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Passos N.70, Março 2006

SOCIEDADE - POLÍTICA

Democracia: caridade recíproca

por Luca Antonini*

Diz-se que a democracia está em crise. Mas que valor tem, atualmente, essa palavra? Uma viagem pelos textos de Dom Giussani para redescobrir o significado e o valor dela, hoje, quando se fala de “pós-democracia”

“Quando uma palavra se torna tão universalmente sagrada, como no caso de democracia para nós, eu começo a me perguntar se, significando tanta coisa, ela ainda significa algo” (Eliot, L’idea di una società cristiana). De fato, muita gente quer distância de palavras como “ditadura” ou “racismo”, e muitos mostram-se fervorosamente partidários do termo “democracia”: até os regimes menos confiáveis do socialismo real, como o Camboja de Pol Pot, exibiam formalmente o termo democracia em suas declarações oficiais.
Mesmo prescindindo desses paradoxos históricos, a crise da representação e deslegitimização do papel da cidadania tornaram-se, hoje, fatores preocupantes inclusive nos modernos regimes democráticos. Em Harvard, por exemplo, está sendo feita uma pesquisa intitulada “O eleitor que desaparece”: querem medir o índice de helpness, isto é, o índice de impotência dos eleitores nos processos democráticos.
Referindo-se a essa situação, os sociólogos Ralph Dahrendorf e Colin Crouch já falam de “pós-democracia”, delineando um contexto de democracia incompleta, bem distante do original “governo do povo”. Outros, como Anthony Giddens, insistem na necessidade de “democratizar a democracia”.
Abriu-se, então, um questionamento a respeito da democracia e muitos concordam que eleições e Parlamento não satisfazem mais às necessidades da decisão democrática.
Esse questionamento relativo ao destino da democracia torna útil repropor algumas passagens de Dom Giussani que parecem de extraordinária atualidade para fazer com que a experiência democrática recupere sua característica essencial.

Fator essencial
Em L’avvenimento cristiano (O Acontecimento Cristão, não editado em língua portuguesa; nde) ele assim sintetiza o fator essencial de uma democracia substancial: “A liberdade de movimentos criativos e operacionais é questão de vida ou morte para a civilização: o é também para a democracia. Esse espaço para o trabalho que nasce do coração, e que é levado adiante em associação, é que dá a medida da democraticidade de qualquer poder, do seu respeito à liberdade (a liberdade de associação é o direito mais antitético ao poder)”.
O fundamento dessa afirmação é aprofundado em algumas passagens de O eu, o poder, as obras (Ed. Cidade Nova, São Paulo 2001; nde), onde Dom Giussani esclarece que uma “cultura da responsabilidade” deve “manter vivo aquele desejo original do homem, do qual brotam desejos e valores: a relação com o infinito, que torna a pessoa sujeito verdadeiro e ativo da história” (p. 163). E também: “O que é fundamental no homem é o que eu chamo desejo. O desejo é como a fagulha com a qual se acende o motor. Todos os movimentos humanos nascem desse fenômeno, desse dinamismo constitutivo do homem. O desejo acende o motor do homem. E então ele se põe a buscar o pão e a água, o trabalho, a mulher; põe-se a buscar uma poltrona mais cômoda e uma morada mais decente, interessa-se por saber como é que alguns têm tanto e outros não têm nada, interessa-se por saber como é que algumas pessoas são tratadas de um certo modo e ele não – tudo isso por força, justamente, do engrandecimento, da dilatação, do amadurecimento desses estímulos que ele possui dentro de si e que a Bíblia chama globalmente de coração” (p. 169).
Especifica, depois, respondendo à possível objeção do risco de uma ditadura dos desejos: “Há uma palavra que corresponde à idéia de homem verdadeiro e, portanto, de política verdadeira: a palavra ‘liberdade’. A liberdade é o contrário do que foi dito antes (liberdade de aborto, de divórcio etc.), porque liberdade não é aquela definida pelo poder através dos meios de comunicação” (p. 172).

O princípio da subsidiariedade
O primado da sociedade como condição para uma cultura da responsabilidade é, pois, indicado como essencial para a democracia: “O poder tem a ver com os homens. E o homem é mais complexo do que o elenco analítico de necessidades que o sociólogo ou o psicólogo de plantão fixam. Por exemplo, o ser humano tem uma necessidade absoluta de criar, de um jeito ou de outro, a própria realidade. Para compreender bem isso, pensemos no que aconteceria se o Estado predeterminasse para nós a esposa, a família, a quantidade de filhos, o lugar onde morar etc. Seria um inferno! Porque a pessoa é protagonista de si mesma. Devemos ter presente que o poder conduz uma sociedade humana, isto é, uma sociedade complexa. O homem não pode ser reduzido a nenhum esquema analítico. A sabedoria com que a Doutrina Social da Igreja convida o poder a solicitar, a ajudar e, portanto, a valorizar a iniciativa do homem e o protagonismo do povo, cunhou um princípio que João XXIII primeiro, e Paulo VI depois, repetiram continuamente: o princípio da subsidiariedade... O poder, feito para servir (princípio da subsidiariedade), pode tornar-se com muita facilidade – por causa da natureza humana – carrasco ou déspota, mesmo sem chegar a criar as câmaras de gás como as de Auschwitz ou os campos de concentração soviéticos” (pp. 171-172).
Do espaço aberto para uma cultura da responsabilidade nasce o critério para se julgar o poder e os projetos políticos, até se distinguir a seguinte alternativa: “Ou a construção como resultado do empenho analítico e edificante do homem no presente, para encontrar aquilo que espera poder satisfazer o desejo, ou então a construção política futura a partir de um preconceito estabelecido, de um programa ideológico (isto é, de uma concepção da realidade que parte de certas preocupações intelectuais) que analisa e usa a realidade com base nessa pré-compreensão, e por isso violenta-a. Faço sempre uma comparação dramática, sobretudo nestes tempos: o poder não poderia se lançar totalmente no seu preconceito, para criar uma humanidade forte, criativa, sem o peso da velhice? E, assim, quem impediria esse poder de fazer uma lei geral sobre a eutanásia aos trinta anos? (...) Ninguém. Existe diferença entre um projeto a respeito do homem que nasce por aquilo para o qual o homem foi feito (desejo, exigência, urgência, evidência, coração) e um projeto político construído sobre uma concepção do homem e da sua relação com o mundo inventada por intelectuais” (p. 170).

Falsa democracia
Em Il Cammino al vero è un’esperienza (O caminho à verdade é uma experiência, não editado em língua portuguesa; nde), Dom Giussani especifica a essência da democracia: “Em seu espírito, a democracia não é sobretudo uma técnica social, um determinado mecanismo de relações externas... O espírito de uma autêntica democracia aciona uma atitude de respeito ativo de uma pessoa pela outra, numa correspondência que tende a afirmar o outro em seus valores e em sua liberdade. Poder-se-ia chamar de diálogo esse modo de relacionamento entre os homens que a democracia tende a instaurar... Mas o diálogo é a proposição ao outro de algo que eu vivo, e atenção para o que o outro vive, em razão da estima por sua humanidade e por um amor ao outro que não contém dúvidas sobre mim mesmo, que não comporta negociação sobre aquilo que eu sou”. “O que temos em comum com o outro não deve ser buscado tanto na sua ideologia, e sim em sua estrutura congênita... naqueles critérios originais pelos quais ele é homem como nós”.
Com esse ponto de vista, Giussani revoluciona aquela arraigada tendência de considerar “o relativismo como a concepção de mundo pressuposta pela idéia democrática” (Kelsen). Giussani fala, a propósito, de “falsa democracia”, especificando que “a democracia não pode se basear numa quantidade ideológica comum, mas na caridade, isto é, no amor ao homem adequadamente motivado por sua relação com Deus”.
Daí a convivência como “comunhão entre as diversas identidades ideologicamente definidas”, a necessidade de que o “contrato social (Constituição)” tenda a “dar normas cada vez mais perfeitas, que garantam e eduquem os homens para a convivência como comunhão”, e, portanto, o pluralismo como “orientação ideal”.

* Vice-presidente da Fundação para a Subsidariedade, na Itália

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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