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Passos N.75, Agosto 2006

DOCUMENTO

Família, garantia de um patrimônio de tradições

por Bento XVI

Homilia do Papa na missa de encerramento do V Encontro Mundial das Famílias. Valência (Espanha), 9 de Julho de 2006.

Queridos irmãos e irmãs, nesta Santa Missa que tenho a imensa alegria de presidir, concelebrando com numerosos irmãos no episcopado e com um grande número de sacerdotes, agradeço ao Senhor por todas as amadas famílias que estão congregadas aqui, formando uma multidão jubilosa, e também por tantas outras que, de distantes terras, seguem esta celebração por meio da rádio e da televisão. Desejo saudar a todos e expressar meu grande afeto com um abraço de paz. Os testemunhos de Ester e Paulo, que escutamos antes nas leituras, mostram como a família é chamada a colaborar na transmissão da fé. Ester confessa: “Meu pai me contou que tu, Senhor, escolheste Israel entre as nações” (14, 5). Paulo continua a tradição de seus antepassados judeus, dando culto a Deus com consciência pura. Louva a fé sincera de Timóteo e lhe recorda que “essa fé que tiveram sua avó Loide e sua mãe Eunice, e que estou seguro que tens também tu”
(2 Tim 1, 5). Nestes testemunhos bíblicos, a família abrange não só pais e filhos, mas também avós e antepassados. A família se mostra assim como uma comunidade de gerações e como garantia de um patrimônio de tradições.
Nenhum homem deu o ser a si mesmo, nem adquiriu por si só os conhecimentos elementares para a vida. Todos recebemos de outros a vida e as verdades básicas para a mesma, e somos chamados a alcançar a perfeição em relação e comunhão amorosa com os outros. A família, fundada no matrimônio indissolúvel entre um homem e uma mulher, expressa esta dimensão relacional, filial e comunitária, e é o âmbito onde o homem pode nascer com dignidade, crescer e desenvolver-se de um modo integral. Quando uma criança nasce, pela relação com seus pais começa a fazer parte de uma tradição familiar, que tem raízes ainda mais antigas. Com o dom da vida recebe todo o patrimônio de experiência. A este respeito, os pais têm o direito e o dever inalienável de transmiti-lo aos filhos: educá-los na descoberta de sua identidade, iniciá-los na vida social, no exercício responsável de sua liberdade moral e de sua capacidade de amar por meio da experiência em que acolhem com confiança esse patrimônio e essa educação que vão assumindo progressivamente. Deste modo, são capazes de elaborar uma síntese pessoal entre o recebido e o novo, e que cada um e cada geração é chamada a realizar.
Na origem de todo homem e, portanto, em toda paternidade e maternidade humana, Deus Criador está presente. Por isso, os esposos devem acolher a criança que lhes nasce como filho não só seu, mas também de Deus, que o ama por si mesmo e o chama à filiação divina. Mais ainda: toda geração, toda paternidade e maternidade, toda família tem seu princípio em Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo.
A Ester, seu pai havia transmitido, com a memória de seus antepassados e de seu povo, a de um Deus do qual todos procedem e ao qual todos são chamados a responder. A memória de Deus Pai que escolheu seu povo e que atua na história para nossa salvação. A memória desse Pai ilumina a identidade mais profunda dos homens: de onde viemos, quem somos e quão grande é a nossa dignidade. Viemos certamente de nossos pais e somos seus filhos, mas também viemos de Deus, que nos criou à sua imagem e nos chamou a ser seus filhos. Na origem de todo ser humano não existe a sorte ou a casualidade, mas um projeto do amor de Deus. É o que nos revelou Jesus Cristo, verdadeiro Filho de Deus e homem perfeito. Ele conhecia de quem vinha e de quem viemos todos: do amor de seu Pai e nosso Pai.
A fé não é, pois, uma mera herança cultural, mas uma ação contínua da graça de Deus que chama, e da liberdade humana que pode ou não aderir a este chamado. Ainda que ninguém responda por outro, contudo, os pais cristãos são chamados a dar um testemunho confiável de sua fé e esperança cristãs. Hão de procurar que o chamado de Deus e a Boa-Nova de Cristo cheguem a seus filhos com maior clareza e autenticidade.
Com o passar dos anos, este dom de Deus com o qual os pais contribuíram, pondo-o ante os olhos dos pequenos, necessitará também ser cultivado com sabedoria e doçura, fazendo crescer neles a capacidade de discernimento. Deste modo, com o testemunho constante do amor conjugal dos pais, vivido e impregnado da fé, e com o acompanhamento afetuoso da comunidade cristã, se favorecerá que os filhos façam seu o próprio dom da fé, descubram com ela o sentido profundo da própria existência e se sintam alegres e agradecidos por isso. A família cristã transmite a fé quando os pais ensinam seus filhos a rezar e rezam com eles (cf. Familiaris consortio, 60); quando os aproximam dos sacramentos e vão introduzindo-os na vida da Igreja; quando todos se reúnem para ler a Bíblia, iluminando a vida familiar à luz da fé e louvando a Deus como Pai.
Na cultura atual, se exalta muito freqüentemente a liberdade do indivíduo concebido como sujeito autônomo, como se ele se fizesse só e se bastasse a si mesmo, à margem de sua relação com os demais e alheio à sua responsabilidade frente a eles. Tenta-se organizar a vida social só a partir de desejos subjetivos e mutáveis, sem referência alguma a uma verdade objetiva prévia como a dignidade de cada ser humano e seus deveres e direitos inalienáveis, a cujo serviço deve estar todo grupo social.
A Igreja não cessa de recordar que a verdadeira liberdade do ser humano provém de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Por isso, a educação cristã é educação da liberdade e para a liberdade. “Nós fazemos o bem não como escravos, que não são livres para atuar de outra maneira, mas o fazemos porque temos pessoalmente a responsabilidade com relação ao mundo; porque amamos a verdade e o bem, porque amamos a Deus e, portanto, também suas criaturas. Esta é a liberdade verdadeira, à qual o Espírito Santo quer levar-nos” (Homilia na vigília de Pentecostes, in: Passos maio/2006, p. 46).
Jesus é o homem perfeito, exemplo de liberdade filial, que nos ensina a comunicar seu amor aos outros: “Como o Pai me amou, assim eu vos amei; permanecei em meu amor” (Jo 15, 9). A este respeito, o Concílio Vaticano II ensina que “os esposos e pais cristãos, seguindo seu próprio caminho, devem apoiar-se mutuamente na graça, com um amor fiel ao longo de toda sua vida, e educar no ensinamento cristão e nos valores evangélicos seus filhos, recebidos amorosamente de Deus. Desta maneira, oferecem a todos o exemplo de um amor incansável e generoso, constroem a fraternidade de amor e são testemunhas e colaboradores da fecundidade da Mãe Igreja, como símbolo e participação daquele amor com o qual Cristo amou a sua esposa e se entregou por ela” (Lumen gentium, 41).
A alegria amorosa com a qual nossos pais nos acolheram e nos acompanharam nos primeiros passos neste mundo é como um sinal e prolongamento sacramental do amor benevolente de Deus, de quem procedemos. A experiência de ser acolhidos e amados por Deus e por nossos pais é a base firme que favorece sempre o crescimento e desenvolvimento autêntico do homem, que tanto nos ajuda a amadurecer no caminho para a verdade e para o amor, e a sair de nós mesmos para entrar em comunhão com os outros e com Deus.
Para avançar nesse caminho de maturidade humana, a Igreja nos ensina a respeitar e promover a maravilhosa realidade do matrimônio indissolúvel entre um homem e uma mulher, que é, também, a origem da família. Por isso, reconhecer e ajudar essa instituição é um dos maiores serviços que se pode prestar hoje em dia ao bem comum e ao verdadeiro desenvolvimento dos homens e da sociedade, assim como a melhor garantia para assegurar a dignidade, a igualdade e a verdadeira liberdade da pessoa humana. Neste sentido, quero destacar a importância e o papel positivo que as distintas associações familiares eclesiais realizam a favor do matrimônio e da família. Por isso, “desejo convidar a todos os cristãos a colaborar, cordial e valentemente, com todos os homens de boa vontade, que vivem sua responsabilidade a serviço da família” (Familiaris consortio, 86), para que, unindo suas forças e com uma legítima pluralidade de iniciativas, contribuam para a promoção do verdadeiro bem da família na sociedade atual.
Voltamos por um momento à primeira leitura desta Missa, tomada do livro de Ester. A Igreja orante viu nessa humilde rainha, que intercede com todo seu ser por seu povo que sofre, uma prefiguração de Maria, que seu Filho nos deu como Mãe; uma prefiguração da Mãe, que protege com seu amor a família de Deus que peregrina neste mundo. Maria é a imagem exemplar de todas as mães, de sua grande missão como guardiãs da vida, de sua missão de ensinar a arte de viver, a arte de amar.
A família cristã – pai, mãe e filhos – é chamada, assim, a cumprir com os objetivos assinalados não como algo imposto de fora, mas como um dom da graça do sacramento do matrimônio infundido nos esposos. Se estes permanecem abertos ao Espírito e pedem sua ajuda, ele não deixará de comunicar-lhes o amor de Deus Pai manifestado e encarnado em Cristo. A presença do Espírito ajudará os esposos a não perderem de vista a fonte e medida de seu amor e entrega, e a colaborar com ele para refleti-lo e encarná-lo em todas as dimensões de sua vida. O Espírito suscitará neles, desta forma, o anseio do encontro definitivo com Cristo na casa de seu Pai e nosso Pai. Esta é a mensagem de esperança que de Valência quero lançar a todas as famílias do mundo. Amém.

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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