Trechos da colocação da representante de Comunhão e Libertação na mesa-redonda sobre os movimentos eclesiais e a caridade.
Dom Giussani nos ensinou que a caridade é um dom de si comovido. A caridade é um doar-se totalmente para a existência, crescimento e realização plena do homem. Mas este dom de si precisa ser comovido. Jeremias no capítulo 31 mostra a comoção de Deus quando diz: “eu te amei com um amor eterno, por isso te atraí para mim, tendo piedade do teu nada”. É clara a comoção de Jesus quando uma tarde vê a sua cidade do alto da colina e chora sobre ela, pensando na sua ruína. Aquela cidade O matará algumas semanas depois, mas para Ele isto não importa. Ou ainda quando Jesus, atrás do féretro da viúva que perdeu o seu único filho diz: “mulher, não chores”. Ou quando Jesus soube que morreu seu amigo Lázaro e Ele chora.
A caridade de Deus para com o homem é uma comoção, um dom de si que vibra, agita-se, move-se, realiza-se como emoção, na realidade de uma comoção: co-move-se. “Que é o homem para que Tu te recordes dele?” diz o Salmo 8. Deus se comoveu com o nosso nada. Mais: Deus se comoveu com a nossa traição, com a nossa rude pobreza, esquecida e traiçoeira pobreza, com a nossa mesquinhez. “Tive piedade do teu nada, tive piedade do teu ódio por mim. Comovi-me porque tu me odeias”, explica Dom Giussani quando fala sobre a caridade de Deus, origem de toda a caridade humana.
Deus teve piedade de mim e do meu nada e me escolheu; escolheu-me porque se comoveu com a minha mesquinhez. É desse juízo, pois a comoção não é apenas um sentimento, mas um juízo que reconhece um valor, é desse juízo que se origina a verdadeira caridade, infinitamente diferente da mera generosidade. A generosidade, quando nasce de um esforço e capacidade pessoais, tende a não durar no tempo, a não suportar a ingratidão do outro e a ter uma impaciência pela falta de resultados imediatos.
Dom Giussani explica que a perfeição é esta comoção em ato para com a necessidade do homem: necessidade antes de tudo de felicidade, de ser; de felicidade, de destino. Seria injusto fazer nascer, dar comida ou moradia, se não existisse o destino de felicidade. Portanto, a primeira e maior entre as dores da vida, é a nulidade do sentido do viver.
A comoção une deixando separado. Quem se comove não vive a possessividade. Uma pessoa apaixonada, para estar realmente comovida, deve ficar a um metro, até dois, distante do outro, e, olhando o rosto da pessoa amada, nessa distância, só assim se comove. Como a mãe que vê seu filho de longe brincando e pensa: qual será o destino dele?, e arde de comoção pela felicidade de seu filho. Sem esta distância do rosto do outro não se pode ver verdadeiramente o objeto do nosso amor.
Sêneca dizia: “se você quer viver para si mesmo deve viver para um outro”, isto é, se você quiser realizar o seu dinamismo, deve viver para um outro, deve dar-se a um outro, comovido, não forçadamente. O eu não existe senão no amor e na doação de si.
Quando alguém aplica a lei do amor no relacionamento com uma outra pessoa de modo autêntico, verdadeiro, isto é, disposto a ir até o fundo, aberto até o fim, até a morte, ou seja, para a eternidade, para o outro ele é tudo. É justamente o que dizia São Paulo a Jesus: “vivo, não eu, és tu que vives em mim”.
A dedicação de si ao outro não é uma coisa genérica, mas muito concreta. Por isso se a lei do eu é dar-se ao outro, dar-se ao outro significa mover-se por um outro, fazer algo concreto.
A caridade gera uma nova mentalidade
A caridade, diz-nos Dom Giussani, gera por fim uma nova modalidade de relacionamentos entre as pessoas, gera uma nova mentalidade que tem algumas características:
1. A afirmação do outro porque ele existe e do jeito que ele é; não por uma vantagem nossa, por um cálculo nosso; ou como nós queríamos. Esta é a verdadeira estima pela pessoa do outro.
2. O compartilhamento das necessidades. É através da necessidade que o homem é empurrado para o seu destino. Através da necessidade aprende que lhe falta algo. Compartilhar a necessidade quer dizer surpreender-se como presença amorosa que se interessa pelo destino do outro.
3. Capacidade de perdão, que quer dizer dar de novo espaço e liberdade ao outro em si mesmo. Você foi ofendido, o perdão dá à pessoa que lhe ofendeu um novo espaço de relacionamento.
4. Apego ao outro. Afeição pela pessoa, respeito, devoção e fidelidade no relacionamento.
Essa forma de se relacionar gera uma mentalidade nova e faz a pessoa experimentar a plenitude da vida que é a oferta de si mesmo.
É impressionante olhar a caridade assim, pois o acento não está num esforço de comportamento talvez planejado ou calculado, mas na experiência que acontece quando nos comovemos pelo outro. E a comoção nunca pode ser forçada.
Mas como nasce a comoção? A experiência de comoção é resultante da experiência da alegria de se sentir amado e acolhido pela companhia de Cristo vivo em uma comunidade da Igreja. São as pessoas felizes aquelas que desejam fazer o bem. Viver assim é mais razoável, nos deixa mais felizes e faz a vida frutificar incomensuravelmente. Aprendemos que seguir Cristo é muito mais razoável e só Ele sacia o nosso coração. A caridade, antes de ser vivida para com o outro, é vivida para comigo mesmo.
A história se faz a partir de um encontro
O encontro com Dom Giussani e a experiência de Comunhão e Libertação permitiram que estas coisas que acabo de dizer pudessem se tornar uma promessa de vida e de felicidade para mim, que sempre vivi num ambiente, não só completamente leigo, mas programaticamente ateu.
Na faculdade encontrei um colega de classe de Comunhão e Libertação que durante três anos me convidou insistentemente para participar do movimento. De todas as atividades que eles realizavam, a que me prendeu na companhia daqueles amigos foi o que chamamos de caritativa. Eu ia todas as semanas visitar favelas na periferia de São Paulo. Logo me apaixonei pela experiência. Eu, que nunca tinha saído da região mais rica da cidade, conheci muitos lugares pobres, sua realidade e seu povo. Comecei com outros amigos a prestar serviços em educação alimentar para crianças. Em dois anos montamos uma associação que congregou 7 creches e 7 colégios católicos para prover alimentação adequada e atividades sócio-educativas a um número crescente de crianças. Essa atuação resultou em um livro sobre alimentação, problemas nutricionais e desnutrição, dedicado a mães e profissionais da área. Foi um instrumento preparado em linguagem simples para discussão em grupos. O livro foi prefaciado pelo então arceBispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e foi utilizado nas creches ligadas às Comunidades de Base, sendo divulgado e distribuído até a África Portuguesa.
Tudo isso aconteceu enquanto eu era universitária. Desta experiência de caritativa, nasceu o interesse pelo estudo da desnutrição. Atualmente, sou professora de Fisiologia da Nutrição na Universidade Federal de São Paulo, responsável por uma rede de centros para recuperação de crianças desnutridas, por um grupo de estudos sobre Nutrição e Pobreza da Universidade de São Paulo e membro da força-tarefa da União Internacional das Sociedades de Nutrição para o estudo da desnutrição no inicio da vida e suas conseqüências em longo prazo. Sou também consultora da KRAFT para melhorar o padrão dos alimentos industrializados e combater a obesidade no mundo.
No mundo da ciência e da universidade
O mundo da ciência e da universidade está bem distante da Igreja em geral. Eu mesma fui muitas vezes combatida e cerceada profissionalmente pela minha identidade católica e até tive que sair de um Departamento onde trabalhava. Pude experimentar também, em diversas ocasiões, o profundo ódio que certa mentalidade moderna, especialmente no mundo da ciência e da cultura, tem contra Cristo. Minha experiência, porém, mostrou-me como é verdadeira a afirmação que quando uma porta se fecha o Senhor cuida de abrir outra.
A crescente hostilidade do ambiente em que vivo contra a Igreja e Cristo torna o carisma do movimento de Comunhão e Libertação, que é estar imerso no mundo leigo e ateu, um grande desafio. Isso exige uma educação para a fé, a esperança e a caridade, que não seja superficial ou formal. Aprendemos a aprofundar sempre as razões da nossa fé, como diz São Paulo. Com Dom Giussani aprendemos que é possível viver assim e é totalmente razoável e infinitamente mais correspondente ao nosso coração. O caminho para a experiência da razoabilidade da fé não é feito teoricamente ou a partir de um trabalho intelectual, mas é comprovado no dia a dia e apoiado por uma amizade guiada ao destino, como regra de vida, e, portanto por uma vida de comunhão. Assim a nossa presença é tanto mais determinante na sociedade quanto mais os outros podem verificar a razoabilidade, a serenidade, a ousadia ingênua, a alegria e liberdade que a posição religiosa tem. E isso tudo culmina nas obras que são realizadas e que são, antes de tudo, espetáculo aos nossos próprios olhos.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón