Na segunda parte da sua encíclica, dedicada ao exercício da caridade, Bento XVI procura recuperar a verdadeira origem e o verdadeiro objetivo da virtude teologal. Liberando o campo de qualquer equívoco assistencialista e ideológico, o Papa vê nela a expressão irrenunciável da vida cristã
A primeira parte da encíclica foi dedicada a mostrar os diversos caminhos do amor na vida do homem. Por meio deles, o Papa descreve também, em páginas de extraordinária profundidade e simplicidade, a realidade de Deus como origem e fim de todo amor, porque Ele mesmo é Amor, como o definiu de modo brilhante São João Evangelista.
Bento XVI percorreu todo o itinerário da história do homem, de Adão a Cristo e à Igreja. É a história de Alguém que não quis reservar só para si a glória, a comunhão, o amor; ao contrário, quis doá-los: antes de tudo, pela criação do homem e, depois, quando o homem se afastou dele, pela sua corrida atrás do homem para perdoá-lo, abraçá-lo de novo, salvá-lo. É essa a chave decisiva para se compreender a Encarnação do Filho de Deus, a sua Paixão, Morte e Ressurreição.
Face essencial
O amor, doado por Jesus como fonte da nova vida, criou a Igreja.
Compreende-se, então, por que a segunda parte da encíclica é dedicada ao exercício da caridade, por parte da Igreja. Antes de tudo, o Papa quer mostrar que a caridade não é uma expressão facultativa da vida do cristão. Ela é a face essencial da pessoa e da comunidade nascidas de Jesus.
Vêm à mente, aqui, as páginas de Dom Giussani dedicadas à educação para a caridade, à caritativa* como estrada fundamental em nossa educação de homens autênticos: por meio da caritativa, Dom Giussani nos levou a compreender a própria vida de Deus – que é gratuidade –; a modalidade do verdadeiro relacionamento entre os homens; e, por fim, a mola secreta de qualquer existência. Muitas vezes, nessas páginas da segunda parte da encíclica, retornam temas que conhecemos muito bem e que nos são muito caros.
“Praticar o amor – escreve o Papa – (...) pertence à essência da Igreja, tanto quanto o serviço dos sacramentos e o anúncio do Evangelho”. A encíclica descreve, por meio de um relato histórico, este manifestar-se da essência da Igreja no exercício da caridade. Encontramos aí os primeiros escritores da Igreja, os Padres, mas também algumas curiosidades. Por exemplo, quando o Papa cita Juliano, o Apóstata – imperador nascido cristão e que se tornou pagão depois de ver seus familiares serem assassinados por um imperador cristão, seu antecessor –, que escreveu em uma das suas cartas, quando já havia deixado a fé: “O único aspecto do cristianismo que me impressiona é a atividade caritativa da Igreja”.
Expressão irrenunciável
Pode-se dizer que o objetivo fundamental do Papa seja o de reconduzir a caridade do cristão e a comunidade cristã à sua verdadeira identidade e à sua verdadeira finalidade: “A caridade não é, para a Igreja, uma forma de assistência social que se poderia deixar para outros, mas algo que pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (25).
Na época moderna, a caridade vivida pelos cristãos defrontou-se com uma contestação radical. Diz-se que não bastam as obras de caridade, que é preciso criar uma ordem social justa, na qual todos recebam a sua parte dos bens e não precisem mais das obras de caridade. O Papa admite: “Há algo de verdadeiro nessa argumentação, mas também muito erro”. Qual é a verdade e quais são os erros? Nunca se deve separar a caridade da justiça, mas, ao mesmo tempo, nunca se deve pensar que a justiça seja capaz de tornar supérflua, inútil ou até mesmo danosa, a caridade.
Tentações ideológicas
Bento XVI faz aqui, no decorrer de várias páginas, uma análise das relações entre fé e política. Quem se interessar pode tirar muito proveito da leitura dos parágrafos 28 e 29.
Qual é a sua essência?
Na minha opinião, o principal encontra-se nestas palavras: “Ao Estado, cabe a função precípua de realizar a justiça”. Nós sabemos que, no cristianismo, Jesus distinguiu aquilo que é de César daquilo que é de Deus, o Estado da Igreja. Se as duas esferas – a da caridade e a da justiça – são distintas, não podem, porém, ser divididas, porque – eis a afirmação central da encíclica – “para poder conhecer e realizar de fato a justiça, é preciso que a nossa razão seja continuamente purificada das tentações das ideologias e do poder”.
Portanto, muito embora não seja função da Igreja implantar politicamente a justiça, é missão dos cristãos trabalhar para que a política torne realidade uma sociedade o mais justa possível. Essa é uma missão que – escreve o Papa – “cada nova geração deve enfrentar: a construção de um justo ordenamento social e estatal, mediante o qual, a cada um seja dado aquilo que lhe cabe” (28). A Igreja não deve, pois, assumir diretamente a luta política, não deve se colocar no lugar do Estado, mas também não deve ficar à margem da luta pela justiça e, sobretudo, “não existe nenhum ordenamento estatal justo que torne supérfluo o serviço do amor. Sempre haverá o sofrimento, que necessitará de consolo e de ajuda. O Estado que quiser prover a tudo, absorver tudo em si, acabará se tornando uma instância burocrática que não será capaz de garantir o essencial de que o homem sofredor precisa: a amorosa dedicação pessoal” (28).
O que, então, deve fazer o Estado?
Deve reconhecer e apoiar, segundo o princípio da subsidiariedade, as iniciativas que surgem entre as diversas forças sociais e que “unem espontaneidade e proximidade dos homens que necessitam de ajuda. A Igreja é uma dessas forças vivas” (28).
A carta de Bento XVI aborda, em seguida, as múltiplas estruturas de serviço caritativo que nasceram no seio da Igreja. O Papa preocupa-se em que elas não se reduzam a meras organizações assistenciais, mas mostrem sempre o esplendor da caridade da Igreja. “Todos os que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo fato de que não se limitam a executar, ainda que de modo competente, o que seja conveniente num determinado momento, mas se dedicam ao outro com as atenções sugeridas pelo coração” (31). Aqueles que trabalham nas instituições caritativas da Igreja devem ser pessoas que vivem a atualidade do encontro com Cristo. Desse modo, o amor não será mais, para eles, um mandamento imposto de fora, mas conseqüência da fé, que se torna operante na caridade.
A importância da oração
O Papa recomenda, pois, que a atividade caritativa cristã seja independente de todas as ideologias, seja gratuita, não seja exercida para alcançar qualquer outro objetivo. Bento XVI usa aqui uma expressão surpreendente: “O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, para deixar que fale apenas o amor” (31).
As últimas páginas da encíclica são dedicadas à oração. Não são páginas que expressam uma exigência puramente espiritual: se entendemos direito o que foi dito até aqui, o que é a caridade e qual foi a sua trajetória no coração do homem e na história do mundo, teremos também compreendido que é preciso redescobrir continuamente a raiz verdadeira da nossa caridade. “É chegado o momento de reafirmar a importância da oração frente ao ativismo e ao ameaçador secularismo de muitos cristãos engajados no trabalho caritativo” (37). Reafirmar a importância da oração quer dizer reafirmar a raiz da caridade, que é a ação de Deus no homem e no mundo. Viver a caridade, viver o amor quer dizer – conclui a encíclica – “introduzir a luz de Deus no mundo”.
* Em todos os âmbitos do Movimento é feita a proposta da caritativa, ou seja, da dedicação de um momento do próprio tempo livre para colaborar em alguma obra social. Não se trata de organizar ações filantrópicas ou de ter a pretensão de oferecer, com essas iniciativas, respostas exaustivas a necessidades muitas vezes grandes e complexas, mas sim de aprender, através da fidelidade a um gesto exemplar, que a lei última da existência é a caridade, a gratuidade.
Credits /
© Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón