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Passos N.70, Março 2006

DESTAQUE - EDUCAÇÃO

Comunicar uma experiência

por Julián Carrón

Como contribuição para um debate sobre o tema de Educação, publicamos alguns trechos de um diálogo de padre Julián Carrón com um grupo de professores de Comunhão e Libertação. Milão, 29 de janeiro de 2006

Depoimento. Dou aulas para uma turma do Ensino Médio em Prato. Comecei o ano muito impressionada com este texto: Algo dentro de algo (texto da Assembléia Internacional do Movimento Comunhão e Libertação, realizada em agosto de 2005; nde). No entanto, tenho a impressão – dou aulas de italiano e de latim – de que ajudar os jovens a descobrir esse “Algo” não é simplesmente partir dos textos ensinando literatura ou latim: é preciso uma identificação minha com os textos e com o que eu ensino. Isso faz lembrar o que dizia Dom Giussani no texto de Natal: “A missão é a identificação com os outros dessa identificação com Cristo que sou eu"1. Isso me pôs novamente em movimento, ainda que eu continue a sentir que essa identificação, no fundo, é impossível, pois o que eu penso sempre se põe no meio. Na minha escola, onde leciono há sete anos e acompanho a mesma turma há cinco, até sou um ponto de referência por muitos aspectos. Mas tenho sempre uma espécie de grande ferida, pois me parece que existe uma impossibilidade de identificação com o outro e com Cristo, pois é como se tudo o que eu penso continuasse sempre de alguma forma a se interpor.

Julián Carrón. Eu lhe agradeço, pois essa é uma questão absolutamente decisiva. Não sei se vocês entendem o que está em jogo. Ela se dá conta de que, no fundo, aquilo que pode transmitir aos jovens – e que já é muito – é a sua identificação com os textos. Ou seja, nós podemos transmitir apenas a nossa experiência, aquela vibração inefável e total diante das coisas, das pessoas ou dos textos, que vivemos. Mas justamente isso lhe parece impossível, pois, disse-o muito bem, o que pensa continua sempre a se interpor: é como se, a certa altura, a pessoa se desse conta de que entre o eu e o texto (como entre o eu e o outro) existe um muro que impede que o texto (ou o outro) a atinja. Por que isso acontece? Porque nós não somos um eu abstrato, somos um eu histórico, que tem todo um conjunto de preconceitos. Por isso, a pessoa se pergunta: “Mas isso que tenho à minha frente, por exemplo este texto, me toca de verdade?”. Esse problema me tocava muito de perto quando eu era professor de Sagrada Escritura, um texto – vocês hão de convir – bastante importante, de forma tal que tive de pensar nisso a fundo. Todo o caminho da modernidade com relação à Sagrada Escritura foi caracterizado por esse problema, sobretudo a partir do desafio protestante. Faço um resumo breve, pois o que me interessa é ajudar a entender o problema da forma como ele toca a todos e de um modo que a maioria talvez nem se dê conta. A Igreja sempre disse que era preciso aproximar-se da Escritura no contexto da tradição. A certa altura, aparece um novum absoluto: sola scriptura, ou seja, Lutero afirma que a única possibilidade de se aproximar da Escritura, da Bíblia, é o puro texto, pois a tradição não pode transmitir a sua verdade; sendo pecadores, não podemos, não conseguimos transmiti-la. Onde foi parar a beleza da origem, o frescor da origem? Só na Escritura, pois, por inspiração do Espírito Santo, aos autores sacros foi dado transmitir no texto o que Jesus havia vivido e testemunhado. Toda a tentativa da modernidade se joga aqui. Inicialmente Lutero pensava que isso bastasse, sola scriptura, a claritas scripturae, para permitir a cada um, ao indivíduo, entrar em relação imediata e direta com a beleza da Escritura. Não se dava conta de que, quando lia a Escritura, ele mesmo a lia na esteira e no contexto da tradição, uma vez que aceitava, por exemplo, os grandes Concílios do século IV: Nicéia, Calcedônia etc. Ora, quando se passa da Reforma ao Iluminismo, aquela sola scriptura se transforma em sola ratio. De fato, estamos no clima do racionalismo, a razão se torna medida, e todos procuram se aproximar da Escritura com este novo critério: a razão como medida. “Não precisamos de nada, precisamos de um único critério último: a razão.” Só um método nascido “dessa” razão é, então, considerado bastante científico para captar realmente o que aconteceu na origem do acontecimento cristão, sem a influência da tradição – uma vez que a tradição foi feita pelos cristãos, que no fundo transmitiram o que tinham na cabeça. Se a razão, uma razão como medida, passa a ser a única autoridade reconhecida, pode-se aceitar apenas o que provém de um método construído segundo esse conceito de razão. Assim, por meio de todos os métodos literários, filológicos, arqueológicos etc, buscou-se controlar a influência da tradição e chegar realmente ao texto. Aparecem historicamente nessa altura todos aqueles que procuram escrever a vida de Jesus de acordo com esse novo conceito de razão e com o método histórico-crítico conseqüente. Chegamos assim em Schweitzer – citado na Escola de Comunidade –, que faz o balanço de toda essa busca. O que nela fica evidente, todavia, é que cada um, usando o mesmo método, que deveria ser o método “científico” e “objetivo”, chega a uma imagem diferente de Jesus. A tentativa de evitar o subjetivismo e de chegar a um resultado objetivo é eliminada pela própria busca, sem nenhuma interferência de Roma, do Santo Ofício: a própria busca é obrigada a se render à evidência de que não é capaz de chegar a uma imagem de Jesus absolutamente científica e objetiva. Cada um, com o mesmo método, chega a conclusões diferentes. Isso significa que aquilo que se queria controlar de fato não é passível de ser controlado, pois sempre existe o sujeito que aplica o método e, no fundo, é apenas essa disposição do sujeito que determina o método. É o problema da hermenêutica moderna, como vocês sabem melhor do que eu. A hermenêutica é o reconhecimento da importância do sujeito na relação com o texto: não posso prescindir do sujeito na relação com o texto, a presença do sujeito é ineliminável. Eis então a pergunta que ela fez no início: como eu, o sujeito que usa o método, pertenço a uma tradição, de forma que tem todo um conjunto de coisas que determinam a minha maneira de me relacionar com o texto, quando leio a Escritura leio apenas alguma coisa que já tenho dentro de mim? Posso atravessar o muro desses preconceitos ou, quando leio, encontro apenas o que tenho por dentro? É o problema daquela impossibilidade de que ela falou. Quando lemos a Escritura de manhã ou quando fazemos silêncio, ouvimos algo mais do que o que temos por dentro ou, no fundo, ouvimos apenas a nós mesmos? Hoje assistimos freqüentemente às conseqüências grosseiras desse problema, quando não é adequadamente entendido e enfrentado. Quantas vezes, na Igreja, se lê a passagem do Natal, do nascimento de Jesus, um evento histórico, e depois nos falam um minuto sobre o evento e vinte minutos sobre a solidariedade ou a pobreza? Por quê? Porque o cristianismo foi reduzido a ética. O texto na realidade se torna pretexto para dizer o que a pessoa tem por dentro. Aquilo que aconteceu, aquilo de que o texto se ocupa, é na realidade a oportunidade para falar de uma outra coisa. No fundo, é como se fosse impossível alcançar o texto; é como se fosse impossível deixar-se tocar por ele; a pessoa diz o que já tem na cabeça. Eu poderia ter lido o texto do Natal ou um texto hindu, ou o jornal, no fim dá na mesma, porque, no fundo, eu digo o que já tinha em mente. Mas, se é impossível entrar em relação com o texto, tudo é inútil. Ratzinger, num artigo famoso, levantava a questão: afinal, quando nós ouvimos a Escritura, ouvimos algo fora de nós mesmos? Esse é o grave problema, que nos remete à verdadeira questão: sendo que eu tenho influência sobre o texto, a real questão é quem tem influência sobre o meu sujeito, de modo tal a abri-lo ao texto. E aqui vem ao nosso encontro de novo o problema da tradição. Sem um acontecimento presente que abra a razão, que faça um buraco no muro e abra a razão de modo tal a fazê-la entrar no evento de que fala o texto, não entendemos. É verdade o que era apontado antes: é impossível identificar-se com o texto, se a pessoa não participa do acontecimento presente que lhe permite fazer a experiência que depois reencontra no texto. Do ponto de vista da educação, isso é decisivo: ou nós participamos de um evento presente que continuamente, permanentemente, nos abre e reabre de novo todas as vezes – um evento que diz respeito à totalidade do eu, de modo a poder transmitir ao outro aquela comoção inefável e total que vivemos –, ou, então, não há nada a fazer, transmitimos apenas nós mesmos e os nossos preconceitos. Só participando da experiência humana de que fala o texto, eu posso transmiti-la. Eu a transmito, não apenas porque leio o texto, mas porque há um acontecimento presente que me permite fazer aquela experiência, que me permite entrar no significado do texto e compreendê-lo. A única possibilidade é ter com o texto aquela sintonia humana que me faz compreendê-lo, do contrário o reduzo, como acontece na maior parte das vezes, à minha medida, aos meus preconceitos, ao que tenho na cabeça. A questão decisiva da educação, então, é participar de um lugar absolutamente vivo, onde aquilo de que falamos acontece; do contrário vocês podem fazer todos os esforços que quiserem, mas transmitirão apenas o que têm na cabeça. Eu me estendi um pouco, mas é importantíssimo entender isto: a maioria nem se dá conta do problema e, portanto, da necessidade que tem de participar de um lugar onde o que dizemos reacontece continuamente.

Depoimento. Leciono numa escola pública de Ensino Médio que, nos últimos anos, foi virada de ponta-cabeça pelas várias tentativas de reforma. No início nos tornamos escola-piloto da reforma do ministro Berlinguer e mudamos tudo; depois, desde o ano passado, nos tornamos escola-piloto da reforma da ministra Moratti; agora, enquanto nos preparamos para aquilo que alguns supõem será o novo governo, estamos arrancando todas as referências à “reforma Moratti”, para estarmos prontos para o que vier. Todas essas transformações foram muitas vezes impostas aos meus colegas, por isso há um clima de ceticismo: até o ímpeto dos meus colegas de esquerda, que tinham assumido como sua a reforma Berlinguer, quando caiu o governo e viram a derrota política, se transformou numa total falta de empenho. A idéia é: não vale a pena se empenhar. Um colega meu diz sempre que só eu penso que aquilo é uma escola, ao passo que na realidade é um parque de diversões para adolescentes apáticos, e por isso não vale a pena fazer nada. Essa é a situação em que vivo e da qual tantas vezes me lamentei. Meus amigos sempre me disseram: “Fique lá”, e eu me perguntava o que estava fazendo ali, para fazer o quê. Ainda por cima, acabei indo lecionar italiano num colégio técnico de comunicação e marketing, sem nem ao menos saber o que essas palavras significam. Eu me vi sem chão: “Afinal, o que é que eu estou fazendo aqui? Nem sei o que é uma estratégia de marketing; toda a escola se inclina apenas para a questão econômica e eu não tenho a nada a ver com isso”. No entanto, justamente esse fato de não ter a ver com nada me fez entender que o problema fundamental era: quem sou eu. Quem sou eu dentro dessas matérias tão novas e tão estranhas que me obrigaram a uma mudança? Comecei a levar a sério o que eu tinha na minha frente, perguntei a quem sabia mais do que eu, perguntei aos amigos, procurei ir a fundo no que realmente tinha na minha frente. Tornei-me quase uma especialista em marketing, mas comecei a fazer coisas pelas quais experimentava um gosto, e arrastei comigo também colegas e alunos, fazendo projetos interessantes, ao menos como perspectiva. O que foi que entendi? Que, falando de marketing, era impossível não falar de educação, e que levar a sério aquele pedaço de realidade, que me era tão estranho, suscitou-me a pergunta “por que”, “quem sou eu”, “por que leciono”. A conseqüência foi que um grupinho de meus colegas começou a ler comigo Educar é um Risco. Levar a sério a reforma significa isso?

Carrón. Levar a sério a reforma é levar a sério o seu eu na escola, do contrário a escola se torna o seu túmulo, com ou sem Berlinguer. No fim, daquilo que você contou, qual foi o ponto decisivo? A tenacidade de permanecer, graças ao que você vivia conosco no Movimento. Mas ninguém é poupado de ter de decidir, como você também não foi poupada: teve de enfrentar aquela situação. A pessoa pode dizer: “Não há nada a fazer, tenho todas as razões para ir embora”. Você pode se sentir justificada em sua falta de empenho por mil razões, até decidindo uma coisa absolutamente irrazoável (porque você é chamada a estar ali). A questão é se aquela circunstância da sua vida se torna a oportunidade para ir até o fundo de você mesma, do real. Somente quando a pessoa se abre a isso, começa a se mexer, a sua razão começa a se mexer de um modo absolutamente diferente. A pessoa começa a perguntar a qualquer um e a descobrir coisas que se tornam interessantes. Quem não aceita esse desafio do real é derrotado. Não me interessa agora o aspecto moral, me interessa que de fato a pessoa pode estar numa circunstância sem nenhuma abertura a verificar qual é a vitória de Cristo que passa por meio do seu sim, que a empenha lá onde está. Estar ali não é em nada automático, não nos é poupada a liberdade de aceitar ou decidir. É preciso fazer todo o percurso, nos seus mínimos detalhes, até chegar ali, e então a pessoa vê que tudo na escola depende do fato de que haja professores que não se rendem, mesmo com mil justificativas, diante do que encontram à sua frente. Esse é o desafio, para nós e para os outros. A questão, no fundo, é se vence em nós também o ceticismo que vemos por aí ou não. O tema da luta é a verificação da fé, ou seja, se existe algo, hoje, no real, que nos permite sempre recomeçar, qualquer que seja a circunstância, ou se, pelo contrário, as circunstâncias são mais fortes do que Cristo, se a impossibilidade de que se falava antes é mais forte do que a força de Cristo que nos reabre. O desafio não é representado somente pela escola, que é um detalhe da vida; para outra pessoa, será o trabalho ou a doença: é aí que nós fazemos realmente a verificação de quem é Cristo. Isso, em cada circunstância, tem o seu percurso e ninguém pode evitá-lo, pulando por cima: somente se a pessoa o aceita é que vê o que você viu e pode olhar para os jovens que tem na sua frente com uma esperança no olhar. Mas deve ser uma esperança que está em você. Se não está em você, pobrezinhos! No final eu faço votos de que os alunos encontrem pessoas que vivem uma esperança, pois o problema dos jovens é o nosso problema.

Depoimento. Leciono numa escola técnica pública. Eu me dou conta de que, quanto mais a gente avança no caminho, mais a questão educativa se faz vertiginosa e o aspecto do risco relevante. Aliás, fica evidente que é a maneira com a qual Deus nos converte a Ele, à Sua presença como Mistério, e não como plano nosso. Um aspecto que ultimamente me tem provocado é que essa questão implica, como me parece dizer Educar é um Risco, em “ultrapassar” a maneira como a pessoa percebe as coisas para permitir que a realidade venha à tona, e com ela a verdade, pois somente a vinda à tona da realidade pode despertar o eu como curiosidade objetiva por aquilo que é verdadeiro. Eu me senti inesperadamente chamada a isso, pois eu me encontrei ao lado de uma outra pessoa e me dei conta de que, mesmo animados por intenções boas, nós corremos o risco de deter tudo de tal forma em nossas mãos que escorregamos para uma impostura que se traduz depois em atitudes, fórmulas e modalidades. Por sorte, Deus, na sua misericórdia, continua a ser Deus. A questão que eu gostaria de apresentar diz respeito a esse “ultrapassar” a nossa maneira: porque é também evidente o fato de que a pessoa não pode viver plenamente se tem uma suspeita ou uma dúvida a respeito de si mesma. Sempre me impressionou e surpreendeu o fato de que Dom Giussani tenha-se doado a nós, tenha derramado toda a sua vida na nossa, até a sensibilidade particular que o caracterizou, sem nos tornar escravos dessa sua percepção. Se nós não arriscamos a consciência que nos foi dada, e que não é nossa, lá onde Deus nos chama, tornamos os outros e nós mesmos escravos da nossa provisória percepção da realidade, da nossa medida. Ao passo que, em vez disso, ultrapassar a nossa maneira significa apostar a consciência de um outro dentro das coisas. Isso salva e potencializa o nosso eu; do contrário, ficamos áridos, perdemos o gosto pela verdade, até pela nossa alteridade. Apostar o nosso eu segundo a consciência de Dom Giussani é a única possibilidade de que o nosso eu se torne caminho para outros.

Carrón. A única questão, se entendi bem, é como chegar a saber qual é a consciência de Dom Giussani, de maneira tal que não seja ideológico esse “ultrapassar”. Você só pode “ultrapassar” essa sua maneira participando de um lugar onde pode fazer experiência daquilo de que Dom Giussani fazia experiência, de modo tal que não transmita só conceitos de Dom Giussani, mas aquela comoção que Dom Giussani viveu. Bento XVI, na Encíclica, diz a certa altura uma coisa muito bela (é justamente o que nós aprendemos de Dom Giussani): “A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas idéias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos – um incrível realismo”2. A novidade “não consiste em noções abstratas, mas na ação imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Essa ação de Deus ganha agora a sua forma dramática devido ao fato de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da ‘ovelha perdida’, a humanidade sofredora e transviada”3. A questão é realmente esta: você também pode transmitir essa maneira de ser de Dom Giussani não como uma noção abstrata, mas participando da mesma experiência na qual ele nos introduziu. De modo tal, porém, que essa experiência não seria a mesma se você não tivesse participado dela. Eu sempre me lembro daquela frase que Dom Giussani disse em Um café em companhia: “Um olhar que dá forma ao olhar”. Nós nos encontramos com um olhar: o olhar de Cristo que deu forma ao olhar de Dom Giussani. A questão é que esse olhar encontrado em Dom Giussani deve dar forma ao nosso olhar, de modo tal que as pessoas, encontrando-se com o nosso olhar, encontrem aquele olhar ao qual Dom Giussani nos introduziu. Por isso não pode acontecer, como você dizia, uma suspeita; isso não existe, não pode existir, do contrário não transmitimos nada. O que introduziu Jesus foi esse momento dramático. “Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado não recebemos o cristianismo como um discurso, mas ficamos envolvidos na dinâmica da Sua doação”4. No dar-se de Cristo, nós somos envolvidos; no dar-se de Dom Giussani, nós fomos envolvidos; não vemos as coisas de fora, mas participamos do evento que gera o nosso eu, somos “tomados”. Tudo está aqui: a certa altura, fomos tomados por uma coisa diferente, “tomados por essa Presença, pelo que nos aconteceu”5. Não existe um hiato, é o ser tomados por algo diferente e, para ser tomados, é preciso que esse algo seja presente, real: nenhuma atração pode me tomar, se não é um acontecimento presente. Quem diz que isso é abstrato não entendeu, pois essa modalidade com a qual o Mistério se identifica com o nosso nada, essa “ternura”, diz Dom Giussani, “é um milhão de vezes mais aguda, mais penetrante do que o abraço de um homem a sua mulher”6. Nada de abstrato, nenhum hiato; é ser envolvidos na sua doação, como diz o Papa. “Essas coisas não se entendem pensando, mas olhando para as palavras que indicam sinteticamente a experiência”7. É olhando para a experiência que compreendemos as palavras. Voltando à questão do início, não é pensando, com as sutilezas dos meus raciocínios, mas participando da experiência e olhando para essa experiência, que entendo as palavras: “...olhando para as palavras que indicam sinteticamente a experiência para a qual se quer apontar. É preciso olhar para essa palavra – ternura – dentro da consciência dessa identidade entre mim e Ti, de Ti comigo, ou melhor, dentro da consciência desse acontecimento que se instalou em mim, desse ‘Tu que és eu’”8. Participar daquilo que nos disse Dom Giussani é participar disso; se continuam a ser apenas palavras, nós, com as palavras, traímos aquilo que encontramos, pois podemos fazer com Dom Giussani o que os protestantes fizeram com a Escritura: palavras, palavras, palavras. É preciso participar do que as palavras dizem, pois o que as palavras dizem é um acontecimento que se instalou em mim. Essa é a única possibilidade de transmitir o que nos dizemos, na escola e em toda a parte. Sem isso, em primeiro lugar a pessoa não respira na situação, e, depois, não se move. Ao contrário, isso nos permite uma abertura de 360 graus em qualquer movimentação, dos outros ou nosso, sem medo, sem preconceitos ou esquematismos, pois tudo se torna oportunidade de verificação. A pessoa que vive a experiência desse acontecimento pode ir aonde quer que seja, pois toda a escuridão ao seu redor não pode eliminar a luz que tem por dentro. Esta é a questão: a educação é justamente transmitir aquilo “que se instalou em nós, esse ‘Tu que és eu’”. Totalmente diferente de ser escravos das medidas!

Notas
1 Cf. Giussani, L. “Natal: o mistério da ternura de Deus”. In: Passos Litterae Communionis nº 68, dezembro de 2005, p. 4.
2 Bento XVI. Carta Encíclica Deus caritas est, nº 12.
3 Cf. Id., ibid.
4 Id., ibid., nº 13.
5 Cf. Giussani, L. “Natal: o mistério da ternura de Deus”. Op. cit., p. 4.
6 Cf. id., ibid.
7 Id., ibid.
8 Id., ibid.

 
 

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