Vai para os conteúdos

Passos N.80, Março 2007

EXPERIÊNCIA - Dom Giussani (1922-2005)

Sem meias medidas

por Umberto Dell’Orto

Propomos, a seguir, alguns trechos tirados do longo ensaio de padre Umberto Dell’Orto publicado em La Scuola Cattolica , sob o título “O seminarista Luigi Giussani (1933-1945). Documentação e indicações historiográficas”. É o fruto de um paciente e valiosíssimo trabalho de pesquisa nos arquivos do seminário de Venegono.
Nestas páginas, veremos algo sobre o ingresso no seminário, o nascimento do Studium Christi e o relacionamento com os superiores


Desio, 12 de agosto de 1933
“Desio, 12 de agosto de 1933 – Reverendíssimo senhor Reitor. Um jovenzinho de Desio, muito bem preparado, chamado Luigi Giussani, filho de Beniamino, deseja ingressar como seminarista em S. Pietro M. Ele tem 11 anos, fez o exame do Estado e conseguiu uma boa classificação. No momento, a família encontra-se em dificuldade para pagar a anuidade, pois seu pai, que é carpinteiro, há um ano está sem trabalho. O senhor não poderia incluí-lo entre os beneficiários das bolsas de estudo deixadas como legado pelo falecido Preposto Missaglia em favor dos seminaristas de Desio, ou daquelas de Sua Santidade Pio XI? Pelo que estou sabendo, a família do supramencionado menino Luigi Giussani poderia, depois, com o trabalho do pai, assumir o encargo da anuidade. Não possuindo, no momento, o atestado do exame do Estado, incluo em anexo o atestado escolar de conclusão da quinta série do ensino fundamental. Na esperança de ter uma resposta favorável, saúdo-o com profundo respeito. Seu servo, padre Erminio Rovagnati Preposto”.
Cerca de dez dias depois dessa solicitação, outros documentos foram providenciados para o ingresso de Giussani no seminário. No dia 23 de agosto, o jovem Luigi escreveu um “afetuoso pedido” ao Arcebispo Schuster “para que se digne acolhê-lo no seminário de S. Pietro M. para fazer a primeira série ginasial”. (...) Assim, no dia 2 de outubro de 1933, Giussani deixa a casa de seus pais e ingressa no seminário de Venegono.

O que era o Studium Christi?
Quando fala do nascimento do Studium Christi no seminário, durante os anos de colegial, o tom de Giussani é carregado de emoção. À luz daquela amizade entre jovens tem início uma história que, ao longo do tempo, vai se espalhar por dezenas e dezenas de países e transformar a vida de milhares de pessoas 1 . Sobre essa experiência, que Massimo Camisasca, fundador da Fraternidade Sacerdotal de Missionários São Carlos Borromeu, apresenta como fundamental na formação e na sucessiva missão de Dom Luigi Giussani, destaco dois testemunhos. O primeiro encontra-se no julgamento de conduta, compilado pelo reitor Colombo ao final da segunda série do colegial (1939-40), escrito por Guido De Ponti, um dos grandes amigos de Giussani: “Ele sonha com grandes coisas, com amplas e novas formas de apostolado; entre os colegas fundou o grupo Christus, para o estudo e a imitação da pessoa do Redentor” 2 .
O segundo testemunho sobre o Studium Christi encontra-se num documento muito mais amplo. Trata-se de uma carta que teve uma trajetória tortuosa 3 . No dia 15 de março de 1943, os estudantes do II ano de Teologia Ruben Enrico Manfredini e Luigi Giussani, escreveram a um colega de curso, Michele Elli. Manfredini e Giussani se encontravam em Venegono – o primeiro, morava na comunidade de Teologia, e o segundo, como sabemos, junto com os colegias, como “prefeito” 4 . Elli também era “prefeito”, mas em Anzano al Parco (Como), para onde fora transferido, por causa dos bombardeios aéreos, o Colégio Villoresi de Monza. Ao ser enviada, de Venegono, a carta, antes de chegar ao seu destino, chegou às mãos do vice-diretor, padre Giovanni Premoli. Ao lê-la, padre Premoli a devolveu a Venegono, ao reitor Dom Francesco Petazzi, “por ter certas expressões um pouco estranhas”. A avaliação do vice-reitor é correta, como se pode constatar em primeira pessoa, lendo o texto que transcrevo, acompanhado de algumas notas esclarecedoras de pessoas e circunstâncias implicadas. Em primeiro lugar, eis a parte escrita por Mafredini, da qual eliminei alguns trechos que falavam sobre a preparação para os exames escolares, pois não dizem respeito ao argumento que estamos tratando:
“O Reino! Caro Michele, talvez você tenha pensado mal de mim, mas a culpa é do Giusi, pode ter certeza; para distraí-lo é um sacrifício; é só escapar um pouco da sua rotina diária, e ele já fica extremamente preocupado. Antes de tudo, peço que você vá com calma, porque na carta passada, que encontramos na caixa de correio da Teologia, junto com todas as outras correspondências 5 , para o público era até clara demais: mas Gius falará com você sobre isso, pois naquele dia (era uma carta inesperada, fora do comum) ele me pareceu mesmo muito preocupado, e foi logo falar com padre Galbiati 6 , pedir orientação e alguns esclarecimentos. No próximo dia 25 haverá aquele evento – primeiro, de manhã, para nós; depois, para os outros 7 . Gostaria de saber o que você, afinal, levou para S. Pietro da Conti 8 , porque padre Galbiati me falou da preocupação do padre Corbetta 9 ; mas não é nada sério. Logo que for possível escreveremos a Conti, explicaremos sobre o caderno, etc. Parece que Archimede está conosco: seria muito bom para nós, seja porque ele me parece um cara com boas idéias, mas também porque os C.S.G. da sua turma, sem pastor usque adhuc e um pouco travados pela frieza dos prefeitos, encontrariam a solução para a sua situação incerta 10 . O que você acha se ele, depois de amadurecer um pouco, entrasse para o nosso grupo? Nada mal, não? Aliás, as primeiras idéias sobre o Reino nasceram em conversas com ele, no colegial. Conversaremos mais, a respeito, também com Conti: creio que a resposta dele será afirmativa; no momento, porém, não há nada de concreto; vamos ver, parece que ele estará conosco... Eu te confesso, para minha vergonha, que tenho lido poucos artigos: há o Ecclesia?? 11 na sala de leitura, e vou lê-la; vou dar uma olhada também nos jornais universitários. Com a eventual ajuda de Archimede, as coisas vão melhorar. Elli G. 12 me parece que reclama um certo número de Osservatore e Azione Fucina, que você teria levado embora domino invito (roubado?) 13 . [...] Peço-lhe, por favor, algumas orações: o Reino é o Reino dos céus e nós, com tudo o que possuímos, sozinhos não valemos nada. Gius tornou-se um pouco mais humano e tratável; me parece que a gente está se entendendo melhor; há um certo progresso, claro. Saúdo-o e passo a pena a ele. Manfredini, dia 15 de março de 1943. Saudações ao padre Cervini 14 e ao padre 15 , inclusive aos meninos, que, apesar de tudo, consegui acompanhar naquele pobre mês, com muita boa vontade” 16 .
Eis agora, palavra por palavra, o que saiu da pena de Giussani:
Maranathà ! Michele, fiquei muito contente ao ler o que você escreveu: é um mês, acho, de comunhão espiritual. Em todo caso, perdoe-me se, por minha culpa, você teve que esperar tanto: provavelmente não será a última que eu apronto com você! Mas garanto que estou muito atarefado aqui: em 4 dias (as Sagradas Quarenta Horas), li poucas páginas de moral. O pouco que li foi durante um tempo roubado (minuto a minuto) das conversações com meus ‘homens’ 17 . ‘Você agora está na vida, não no estudo’, me disse padre Enrico 18 . Fides contém artigos maravilhosos. Comprei o Gonella 19 : procurarei usá-lo também para alguma outra coisa. E Möhler? Que homem, hein? A propósito da carta: vê-se que os pais de Viganò 20 a entregaram fora do envelope, no correio: por isso, passou pelas mãos do Monsenhor. Padre Galbiati me garantiu: já conversou com Monsenhor sobre algumas coisas. A verdade é que não fui chamado ao Palácio. Então é melhor que sempre a coloque no envelope, para ser entregue diretamente a mim. De qualquer modo, depois a mostrarei ao senhor reitor ou ao senhor vice-reitor. Só para abreviar as coisas. Mas se ficar inviável, não faz mal: creio que, no fundo, Monsenhor está contente. Você ouviu falar de De Ponti? Vamos ver (volta e meia vê o Studium X.). Vê-se que... estamos destinados assim. Um viva a nós, irmão; por Ele! Eu te peço que reze alguma Ave Maria no dia 25: também pelos meus Cavaleiros (padre Ronchi 21 será eleito Assistente de Departamento). Com afeto fraternal. Viva o Rei. Afetuosíssimo, Luigi Giussani”.

Gratidão pelo seminário
A gratidão pelo seminário e pelos padres do seminário, tão claramente expressa desde seminarista, ficou sendo uma dimensão permanente de Dom Luigi Giussani. A esse respeito, há muitos testemunhos deixados por ele que ecoam também nas páginas escritas por Camisasca. De minha parte, gostaria de registrar a solidez desse sentimento, que não foi afetado nem pelas recíprocas incompreensões e pelos desentendimentos que Giussani teve, entre o final dos anos 60 e início dos anos 70, seja com o Arcebispo de então (que já fora seu reitor no colegial), o Cardeal Giovanni Colombo, seja com os superiores do seminário. É justamente desse período uma breve carta que encontrei dentro de uma cópia do livro que continha, em forma reelaborada, a sua tese de doutorado 22 . Nessa carta, endereçada a um seu antigo professor, fazem-se alusões às tensões daqueles anos: “Reverendíssimo Bispo, permito-me encaminhar-lhe uma cópia do livro que a bondade dos meus superiores tornou possível fosse publicado. Agradeço-lhe muito pela benevolência que uma vez mais o senhor me manifestou, outro dia. E não duvide que a minha lembrança é sempre fiel, como quase 30 anos atrás. Se não fosse assim, nas minhas condições, quem sabe o que teria acontecido! Obrigado”.
Voltando às duas cartas escritas pelo seminarista Giussani, há outros dois trechos que merecem ser lidos. Antes de tudo, a parte central da primeira: “Porque eu o sinto tão perto de mim [o seminário] como se fosse minha própria família; nele, de fato, depois da família, conheci pessoas santíssimas diante de Deus e da Igreja, que me sensibilizaram com seu amor e com sua obra educadora”. Se aproximarmos essas palavras daquelas pronunciadas pelo Cardeal Ratzinger no homilia do funeral de Dom Giussani, ficamos impressionados com a límpida afinidade existente entre elas. “Deste modo, entendeu que o cristianismo não é um sistema intelectual, um pacote de dogmas, um moralismo, mas que o cristianismo é um encontro, uma história de amor, é um acontecimento” 23 . Entre as palavras da carta e as da homilia intercorrem mais de 60 anos. Pois bem, durante todos esses anos, o modo – aprendido no seminário e, antes, na família – de compreender e de viver a relação com Deus e com a Igreja, isto é, o cristianismo, permaneceu, em Dom Giussani, substancialmente inalterado.
Identificamos, assim, uma sua segunda dimensão permanente.
Depois de ler e compreender o trecho central da primeira carta, façamos o mesmo exercício com a segunda parte da carta de 7 de julho de 1944, escrita a Dom Petazzi por ocasião do subdiaconato: “Pois a lembrança do Ato – desejado e bendito – que me tornou para sempre Unum, inclusive juridicamente, com o meu Senhor Jesus, jamais estará dissociada do pensamento da sua figura de Pai venerado e do poderoso estímulo de algumas palavras que me foram ditas há algumas semanas, mas que permanecem claras e vigorosas em minha alma e que sacramentam os propósitos dos meus santos Exercícios Espirituais: ‘Lembre-se: sem meias-medidas!’. É a graça que todo dia peço e pedirei a Jesus Sacramentado e a Nossa Senhora. Que elas se tornem um programa eterno”.
“Sem meias-medidas”: essa é a expressão mais correta para descrever o estilo da personalidade, da proposta educacional, das palavras, das escolhas de Dom Giussani. Ele permaneceu fiel ao compromisso assumido quando tinha 22 anos de idade, quase ao final do seu período de formação no seminário. (...).

(O texto integral está publicado no n. 1 – ano CXXXIV, janeiro-março de 2006, pp. 45-71, de La Scuola Cattolica, revista teológica do seminário arquiepiscopal de Milão. A numeração das notas não corresponde à do texto original??).

“Caríssimo Dom Giussani, nós o carregaremos conosco, na nossa memória, por toda a vida! Jamais conseguiremos esquecer a febre de vida que experimentamos ao seu lado. O seu olhar jamais desaparecerá dos nossos olhos. Aquele olhar através do qual nos sentimos olhados por Jesus. (...) Foi assim que ele nos gerou em Cristo. Foi mesmo uma geração, uma paternidade! Por isso não conseguiremos mais viver o relacionamento com Jesus, fazer memória dEle, consistência de toda a realidade, sem pensar em Dom Giussani. Agora mais do que antes. Nós o lembraremos para sempre ao lado dEle, de Jesus, quando nos levantarmos de manhã, quando formos trabalhar, quando virmos o pôr-do-sol ou nos relacionarmos com a mulher, o marido ou os filhos. A nossa fé em Jesus foi e é plasmada pela presença de Dom Giussani, pelo seu olhar, pelo seu ímpeto de vida. (...) A unidade entre nós é o dom mais precioso que nasce da acolhida dessa iniciativa. Peço a graça, pela responsabilidade a mim confiada por Dom Giussani, de poder servir a este dom da unidade. Tenho certeza de que se formos simples no seguir, sentiremos Dom Giussani mais pai do que nunca”
(Julián Carrón, no encerramento do funeral de Dom Giussani, 24 de fevereiro de 2005)


Notas


[1] M. Camisasca, Comunione e Liberazione. Le origini (1954-1968), San Paolo, Cinisello Balsamo 2001, p.68
[2] Arquivo histórico de Venegono: H-IV-12, fasc. 2, seção “Guido De Ponti”, folha com os julgamentos do reitor.
[3] A documentação analisada encontra-se em Ordenados de 1945, seção “Luigi Giussani”, carta de padre Premoli a Dom Petazzi, s/d, e carta de Manfredini e Giussani a Elli, 15 de março de 1943.
[4] Uma espécie de bedel, ndt.
[5] Naquele ano, Viganò Gianfranco, originário de Meda, freqüentava a quinta série do ginásio em Venegono. Elli, também proveniente de Meda, deu uma carta aos seus pais, que terminou não nas mãos dos destinatários, mas, segundo expressão de Manfredini, “na caixa de correio da Teologia, junto com todas as outras correspondências” (portanto, vista pelo reitor Dom Petazzi).
[6] Trata-se de padre Enrico Galbiati, professor de Sagrada Escritura, de Grego bíblico e de Teologia oriental que, como se entenderá continuando a leitura, teve um papel de mediador entre os superiores do seminário e o grupo coordenado por Giussani e Manfredini.
[7] Trata-se dos seminaristas de Teologia residentes na comunidade teológica (“primeiro, para nós”) e os colegiais (“depois, para os outros”). Sobre qual “evento” se trata não foi possível formular nenhuma hipótese.
[8] Bruno Conti estudava no mesmo curso que Manfredini e Giussani (II ano de Teologia) e era prefeito no seminário menor de Seveso S. Pietro.
[9] Professor no seminário de Seveso S. Pietro.
[10] Para mim permanece inexplicável quem seja Arquimedes, o que significa a sigla C.S.G. e quais difíceis relações comunitárias se faz referência.
[11] Com esta citação Manfredini começa a comunicar as suas leituras pessoais, assim como o fará também Giussani, citando a revista Fides e textos de dois autores que são Guido Gonella e Johann Adam Möhler.
[12] Elli Giuseppe, que também pertence ao curso de Giussani, cumpre o segundo ano de Teologia, permanecendo na comunidade teológica de Venegono.
[13] Este chamado de atenção é compreensível, visto que Michele Elli havia saído de Venegono para estudar em Anzano al Parco duas semanas antes, no final de 1943.
[14] Padre Giuseppe Cervini, vice-reitor do Colégio Villoresi, junto com Dom Premoli.
[15] O padre espiritual do Colégio era padre Angelo Cermenati, que de 1937 a 1941 foi vice-reitor no Ensino Médio de Venegono e, portanto, era bem conhecido por Manfredini e Giussani.
[16] Manfredini havia sido prefeito do Colégio de Monza no mês de agosto de 1942.
[17] Provavelmente a referência é aos seminaristas do colegial, entre os quais, como sabemos pelo julgamento do reitor Colombo, o prefeito Giussani atuava ativamente.
[18] Ver nota 6.
[19] A referência provável é ao texto de G. Gonella, Pressupostos de uma ordem internacional. Notas sobre as mensagens de S.S.Pio XII, Ed. Civitas Gentium, Cidade do Vaticano 1942.
[20] Ver nota 5.
[21] Padre Ugo Ronchi era vice-reitor do Ensino Médio no seminário de Venegono.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón