Soldados, escavadeiras, comida lançada por helicópteros. O terremoto apontou os refletores para a ilha. Mas a situação de emergência, ali, já tem mais de meio século. Há anos, a Fundação AVSI aposta numa “dignidade que é preciso descobrir” e numa presença capaz de devolver a esperança. Eis como podemos compartilhá-la
Com o terremoto, os jornais descobriram o Haiti. Num instante, tomaram consciência desse desventurado país. E também dos que, há anos, compartilham as dramáticas condições da população. Como os voluntários da AVSI, fundação de serviço internacional que está presente na ilha desde 1999.
Desde o dia do tremor de terra, Fiammetta Cappellini, cooperadora da AVSI no Haiti, tem relatado cotidianamente o que ocorre lá, o que tem sido uma ajuda para todo o povo e os organismos de ajuda, pois Fiammeta e seus colaboradores têm profundo conhecimento do território haitiano e das necessidades daquela gente. O que, pelo contrário, era desconhecido do resto do mundo. “O Haiti está em situação de emergência há meio século”, explica Alberto Piatti, o secretário geral da AVSI. “Entre 1962 e 1963, o presidente norte-americano John Kennedy criou uma agência para ajudar este desventurado país, que estava sendo atingido por uma crise alimentar gravíssima.” Desde então, infelizmente, aconteceu uma sequência de desastres: os ditadores, os furacões, agora o terremoto. Hoje há um desembarque em massa na ilha, mas depois o que acontecerá? “Podemos dizer que esta é a emergência das emergências, mas este momento deve se tornar um divisor de águas. Uma ocasião para mudar”, prossegue Piatti.
Certamente a situação é dramática: 230 mil mortos, talvez até mais, milhões de desabrigados e crianças órfãs que vagam pelas ruas. A catástrofe do Haiti não precisa de adjetivos. Mas justamente por isso é necessária uma análise lúcida e desprovida de retórica. Maria Teresa Gatti, responsável pela AVSI na América Latina e no Caribe, reforça os conceitos expressos por Piatti: “É chegado o momento de escolher”. Escolher o quê? “O Haiti está repleto de ajudas, de soldados de todo o mundo. Isso é muito bom, porém, devemos refletir sobre os erros cometidos no passado.” Uma certa lógica é preciso prevalecer. “Os soldados são utilíssimos, mas não são tudo. Os mercenários do humano fazem muito bem o seu trabalho, ajudam as populações sofredoras, distribuem recursos e alimentos. Mas não fazem decolar a reconstrução”, enfatiza Maria Teresa.
Arroz três vezes ao ano. Eis o ponto fundamental, segundo os responsáveis pela AVSI: ajudar os haitianos a tomar nas mãos o destino do país. Pode soar como um slogan, é o mote deste 2010, que pode ser chamado de ano zero da infeliz república. “Nós podemos dar ajuda, alimentos, bebidas, carvão, mas são eles que têm que se mobilizar.” Sim, o Haiti só pode ter esperança se aprender a se virar. Ou melhor, arregaçar as mangas. Pensar no próprio amanhã. Sonhar finalmente com um futuro. “Os haitianos são presas dos eventos há muitas décadas. Agora lhes caiu sobre a cabeça esse terrível terremoto. O desastre é grande demais para ser metabolizado como os outros, e isso obriga a dar um passo”, insiste Maria Teresa. Levantar-se após ter tocado o fundo do poço. Como? “Certamente não com os pacotes de alimentos ou com os porta-aviões ancorados na costa”, responde Piatti. E então?
Piatti e Gatti dão um passo atrás: “Estamos presentes no Haiti há 11 anos. Nossos agentes trabalham em duas favelas de Porto Príncipe, lecionam, educam, dão assistência aos jovens, e também atuam na fazenda experimental de Les Cayes, no sudoeste do país, onde se formam agricultores e está sendo construído um aqueduto. O ponto-chave é acompanhar essas pessoas, que desenvolvem suas próprias capacidades, competências, habilidades”.
Em síntese: mais trabalho, mais instrução, mais escola, mais creches e institutos profissionalizantes. “Damos um exemplo: em Les Cayes demonstramos que é possível colher o arroz três vezes por ano. Uma revolução. Mas hoje o Haiti importa 60% dos produtos agrícolas que consome, em grande parte o próprio arroz.” Em suma, o terremoto deu o golpe de misericórdia num sistema que já não funcionava. Agora, o imponente e imprevisto esforço humanitário pode ser colocado a serviço desse renascimento. “Há em todo homem uma inata dignidade. Uma dignidade que deve ser despertada, formando as novas gerações e construindo relações humanas e sociais mais fortes”, prossegue Piatti.
“Amanhã também estaremos aqui” Hoje, nas infindáveis favelas da capital, a taxa de violência é altíssima. Altíssima também a mortalidade infantil. Bem como a desnutrição. E o esfacelamento do tecido humano. “É inútil encher os haitianos de comida; claro que é preciso matar-lhes a fome, mas só isso não resolverá os seus problemas. Devemos, sim, enchê-los de sabedoria, de esperança, de desejo de mudança. E devemos encaminhá-los para a boa estrada da educação, do trabalho, da luta contra o desemprego.” O exemplo do arroz pode ser instrutivo. E pode ser repetido para o café, para o cacau; em perspectiva, também para o turismo.
Do contrário, repetiremos o fracasso já visto: a coalizão dos voluntários, que acorreram do mundo todo, ainda que com uma inevitável dose de confusão, chegará à ilha, botará as escavadeiras para trabalhar, construirá alguma infraestrutura (aliás, utilíssima num país onde falta tudo), mas depois, segundo o velho modelo, se retirará com o rabo entre as pernas. E entregará de volta a ilha aos seus senhores: a fome, a violência, a miséria mais triste, exagerada até para os padrões da África negra. A ironia é que a capital, Porto Príncipe, fica a uma hora e quinze minutos, de avião, de Miami e da ultracivilizada América do Norte.
“Estávamos aqui antes do desastre, os nossos agentes estavam no Haiti no dia do terremoto. E continuaremos aqui também amanhã. E seguiremos adiante com o nosso método de trabalho, sem pretensões, mas baseados na experiência acumulada”, retoma Maria Teresa.
A presença entre os pobres mais pobres da capital, o trabalho em favor da agricultura. A mão estendida às crianças, emergência dentro da emergência. “Uma menina disse à nossa Fiammetta: amanhã volte a me ver, pois entendi que você me quer bem”, conta Piatti. Todos, naturalmente, querem bem às crianças do Haiti, mas ainda uma vez a emoção deve ceder lugar para o respeito e o realismo. E Maria Teresa conclui: “É importante que as crianças, abrigadas há meses ou anos nos orfanatos, encontrem finalmente uma família, na França, nos EUA, e também na Itália. Mas há todas as demais, a maioria: é preciso calma porque a situação muda cada dia. E muitos meninos que pareciam ter ficado órfãos já encontraram seus pais ou algum parente. Nós temos mais de mil adoções à distância; esse número pode se multiplicar, com 312 euros (cerca de 800 reais) ao ano, um euro ao dia, podemos garantir o futuro de um desses pequenos cidadãos. Nós queremos desenvolver nossos projetos lado a lado com a população, com os adultos e com as crianças. Quem puder, quem apreciar o nosso trabalho e o nosso desejo de compartilhamento com os haitianos, nos ajude. E ajude a todas aquelas entidade que atuam do mesmo modo. Enviar alimento e dinheiro às cegas não ajuda. Só cria fragorosas ilusões. E, então, juntemo-nos aos haitianos, precisamos ajudá-los a se ajudarem. É esse o caminho, o único capaz de dar uma chance a um país que quer começar a existir”.
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