A Campanha da Fraternidade deste ano nos convida a viver a solidariedade com as pessoas com deficiência. Esta é uma ocasião importante também para compreender também o significado e o alcance da caridade. Aqui, o pai de uma menina que tinha uma grave deficiência conta como a compreensão do Mistério que se manifestava através dela mudou a sua vida e como a leitura da “Deus caritas est” o ajudou a retomar esta história.
Minha filha Ana, com problemas cerebrais desde o nascimento, viveu conosco por 15 anos, até 1995. Ana jamais saiu da cama e da cadeira de rodas. A vida com Ana, o esforço humano que nos acompanhou para cuidar dela diariamente, aos poucos, muito lentamente (nada é óbvio nessa situação, mesmo que você daria a vida pelo seu filho ou por sua filha...) nos levou a entender o que realmente tínhamos diante dos olhos.
A presença de Ana, imóvel, impotente e sofrida, exigia a profundidade de um olhar e uma consciência sobre de que é feita, de fato, a realidade, que não vem do simples fato de ser um pai e, sobretudo, um pai que sofre com o que aconteceu a sua filha.
Tudo isto me veio a mente quando lí a encíclica de Bento XVI. A primeira frase que me impressionou foi esta: “o programa do cristão – o programa do bom samaritano, o programa de Jesus – é um coração que vê” (31). Veio logo à minha mente que a Casa de Acolhida, a obra social da qual cuidamos, nasceu da maneira como Dom Giussani viu minha filha Ana, imóvel e necessitada de tudo.
Aquele olhar, carregado de uma doçura infinita, que eu, como pai, não possuía, me fez entender que, enquanto ele olhava e tocava a minha filha, a sua caridade em relação a ela e à minha família afirmava o Mistério que havia nela, o Ser que quer que tudo exista, por pura gratuidade. Por isso, o seu coração via algo que nem eu via.
Seguindo esse olhar e as cartas que ele mandava à minha mulher, lentamente começamos a entender que Ana existia para afirmar que o Mistério é tudo, que o valor da criatura está todo naquilo que a forma. Ana era o Mistério que se afirmava dentro de um pedaço de realidade, ofendida pelo limite, tanto que aquele corpinho começava a apresentar uma estranha, mas real atração, porque nos obrigava a ter uma outra medida para tratar a realidade.
A partir daquele olhar é que tudo nasceu, porque quando o coração começa a ver do que é feito verdadeiramente o real, o que pede o Mistério presente numa pessoa necessitada de tudo, não podemos mais parar, não por um esforço titânico de amor, mas pela verdade do nosso eu.
Só assim é possível experimentar que “a íntima participação pessoal na necessidade e no sofrimento do outro se torna, então, um compartilhamento de mim mesmo; para que o dom não humilhe o outro, devo dar-lhe não apenas algo meu, mas eu mesmo” (35).
Na experiência da caridade, não queremos apenas o bem do outro; o outro passa a ser o nosso bem. Menos do que isso, o relacionamento com o outro sofrerá de uma inexorável parcialidade, talvez carregada de gestos humaníssimos e comoventes, mas inexoravelmente parciais.
Como é bela, enfim, a afirmação de que “na experiência de quão grande é a necessidade... o contato vivo com Cristo é uma ajuda decisiva para nos mantermos no caminho correto” (36). Só podemos começar a dizer, no momento da partilha de uma necessidade: Senhor, ajuda-me a ser como Tu és; só podemos dizê-lo se reconhecermos que Ele é uma Presença; do contrário, é a imitação de um ideal que sufoca e nos esgota, dentro de um esforço desumano. Só diante de uma Presença é que a dor de acolher e abraçar uma diversidade pungente nos manterá felizes, porque a alegria não nasce da capacidade de suportar a dor, mas de vivê-la na companhia do Ser, que deseja e afirma a vida de todos.
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FRATERNIDADE COM AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Por Vando Valentini
Na nossa cultura convivem dois modelos de vida que são aparentemente contraditórios, mas que, de fato, mostram-se complementares. De um lado o modelo da eficiência e da produtividade, segundo o qual o que vale é o que produz, e tudo o mais não interessa. De outro lado o modelo da facilidade: o que vale é o que é mais cômodo e mais fácil.
Em ambos os casos, as pessoas com deficiência não têm valor. Não somos tão brutais como o nazismo, quando as pessoas deficientes eram eliminadas, mas no fundo, com um pouco mais de “sutileza”, usamos o mesmo procedimento: julgamos que seria melhor se não nascessem ou então tentamos escondê-los e afastá-los da convivência normal, pois nos incomodam.
Para nós cristãos, todo ser humano, desde a sua concepção até a sua morte, é dotado de um valor absoluto, porque todo homem é querido por Deus e amado por ele. Mas surge a pergunta: por que Deus permite isso? Qual é o significado da presença destas pessoas? Aquela criança ou aquela pessoa com deficiência é o sinal misterioso da presença de Deus entre nós.
O tema da campanha de fraternidade diz: “Levante-te e vem para o meio”. Essas pessoas são as mais importantes em nosso meio, pois nos ajudam a olhar para Deus. Conviver com elas suscita a dor que dá significado ao amor e que é o caminho da felicidade e da vontade de viver. O próprio Jesus percorreu este caminho de cruz e ressurreição. Peçamos ao Senhor, nesta quaresma, que nos ajude a colocar estas pessoas no centro de nossa vida e da comunidade paroquial.
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