entre nós e eles. A gente não educa se não for, de algum modo, pai”.

Foi Soave quem escreveu uma outra carta – assinada também por vários colegas e que chegou às mãos do reitor Enrico Decleva, que a fez circular de mão em mão, com uma motivação curta mas eficaz: “A universidade é, por natureza, um lugar de discussão”.

Efeitos? Alguns se encolheram ainda mais. Outros deram de ombros. Mas alguns também começaram a raciocinar sobre uma universidade onde – lembra Soave – “os estudantes chegam às oito, assistem às aulas até as duas e meia, engolem um lanche e retomam os exercícios à tarde. Todo o tempo tomado, tudo organizadinho”. Um criadouro, mais do que um lugar de confronto. “Quando eu estudava, era normal que um jovem como eu, com seus 22-23 anos, fizesse uma pequena tese de Neurofisiologia e a discutisse em classe. Hoje não. A contribuição do estudante não está prevista. Talvez valha a pena perguntar: isso é correto?”.


Além da faculdade
Boa questão. Importante demais para ficar restrita aos muros da universidade. Assim, as sementes das perguntas ultrapassaram as paredes da faculdade. Jornais à parte, suscitaram debates. Cartas. E-mails. Uma, aos jovens da Estatal, veio do Friuli. Um pai de três filhos parte das suas lembranças da faculdade, onde “os membros de CL, implacáveis como pernilongos, escreviam, falavam, panfletavam”, e chega aos dias de hoje, à sua filha matriculada numa escola ligada a CL e “que cresce serena, e que um dia talvez se parecerá com vocês: não se submeterá aos dogmas do politicamente correto e será uma bela moça impertinente, que colocará perguntas e exigirá respostas. Obrigado, porque pessoas como vocês alimentam a confiança no futuro”.

“Amanhã à noite iremos procurá-lo”, diz Agnese. “E isso, o que mais desejo é encontrar essas pessoas”, acrescenta Riccardo Branca, quarto ano de Farmácia. “Nossa conversa não significa uma contraposição de teorias e sim um confronto de experiências. Pois a vida vale a pena ser vivida”.

É também por isso que – polêmicas à parte – a batalha continua. Em termos de mérito e de método. “Não me interessam nem o sensacionalismo nem o cerco da mídia”, diz Michele. “Interessa-me estar num lugar onde a gente possa aprender permanentemente a usar a razão assim. Onde eu possa continuar a me questionar sobre o porquê daquilo que faço e da realidade que tenho diante de mim. Sou grato por existir um lugar assim”. Grato. Como Ettore Barbagallo, que estuda Filosofia e durante a discussão acrescenta apenas uma frase, bem no final: “Entendi melhor aquilo que o Papa disse: é preciso alargar a razão”. E viver.

 


Carta aberta à professora Cattaneo

A seguir, o texto da carta dos oitos estudantes da Estatal de Milão endereçada à professora, depois do encontro sobre “As células-tronco embrionárias humanas”, organizado pela UniStem, centro de pesquisa multidisciplinar fundado pela Universidade, e que se desenrolou na Sala A da faculdade de Farmácia, dia 31 de janeiro deste ano

Somos alunos das Faculdades científicas desta Universidade. Estamos interessados na possibilidade de aprofundar o conhecimento da realidade que nos rodeia, em todos os seus aspectos. Entendemos que fazer ciência, através do estudo, é de certo modo o nosso trabalho quotidiano. Para muitos de nós, uma das mais altas aspirações é podermos ser pesquisadores, para assim contribuir para o desenvolvimento científico. A ciência, em nossa época, tem-se mostrado um dos ramos mais férteis do conhecimento humano e um dos mais decisivos no desenvolvimento de uma comunidade. Não podemos permanecer indiferentes diante do fato de, no espaço de uma década, o método científico ter-nos permitido abrir janelas para problemas que, não há muito tempo, pareciam fora da nossa capacidade intelectiva. Como não ficarmos maravilhados frente à decifração do código do genoma humano? Ou, para dar um outro exemplo, não nos entusiasmarmos frente à possibilidade de fazer afirmações sensatas a respeito dos primeiríssimos instantes do universo? O poder e as potencialidades da ciência nos parecem, hoje, coisas muito evidentes. Mas, dentro dessa grande aventura do conhecimento, estamos seguros de que os fins justificam os meios? Parece-nos que todo esforço de pesquisa coloca em campo dois atores principais, dois protagonistas: a nossa exigência (a nossa sede) de entender e a realidade. Há algo que é mais profundo do que a possível habilitação futura, que é mais original do que qualquer possível aplicação, por mais importante que seja: é o objeto do nosso estudo, que dita sempre o método apropriado ao nosso trabalho. Por isso, saímos muito preocupados – talvez até um pouco desorientados – do encontro público que a senhora organizou em nossa faculdade. É possível fazer pesquisa sem se colocar a pergunta fundamental: o que tenho diante de mim? Indo ao ponto: o que é o embrião? É vida humana? A senhora propôs que se delegasse a resposta a tais questões à consciência individual de cada um, às confissões religiosas, dando a entender que não seria possível afirmar nada de certo sobre um tema como esse. Mas mesmo que fosse assim, se não estamos seguros de que uma certa realidade seja um “ser humano”, não seria mais razoável agirmos com prudência? Talvez a senhora deu a palavra aos padres (que, se a senhora notou, defenderam mais a razão do que o catecismo) porque os “leigos” convidados davam respostas francamente impublicáveis, como aquela da ética em estágios. Inquieta-nos profundamente tal teoria, que foi proposta pelo professor Demetrio Neri, docente de Bioética na Universidade de Messina, segundo a qual deveríamos criar diversos níveis ou “estágios” de valor nas expressões da vida humana, em particular atribuindo um nível mais baixo à pessoa ainda não completamente desenvolvida (embriões ou fetos), em comparação com o nível humano propriamente dito. Mas isso não equivale a formular uma escala de dignidade baseada nas potencialidades que ela pode alcançar? Poderíamos, por exemplo, colocar os esquizofrênicos, os downs, os malformados, em estágios ligeiramente inferiores ao de um adulto considerado saudável? E assim por diante. Justificaríamos, assim, graças à teoria do professor Neri, uma classificação dos seres humanos que desperta em nós sinistras lembranças. Ficamos ainda mais desconcertados com a afirmação, que emergiu durante o encontro, de que “é justo usar embriões humanos, pois assim salvaríamos a vida de muitos animais, que hoje são sacrificados pelas pesquisas”. É esse o máximo esforço cognoscitivo que um grupo de vanguarda da nossa universidade pode (ou quer) produzir para “defender” a legitimidade da própria pesquisa? São exemplos de um erro em que podemos cair, mas que devemos combater. Cremos que há um problema de método, que consiste em um uso por demais restrito da razão, como se ela se retirasse quando entram em jogo questões que não podem ser decididas pelo método científico. Assim, vemo-nos diante de intransigentes pesquisadores que são justamente rigorosos quando se fala de DNA, de código genético, de células totipotentes, mas que deixam campo livre às mais variadas interpretações sobre problemas como a vida e a ética. Nas questões mais decisivas, que mais nos interessam como seres humanos, guardamos a arma da razão na bainha. Mas não precisamos de ulteriores progressos da pesquisa científica, ulteriores experiências ou demonstrações, para estabelecer que – se não for descartado – o embrião se manifestará como um indivíduo humano que é desde o início, e não como um elefante ou um rato. Aqui se trata de um uso elementar (e também mais amplo) da razão, sem a qual estamos destinados a ser presas da ditadura das interpretações sobre todos os temas mais importantes da existência humana. Não queiramos ser crianças que pretendem provar tudo, aceitando ser arrastados pelos mil ventos ideológicos que nos rodeiam. Queremos ser humanos, que não renunciam ao direito de escolher, usando até o fim a própria capacidade de juízo.


“Quando começa a vida humana ?”

por Dalton Ramos

No dia 20 de abril o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma Audiência Pública para discutir “quando começa a vida humana”. Este foi um fato inédito na história do Brasil, pois pela primeira vez este Tribunal abriu suas portas para uma audiência como esta. O que motivou este ato foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), movida em 2005 pela Procuradoria Geral da República quando foi aprovada a Lei de Biossegurança. Esta ADI questiona se o artigo desta Lei que autoriza o uso para fins de pesquisa científica de embriões humanos – congelados em clínicas de reprodução assistida –, fere ou não a Constituição Brasileira que defende a vida humana. Nesta primeira audiência os ministros do Supremo ouviram argumentos, pró e contra, de especialistas da comunidade científica brasileira. Deverá ocorrer, ainda em 2007, uma segunda Audiência – de julgamento – quando então os Ministros se manifestarão sobre a matéria.

Foram reunidos, pela Procuradoria e pela CNBB, doze especialistas que entendem que a utilização e a destruição de embriões humanos é um crime; estes tiveram 3 horas e meia para defender seus argumentos em plenário frente aos Ministros do STF. Os contrários a essa tese, representando o Governo Brasileiro, também em número de 12 especialistas, tiveram o mesmo tempo. Por determinação do STF as apresentações restringiram-se aos aspectos médico-científicos da questão.

Sendo um dos participantes, particularmente defendi em minha colocação frente ao Supremo que a vida começa no exato momento da fecundação e que uma decisão em contrário contraria o dado biológico, que caracteriza o “humano” por seus atributos genéticos e por sua expressão orgânica e ainda traz o perigo do casuísmo e da própria negação da vida como direito universal.

Esse tema é estratégico no atual contexto social, em muito extrapolando o aspecto jurídico. O que está em jogo são concepções antropológicas que pretendendo negar, diminuir ou relativizar o valor de cada vida humana, visam assim justificar a instrumentalização da pessoa humana.
Significativo neste sentido um argumento utilizado nestes debates por alguns daqueles que querem a liberação do uso de embriões humanos congelados. Sabe-se que o congelamento por longos períodos pode causar danos irreversíveis a estes embriões, situação de tragédia a que foram levados pela insensatez humana. Só que isto não acontece com todos os embriões congelados ou mesmo não acontece devido a determinado tempo de congelamento. Há casos de crianças que se desenvolveram de embriões que permaneceram congelados por 6 anos ou mais. Como o prognóstico para muitos desses embriões é uma morte anunciada – como, guardadas as devidas proporções, é também a situação de todos nós, seres vivos – há quem proponha “novos usos” para eles; uma destinação supostamente “mais útil”. Ora, embriões humanos não são lixo para serem reciclados.

Esta discussão ainda necessita ser enriquecida com os aspectos antropológicos e religiosos que junto com os biológicos constituem a biografia de cada nova vida humana.

 

 
 

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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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