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Passos N.78, Dezembro 2006

DESTAQUE - EXPERIÊNCIA

[Lingüista]
O caminho para se conhecer a realidade

por Stefano Zurlo

“Ex-perior”, isto é, o itinerário da razão, que se mistura com a realidade e daí sai mudada, crescida. Esse o significado da palavra experiência. Falamos desse assunto com um professor universitário de lingüista

Eddo Rigotti é professor de “Comunicação verbal e Argumentação” na Universidade de Lugano (Suíça). Ele nos ajuda a submeter ao microscópio toda a complexidade semântica que se encerra no vocábulo experiência.
Experientia é formada pelo ex, prefixo que quer dizer “fora de”, e por perientia, que nasce da antiga raiz indoeuropéia “para” e do latim arcaico perior (tentar). Rigotti passa de professor a viajante: ele move-se entre letras e consoantes, descobre significados, nuances, semelhanças, ouve sons e ecos, como se estivesse diante de um instrumento musical, e assim chega a captar referências e ligações surpreendentes, salta de uma palavra a outra seguindo o fio oferecido pela linguagem, pelo pensamento, pela realidade. Um exercício entusiasmante. E assim analisa, pela enésima vez, a aula magistral dada por Bento XVI na Universidade de Regensburg. Temos, então, como que uma coleção onde brilham experiência, realidade e racionalidade. Eis o grande nexo, a encruzilhada que é preciso atravessar antes de reler a aula do Papa alemão: “Razão e realidade se encontram na experiência”.

Ponto decisivo
A viagem prossegue: “A experiência indica a posição de quem atravessa a realidade e se submete a uma prova”. Neste ponto, a sonda lança um bip: tocou-se num ponto decisivo.
O que significa atravessar a realidade, esse outro-de-mim com quem devo me confrontar, que me põe à prova? Rigotti sorri, olha para fora, para além das vidraças do restaurante encravado entre as nuvens que dominam o lago de Lugano; e decide não dar apenas uma, mas três respostas: “A prova não é difícil, dura, própria de quem segue um raciocínio, uma demonstração lógica. Não, aqui se fala da perigosa travessia da realidade”. Perigosa? “Claro, a realidade não é um piso congelado sobre a qual a gente pode patinar, deslizar suavemente. A viagem esconde o periculum, palavra que não por acaso pertence à mesma família da experiência e deriva da mesma raiz per. O periculum está no fato de sermos colocados à prova, daí o risco e o perigo. Não existe aventura sem periculum, não se sabe como irá terminar: quem decide é a realidade, não a nossa cabeça; mas é preciso correr o risco, vale a pena. O perito é aquele que aprendeu, saiu da realidade com uma competência especial, mudou em relação ao que era antes, cresceu”.
Em suma, a experiência é, sim, uma busca persistente, mas não um acúmulo banal de tentativas, como em geral nos sugere a sensibilidade contemporânea. Não podemos conquistá-la, no confronto com as coisas, simplesmente acumulando sensações e emoções, como se fôssemos um armazém, um depósito.
Não é nada disso; o desafio a que somos chamados é outro: “A experiência é um confronto com a realidade, é um mergulhar na realidade. A realidade, como vimos, esconde ciladas e nos oferece surpresas. É um grande livro que precisa ser lido; para isso, precisamos de óculos especiais, estar aparelhados para compreendê-la, para que ao final a gente possa sair dela com a mochila cheia. Se a mochila estiver vazia, então não houve experiência, mas alguma outra coisa muito menos nobre”.

Hipóteses a verificar
Rigotti faz uma nova pausa e em seguida prossegue: “É claro que não podemos partir para a viagem sem nada. A experiência requer que, já na partida, tenhamos uma hipótese a ser verificada, e a formulação de hipóteses é tarefa da razão, ou melhor, da nossa racionalidade. A razão constrói, a partir dos dados de que dispõe, uma estrutura provisória, que é colocada à prova durante o nosso itinerário. No final, avaliamos o resultado. Pode ser que o nosso ponto de vista seja confirmado, ou que não se sustente, ou que precise de correções. O que importa é compreender o que as coisas nos mostram e nos falam. O importante é estar predisposto, é que a nossa razão esteja pronta para compreender; é sermos leais com o que acontecer, com aquilo que encontrarmos.
A experiência, se for levada até o fim, nos faz compreender o destino, o significado último da realidade, da sua transparência última. Mas se eu parto com a cabeça baixa, sem ligar as antenas, se eu não estiver disposto a aprender, a arriscar, a correr o risco de me perder num território desconhecido, então o resultado será decepcionante. Aí não me tornarei especialista nem perito. Aquele que completou a viagem e desenvolveu uma determinada competência, é porque alcançou a meta. Do contrário, serei apenas um ser que age freneticamente, sem crescer, sem amadurecer a personalidade, sem ser capaz de encontrar verdadeiramente o reflexo último das coisas. Então, apenas deslizará na realidade, sem chegar a possuí-la”.

Colocar em jogo toda a nossa pessoa
Rigotti agora consulta o discurso do Papa em Regensburg; claro, no original alemão. “Não poderemos entender o discurso de Bento XVI se não entrarmos no círculo virtuoso formado por estas palavras: a experiência é o caminho que nos leva a conhecer a realidade e sua benevolência última, a sua positividade; mas para chegar a esse nível precisamos colocar em jogo toda a nossa personalidade e toda a nossa razão, sem reduções e sem preconceitos. Do contrário, seremos derrotados já na partida”. Do contrário, nos enroscamos numa das infinitas objeções que há séculos transformaram esse caminho numa vereda estreita, quase inacessível. Mas, segundo o estudioso, existe a possibilidade de levar a bom termo a travessia: “O Papa nos diz que fé e razão habitam a mesma casa e estão a serviço do homem, para que o homem possa alcançar os cumes límpidos sonhados por seu espírito. Há a vida toda para cumprirmos essa jornada, e há muitos postos de ajuda disseminados pelo caminho. Seriam como que abrigos, postos de recuperação, como aqueles que existem ao longo das auto-estradas. A primeira e mais importante é a cultura: a estrutura benévola com que a realidade nos acolhe. Cada povo elaborou uma cultura própria: logo ao nascermos nos é entregue uma mochila cheia de informações, sugestões e códigos, que devemos usar no momento em que nos confrontarmos com as coisas. Devemos carregar nas costas essa mochila e ir adiante, confiantes”. Aquela palavrinha de apenas duas letras, ex, indica que ao final da etapa, de cada etapa, e quando chegarmos ao abrigo, poderemos serenamente fazer um balanço da expedição. E assim teremos dado um passo adiante. Inclusive na estrada do diálogo com os outros, com o nosso próximo, com outros povos e religiões.

O distanciamento crítico de Bento XVI
Rigotti faz uma última advertência: “Só quem faz uma experiência verdadeira, só quem vai até o fim, pode estabelecer um diálogo. Isso vale para as pessoas, para as religiões e para as culturas. O Papa deixou isso bem claro, na segunda parte da conferência que fez na Universidade de Regensburg”. O curioso é que essa palestra despertou muita polêmica, discussões e até exigências de pedido de desculpas. Rigotti conclui: “Permito-me uma breve observação: quando Bento XVI relembra a pergunta sobre Maomé feita por Manuel II ao sábio persa, o Papa recorda que a pergunta foi colocada de um modo surpreendentemente brusco ao interlocutor. Atenção, esse adjetivo brusco é uma tradução frágil, pouco persuasiva, do original alemão schroff, que expressa muito mais o distanciamento crítico que Bento XVI fez questão de tomar em relação ao pensamento do imperador bizantino. Há nessa palavra alemã uma idéia de agressividade, de aspereza, que não fica tão clara nas traduções. Eu traduziria schroff por “odiosamente frio”. Perguntei a um colega alemão que me descrevesse uma figura que, em seu modo de agir, pudesse ser descrita como schroff; e ele me descreveu que o termo pode lembrar a atitude de um oficial das SS (polícia política de Hitler), tal como aparece caracterizado nos filmes sobre a Segunda Guerra”.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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