Vai para os conteúdos

Passos N.82, Maio 2007

CULTURA - Literatura / Poesias comentadas

O Drama de Clemente Rebora

Poesias comentadas por Dom Giussani no livro Le mie letture (Milão, Rizzoli, 1996)

Um homem pobre (pobre em espírito, no sentido evangélico), foi como Rebora se apresentou a mim desde a primeira leitura, e essa pobreza, como já tive oportunidade de dizer, é definida pelo fato de captar a positividade do desígnio misterioso das coisas, misterioso mas positivo, de algum modo positivo. Quero exemplificar brevemente essa primeira afirmação com o Fragmento V da coletânea “Aos primeiros dez anos do século XX”:

Se entre o caixão e o berço
Se perpetua o homem, e suas cruzes
Madeira são de um tronco imortal
E suas tendas frágil rebento
De inexausto viço,
É isso passatempo de cego destino?
Se pelo universo circulam eternas vozes
E dos átomos aos sóis se conjuga
Entre glórias ardentes e tenebrosos erros
Uma grandeza infinita
Que o espírito entende,
É isto para nada?


Não é possível que tudo isso seja para nada. Essas perguntas, que permeiam o olhar que dirigimos ao universo, sugerem imediatamente a positividade de que falei antes. Não pode ser por nada; efetivamente, é assim que o homem, na sua companhia cósmica, caminha. Caminha, não fica parado (Fragmento XXVIII):

Tu, pelas casas, pelas pátrias, pela terra,
És a pisada e a pegada do ritmo seguido
Pelos passos que ergue e desfere
Entre metas e retornos
O gigante que ruma para o infinito.


De acordo com essa sensação imediata de positividade, o homem é um gigante que ruma para o infinito, “entre metas e retornos”, mas esse gigante vive um momento após o outro, trazendo, assim, um valor do ser ao instante efêmero. O instante efêmero não é efêmero (a cada momento, “o instante propagado/ no vasto palpitar que o fecunda”), mas demonstra sua conexão com o todo; cada instante, portanto, tem uma grande importância. A positividade torna grandioso o homem que caminha dentro da realidade, mas o faz na medida em que torna grandioso cada momento, cada instante. Essa característica fundamental do primeiro olhar que o homem dirige à realidade se reflete numa expressão em que vemos, mais que em qualquer outra, a grandeza do coração do homem e a sublimidade do instante.

***

Eu gostaria de intitular o segundo ponto: “O homem colabora com essa positividade”. Quando percebe, quando pressente essa positividade última da realidade, mesmo que ela seja misteriosa, quando percebe que tudo é dom, o homem se atira de boa vontade na colaboração. O homem que é, não o que se inventa, se torna colaborador da realidade: colaborador do sentido da realidade! Ele não é colaborador apenas de recortes da realidade, recortes feitos de acordo com seus preconceitos, ou de acordo com cálculos prévios, ou programas preestabelecidos.
Em primeiro lugar, essa colaboração é participação do movimento do cosmo (Fragmento VI):

Oh, da verdade do devir humano
Poderosa certeza irresistível,
Tece, tece com teus fios o pano
Que firmemente no tecido é história
E no desígnio eternamente é Deus:
Mas assim, cego e indolente,
Entre uma morte e outra, vil ritmo fugaz,
Também eu te terei feito; também eu.


Eu, portanto, participo. Nessa colaboração, participo da construção do universo. Participo da trama desse pano, do tecido que é história, do desígnio que é Deus: o Mistério. Ainda que eu seja como uma onda breve, “cego e indolente”, cego ante o mistério, indolente ante a enorme massa de energia do cosmo, “entre uma morte e outra, vil ritmo fugaz”, como uma nota entre uma morte e outra, ainda que eu seja tão mesquinho, “também eu te terei feito; também eu”.
Mas essa participação, na qual o homem de Rebora sente implicada toda a sua personalidade, é uma luta. E uma luta armada (Fragmento V):

Mas, tal como fechando o velame
Mais impetuosa a barca o vento enfrenta,
Queria eu que a alma atravessasse
a fúria contida da provação.


***

Chegamos à terceira questão, a mais importante quando se discute a poética de Clemente Rebora enquanto expressão de uma experiência pessoal da vida.
Parece-me que só há uma palavra que eu possa usar: “escolha”, ou o drama da escolha. Realmente, até aqui a positividade se detém, por assim dizer, numa confusão quase panteísta, e o que há de “são” na figura de Rebora é justamente o fato de que ele, não obstante a impossibilidade de uma clareza individual, se lança nessa grande confusão, se atira num ímpeto de colaboração.
Mas eis que no 62º de seus Fragmentos (O espaço poroso e sedento) ele diz:

Revelai, revelai a arcana forma [ó criaturas]
Do invisível amor
A nós, que, mesquinhos,
Marcamos com nossos selos
O trabalho de Deus
Gritando: Eu, eu, eu!


Ó coisas do mundo, revelem, façam-nos conhecer essa maneira misteriosa que o invisível amor tem de construí-las; mostrem-na a nós, que, mesquinhos como somos, acreditamos que as coisas que existem são aquelas que podemos tocar e moldar com as nossas mãos: “A nós, que, mesquinhos/ Marcamos com nossos selos/ O trabalho de Deus/ Gritando: Eu, eu, eu!”. Urge então a terrível escolha: “Dizer sim, dizer não/ A algo que eu sei”. Eu já sei, diz Rebora, eu já entendo, mas mesmo assim urge a terrível escolha. É justamente nessa dramaticidade que está a diferença entre o humano e o subumano, pois é nessa dramaticidade que o nível da natureza que se chama homem vive sobressaltado, e vive em meio a um vai-e-vem de pensamentos e sentimentos que, porém, sempre voltam ao nó da questão, ou seja, à intuição que já veio à tona.

***

Para o homem, cada momento começa e se encerra igual e desigual. Ele sempre se ilude achando que o drama se suspende, que o drama cessa, porque consegue fixar o termo ideal, a composição última da grande questão. Mas o tempo continua a existir, e esse tempo é o contrário da realidade subumana, sem sentimento. O tempo continua a existir, de modo tal que não cessa o seu tormento, “continua o meu sobressalto/ a todo tempo”.
Mas Rebora diz a mesma coisa numa poesia ainda mais sugestiva, uma de suas mais belas, Maternidade de Maria:

O cimo do freixo
aprova, desaprova,
em lenta avaliação,
o vai-e-vem do vento;
e no final sempre afirma
a tendência suprema ao céu:
lembra assim o cume da alma,
que da Divina Pessoa
se aproxima ou se afasta
no trânsito do tempo
rumo a um vértice eterno;
e misericordiosamente, a cada vez,
se confirma a união de amor
para a unânime glória.
([9 de outubro de] 1955)


***

O Deus escondido, “o evanescente Deus” - como dirá num outro poema - é o nível em que “o tronco da realidade” se abisma, é a verdade. Assim, toda a energia que o homem Clemente Rebora punha na colaboração com a realidade que julgava ser positiva lentamente se polariza para um tender a buscar o rosto desse Deus escondido.
Sua vida se transforma num tender a tirar o máximo possível de véus desse Deus escondido, num tender para Deus. Quero ler os dois trechos que considero os mais belos de toda a sua obra. O primeiro se intitula Gira o pião vivo.

Gira o pião vivo
Sob a correia, graças à correia;
Deixado a si mesmo, jaz inerte,
Grudado à terra, odiando a terra;

Enquanto jaz, olha para o chão;
Todas as coisas estão paradas,
E ele inveja o movimento, espreita o desconhecido;
Mas, quando se apóia num único ponto,
À medida que segue se fixa,
E percebe o entorno, vê seu entorno;

Seu círculo máximo está no alto,
Se ergue a cabeça, se sustenta o corpo;
No ar límpido ele fica em evidência,
Se levanta o corpo, se eleva a cabeça;

Gira - e o mundo multicor
Funde em sua brancura
Todos os contornos, todas as cores;
Gira - e o mundo desunido
Envolve em sua pureza
Todos os corações, por todos os dias;

Vive o pião e gira,
A correia Deus, a correia é o tempo:
O pião assim respira
O amor, rumo ao eterno.


E logo em seguida, a poesia mais bela de todas: Da imagem tensa. O mundo é como uma imagem que faz tender, que chama a algo além dele mesmo.

Da imagem tensa
Vigio o instante
Com iminência de espera -
E não espero ninguém:
Na sombra acesa
Espio a campainha
Que espalha imperceptível
Um pólen de som -
E não espero ninguém:
Entre quatro paredes
Estupefatas de espaço
Mais que um deserto
Não espero ninguém:
Mas deve vir,
Virá, se eu resisto
[se eu sou coerente com a minha natureza]
A desabrochar sem ser visto,
Virá de repente,
Quando menos o esperar:
Virá como perdão
De tudo o que faz morrer,
Virá para me dar a certeza
Do seu e do meu tesouro,
Virá como restauro
Das minhas e das suas penas,
Virá, talvez já esteja vindo
O seu murmúrio.


Mas esse tender, que leva Rebora a um empenho religioso que prevalece sobre qualquer outro empenho, ou, melhor dizendo, a um empenho religioso que penetra qualquer outro empenho de sua vida, faz com que ele perceba cada vez mais fortemente como existe, entre o homem que busca e o Deus que é buscado, uma condição triste - ele diz humilhante -, que é a morte: “Que o humilhante decompor-me vivo/ seja o indício da Tua vital chegada”. Sua tristeza não é mais um dado apenas negativo, é o ardor da espera de um ausente, como dizia Santo Tomás de Aquino. “Que o humilhante decompor-me vivo/ seja o indício da Tua vital chegada.” O homem se contorce na solidão, pois está sozinho nesse humilhante decompor-se vivo, e está sozinho também, contorcendo-se na solidão, nessa força virtuosa que traduz a decomposição no sinal de um ausente desejado que se aproxima. Mas tudo isso nos abre a um outro elemento que se destaca na poesia de Rebora, e que é a discussão que caracteriza toda a sua produção depois da conversão. Tal como o sol domina o panorama da realidade efêmera, a cruz domina o panorama da realidade que nunca acabará. Parece uma contradição, uma antinomia: a cruz, aceita como participação do Mistério. Mas não se trata de uma afirmação que permanece abstrata, desumana em sua abstração, ainda que continuemos a ter a tentação de reduzi-la a isso. De fato, a tentação humana é afirmar que tudo é mentira: “E se for uma ilusão?”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página