Passos N.78, Dezembro 2006

DESTAQUE - EXPERIÊNCIA

[Ciência]
Racional não é só o mensurável

por Giancarlo Cesana

Mesmo no campo científico, a experiência não pode se limitar ao que é verificável, porque o homem busca um sentido global na realidade. Uma contribuição a partir do estudo da história da Medicina

Fui convidado a falar sobre o valor da experiência no campo científico, em particular na história da Medicina. Pode ser, mesmo, uma abordagem útil, tendo em vista as preocupações expressas pelo Papa em Regensburg, depois no Congresso da Igreja italiana em Verona e, por último, na abertura do ano acadêmico na Universidade Lateranense. O Papa enfatizou que no Ocidente, por causa da influência das ciências experimentais, a razão vem sofrendo uma indevida redução. Nos ambientes culturais e intelectuais, considera-se racional somente o que, de alguma maneira, é mensurável. Todo o resto, tudo o que não é objetivamente mensurável, pertence à fé subjetiva ou, no máximo, como dizia Popper (o mais popular filósofo da ciência do século passado), às razões “outras”, também não definidas.

O caso Galileu
De fato, sobretudo depois de Galileu, inclusive por causa da condenação eclesiástica que ele sofreu, o conhecimento evoluiu a partir de uma aparentemente irredutível divisão: de um lado, o conhecimento científico, válido para todos; do outro, o conhecimento pela fé, válido só para os que a têm. Como se sabe, Galileu – por causa da sua adesão às teorias segundo as quais a Terra é que girava em torno do Sol, e não o contrário – foi obrigado a se retratar, porque essas teorias contradiziam a Escritura e a tradição; Galileu, que era um bom católico (uma de suas irmãs era freira), concordou em retratar-se, mas acrescentou a famosa expressão “Mas que ela se move, se move”, referindo-se à Terra. Sua intuição não era demonstrável em sua época, e a posição da Igreja tinha suas justificativas. Todavia, como o progresso dos estudos astronômicos demonstrou a exatidão da intuição galileana, a posição da Igreja foi tachada de obscurantista e de subjetiva, não adequadamente demonstrável pela experiência. É isso, a experiência ficou limitada ao que pode ser provado, sem possibilidade de se ir além, na procura de um sentido global da realidade. E mais: o que é provado também é contingente e provisório, inclusive as inferências de caráter geral – por exemplo, as leis da Física –: valem enquanto alguém não prova o contrário. Assim, analogamente, tudo – o universo, o mundo, o eu – torna-se contingente e provisório, e quem diz uma verdade ou expressa uma esperança o faz em termos no máximo sugestivos, nunca obrigatórios ou válidos para todos.

A experiência da doença
O objeto de estudo da Medicina é a doença. Não é um objeto “frio”, como o da Física ou da Matemática; é dramático e até perigoso, não só para o doente, mas também para quem cuida dele: aproximar-se dos doentes significou, durante muitos séculos, expor-se ao contágio. Howard Ricketts morreu em 1910, na Cidade do México, ao evidenciar as “rickettsias”, agentes do tifo infeccioso. Assim, nos tempos antigos os empesteados costumavam ser evitados ou até afastados do convívio social. Para que os doentes passassem a ser acolhidos e assistidos, foi necessário o aparecimento do cristianismo, foram necessários os monges, que criaram conventos ou lugares de hospitalidade para os pobres e os enfermos, os quais começaram a ser vistos e tratados “como o próprio Cristo”. Depois, definitivamente, Guido de Montpellier fundou a Ordem Hospitaleira do Espírito Santo, reconhecida pelo Papa Inocêncio III, em 1198, apoiada e divulgada pela Igreja.
Os hospitais civis apareceram muito tempo depois; de qualquer modo, sem frades e sem freiras não teria havido serviços de enfermagem, que por séculos foi praticamente a única forma de alívio para os enfermos, dada a impotência dos médicos. Sem o anúncio da ressurreição de Cristo, a doença era o início do fim, maldição, que levava as populações a esconjurar o deus maldito que as provocava. Com a ressurreição de Cristo, a doença não é mais a palavra definitiva sobre a vida, e a esperança não foi descartada por causa do risco da morte.
Claro que, para correr esse risco, enfrentar a doença e cuidar dos doentes enfrentando a ameaça do contágio, não bastava uma idéia ou um sentimento; era indispensável uma experiência, uma experiência nova de humanidade e de conhecimento, não contraditório com a razão, porque a abre, torna-a mais poderosa, isto é, capaz de não se deter frente ao limite doloroso e “insanável” da existência humana.

O estudo da Medicina
Além dos hospitais, também não teriam nascido as universidades, lugares modernos onde se desenvolve a ciência, nascidos justamente por causa do ímpeto de se buscar a verdade de tudo (uni-versitas), tendo em vista a unidade do saber. A abadia de Montecassino deu origem à Escola de Salerno, a primeira escola médica, semente das futuras universidades de Bolonha, Paris, Cambridge e Oxford, todas realizadas sob o impulso eclesiástico. Com a evolução da Medicina, agora estamos estudando o cada vez menor (passamos dos órgãos aos tecidos, depois às células até as moléculas). A doença corre o risco de se “desencarnar” do doente e ser buscada numa desordem microscópica, que seria a sua causa verdadeira. Todavia, contra esse reducionismo biológico e tecnológico, o doente – todo doente – continua a exigir ser tratado como “unidade” não só física, mas como um conjunto de necessidades. As tendências mais absurdas nas aplicações médicas, como a pesquisa sobre os embriões e a própria eutanásia, são justificadas como tentativas de buscar mais perfeição e felicidade, mesmo chegando ao ponto de matar um ser vivo, quando a perfeição e a felicidade não são possíveis. Nas atividades de programação da Saúde, todos – todos, mesmo – proclamam que no centro deve estar o doente, a pessoa, que fala mais alto do que uma desordem biológica.
Como foi discutido num recente documento do Conselho de Bioética do presidente dos Estados Unidos, Beyond Therapy, são esperados do progresso da Medicina, além da libertação das doenças, crianças melhores, condições físicas e psicológicas mais eficazes, prolongamento da vida e, por que não?, uma vida mais feliz.
Em conclusão, são dois os casos. O homem se mete no lugar de Deus, embora não o seja, e assim acaba provocando desastres; ou, mesmo no âmbito da ciência, procura-se Deus para entender o sentido da própria ação. Essa última é a sugestão do Papa, esse é o ensinamento da história da Medicina, que sempre se ocupou de homens exaustos e que suplicam – antes, gritam – por socorro.