Vai para os conteúdos

Passos N.70, Março 2006

IGREJA - DEUS CARITAS EST

Gratuidade em ação

Propomos abaixo alguns comentários feitos por pessoas que leram e compararam as próprias experiências com a encíclica.

Educado por um gesto

O Banco da Solidariedade é uma das realidades pela qual a Fundação Banco Alimentar Onlus distribui o alimento que recolhe junto a empresas alimentícias. O Banco envolve cerca de cem pessoas, que, como gesto de caridade, periodicamente, levam, de dois em dois, às casas das famílias mais pobres da nossa cidade, uma cesta de alimentos.
Ao empreender um gesto de caridade, aprendemos a conhecer-nos a nós mesmos, quase que a “descobrir”, como diz o Papa, que “o imperativo do amor ao próximo foi inscrito pelo Criador na própria natureza do homem” (30b); isto é, que somos feitos para o encontro com os homens e com as suas necessidades; que esse gesto satisfaz a uma exigência interna nossa.
Mas a origem desse movimento é a experiência de sermos amados; “o amor pelo homem... alimenta-se do encontro com Cristo” (34). Foram amigos que me olharam como ninguém havia me olhado antes e que me convidaram: “Venha conosco à caritativa”. E eu fui; inicialmente, só para não perder aquele olhar.
Ao fazê-lo, pouco a pouco descobri que o encontro com os amigos aos quais levo a cesta era o encontro com o Mistério, e que a necessidade de ser alvo desse amor é não só minha, mas deles também!
Chega-se a dizer: “Participo dessa obra, dou o meu tempo gratuitamente, porque isso é bom para mim!”. Tendo sido educado por esses gestos, a caridade está se tornando uma dimensão da minha pessoa, dá sabor à vida, corresponde, muda o jeito de eu me relacionar com a esposa, com os filhos, com os amigos, com os colegas de trabalho, com a realidade.
Um exemplo dessa experiência aconteceu com alguns de nossos amigos, que levam a cesta de alimentos a um casal de anciãos; um dia, procurando uma velha foto, a mulher abre um baú, e todos vêem o seu conteúdo: títulos do Tesouro Nacional! Os dois cônjuges dizem: “Desculpem por nunca termos dito nada, mas tínhamos muito medo de vocês não virem mais nos encontrar. Para nós dois, vocês são a chance de nós nos sentirmos amados”.
Obrigado, Dom Giussani, por nos ter feito conhecer a caridade; obrigado, Santidade, pois com essa encíclica nos conforta e nos lembra que “A caridade deve animar toda a vida dos fiéis leigos” (29).
Andrea Franchi,
membro da direção do Banco da Solidariedade ________________________________________________________________

Um novo horizonte

Durante o Concílio Vaticano II, e nos anos que imediatamente se sucederam, cantávamos a frase de abertura, tirada das Escrituras, que o Papa Bento XVI usa na introdução de sua encíclica: “Deus é amor; quem está no amor está em Deus e Deus está nele” (1Jo 4,16).
Isso foi uma revolução para nós, nos Estados Unidos, que a cantávamos em inglês. Cantar em inglês essas palavras, durante a Eucaristia, parecia que estávamos em contato com o coração do significado da vida. Ao mesmo tempo, cantávamos We Shall Overcome! (“Nós venceremos!”, célebre canção de Peter Seeger, que se tornou o “hino” do movimento pelos direitos civis, de Martin Luther King, em 1963; nde).
Devo admitir, porém, que não tinha a menor idéia do real significado do texto. Cantávamos essa frase em qualquer ocasião, havia uma explosão de “canções de amor” na liturgia, e sinais de matriz eclesial na educação, na catequese, nos cartazes, nos protestos contra a guerra e nas marchas a favor dos negros (afro-americanos). Durante os anos 60 e 70, utilizávamos a linguagem amorosa para qualquer coisa. Na época, eu era seminarista e, depois, jovem sacerdote, e não fazia idéia de como éramos medíocres quando convidávamos as pessoas a acompanhar o nosso ágape.
Agora está evidente para mim que a verdadeira revolução em meu coração só aconteceu quando encontrei o carisma de Dom Giussani: reconheci a profundidade da minha necessidade, graças a um encontro que mudou a minha vida para sempre.
A introdução da encíclica mantém essa promessa para o meu coração e abre todas as possibilidades para que a fé e a razão coincidam com o espírito do Papa Bento XVI. Quando ele afirma “No início do ser-cristão não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, assim, a direção decisiva”, percebo que por meio dessas palavras o meu lugar na Igreja é reconhecido de modo oficial. Essa encíclica me desafia a ir ainda mais fundo no meu modo de viver “o amor de Cristo”.
Cito a encíclica: “Eu amo – em Deus e com Deus – também a pessoa que não me agrada ou a quem sequer conheço. Isso só pode se realizar a partir do íntimo encontro com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontades e chegou mesmo ao nível do sentimento”. Nos anos 60 e 70, a nossa concepção do termo “encontro” fincava as raízes numa atividade ainda muito individualista, apesar das nossas boas intenções. Simplesmente não havíamos feito a experiência daquilo que Dom Giussani ofereceu ao mundo e que o Papa agora reafirma.
Numa recente visita a Justin, um homem de 33 anos, de Nova York, que está cumprindo uma pena de trinta anos na prisão federal de Rochester, o contato com ele despertou minha humanidade. Antes de encontrar o carisma, eu teria perdido essa experiência existencial do Infinito. Compareci à penitenciária cansado e insatisfeito com a minha vida, mas depois de ter ouvido esse homem, que procurava expressar o seu desejo, dentro do sistema carcerário – que é uma outra história –, de lá saí como um ser humano consciente do Outro de um modo absolutamente surpreendente. Não se trata de superficial caridade, da parte de um bom pastor, mas de um homem frente a outro homem, animados pelo mesmo desejo do Deus-Amor.
Ainda Bento XVI: “Só a minha disposição de ir ao encontro do próximo, manifestar-lhe amor, me torna sensível também à presença de Deus. Só o serviço ao próximo abre meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o fato de que Ele me ama”.
Padre Jerry Mahon,
sacerdote em Rochester, Minnesota – EUA
________________________________________________________________

Um espaço educativo

Começamos a Caritativa no Instituto de Cegos no ano de 1989. Naquela ocasião, nossa amiga Eliana, que morava próxima ao Instituto, sugeriu ao então padre João Carlos Petrini, que passássemos às tardes de sábado por lá a fim de fazer companhia aos alunos internos vindos, em sua grande parte, do interior do Estado da Bahia. O gesto era simples: consistia em rezar e depois brincar e conversar com as crianças e adolescentes deficientes visuais ao longo da tarde. Jogávamos até futebol (sim, é possível jogar pelada com eles). Posteriormente, começamos a ensinar o Catecismo a algumas dessas crianças e jovens. Enfim, construímos uma bela amizade com alguns deles e que perdura até hoje. Em razão do Instituto de Cegos só assistir os deficientes visuais até aos 18 anos, apoiamos a iniciativa de alguns de seus egressos, que precisavam continuar seus estudos na capital, no sentido de criarem o Centro Educativo Louis Braile, também em Salvador. Este espaço residencial e educativo é atualmente nosso ponto-de-encontro da Caritativa. Com efeito, nunca tivemos a pretensão de ser a solução imediata para as demandas de nossos amigos cegos, até mesmo porque aquilo que eles talvez mais desejem não pode ser dado ou restituído por nós, isto é, o Sentido da Visão. Entretanto, temos vivido uma sincera amizade com eles, tendo um real interesse no Destino Bom que pode ser visto em nossa companhia. De fato, Cristo construiu uma verdadeira fraternidade entre nós. Esta fraternidade tem sido compartilhar nossa vida com cada um desses nossos amigos especiais, antes de buscar soluções ideologizadas em torno dos problemas de preconceito e dificuldades que eles eventualmente sofrem no dia-a-dia. Fica evidente para nós que a Caritativa é um gesto vigoroso e essencial de nossa experiência como Movimento e conseqüentemente como Igreja, sendo também uma fonte de uma grande letícia.
Caio Cesar e Sérgio Sá,
de Salvador
________________________________________________________________

Pertença comum

A encíclica do Papa descreve a natureza de Deus: Deus é amor e nos criou para ter alguém para amar, chegando ao ponto de assumir um rosto e um coração como os nossos.
Foi no relacionamento com Dom Giussani que a força e a absoluta gratuidade desse amor se tornaram uma experiência que marcou a minha vida para sempre. Nunca poderei esquecer o nosso primeiro encontro. Ele não me conhecia. O que poderia ver em mim? Claro que eu não era ninguém.
No entanto, me senti abraçada e amada, era como se seu olhar dissesse: “Gosto de você. Você tem um valor infinito”. Desse seu olhar tudo nasceu.
De fato, descobri que não sou definida pelos meus limites, mas pelo amor com que Deus me faz ser e me constitui como desejo infinito dEle.
E aquele olhar me escancarou para o mundo e para a fascinante descoberta de que cada homem é amado e possuído, pessoalmente, por um Outro, que é o mesmo que me ama e me possui. Só por essa pertença comum, posso dizer “meu” à pessoa que encontro e abraçá-la sem medo do meu nada, na comoção pela grandeza a que todos somos chamados.
Meu trabalho é buscar por toda parte essa relação que forma o meu ser e mostrar a todos aquilo que vejo e que me entusiasma. É isso que constrói, para além de toda a minha incapacidade, porque leva-nos a fazer a experiência da caridade como presença de Deus que está conosco e nos acompanha, para nos tornar felizes.
Hoje, as mulheres do Acholi Quarter suscitaram, mais uma vez, a minha admiração pela normalidade com que se ofereciam para hospedar uma pessoa em dificuldade. Parecia que nem sentiam o sacrifício que isso significava: tinham o mesmo olhar de Marcelino Pão e Vinho (filme; nde), feliz porque voltado para a presença que realiza todos os desejos.
Rose Busingye,
International Meeting Point, Kampala – Uganda
________________________________________________________________

A verdade de um método

O que me conforta e desafia profundamente a minha vida, ao cumprir a missão que a Igreja católica do Cazaquistão me confiou há nove anos, é o método que o Papa propõe para vivermos uma autêntica caridade eclesial (31). A experiência “carnal” desses anos documentou, continuamente, a verdade desse método para o meu coração.
Basta um exemplo. Há alguns meses, um casal, de seus 35 anos, veio me pedir ajuda para ser internado no hospital. O rosto, os braços e as pernas de ambos estavam cheios de feridas. Tinham trabalhado, sem contrato e sem qualquer proteção, numa firma que limpa e recicla garrafas usadas, usando produtos químicos perigosos, o que eles ignoravam. A certa altura, foi-lhes dito: “Estão despedidos, porque vocês não podem mais trabalhar”.
No hospital, disseram-lhes: “Não podemos acolhê-los, vocês não têm dinheiro para pagar”.
Vieram à Caritas pedir uma ajuda para o tratamento, mas era evidente que buscavam algo mais: alguém que amasse concretamente a sua pessoa e o seu destino. Para viver a caridade, não basta a instituição. É preciso alguém que torne presente Cristo à pessoa – que é a própria caridade – para a outra pessoa que tem diante de si. O Papa diz: “A caridade cristã é, antes de tudo, simplesmente a resposta àquilo que, numa determinada situação, constitui a necessidade imediata... São seres humanos... Precisam da atenção do coração”.
Contestando a teoria marxista do empobrecimento – pela qual “o homem que vive no presente é sacrificado ao Moloch do futuro” –, Bento XVI afirma: “Só se contribui para um mundo melhor fazendo o bem agora e em primeira pessoa”. Através e dentro da tentativa de resposta à necessidade concreta, a caridade é comunicar a Presença e a companhia de Cristo, que, por meio daquela circunstância, nos interpela. “O amor, em sua gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em quem cremos”. Portanto, a obra não nasce da necessidade, mas da admiração por reconhecer o próprio Cristo na carne daquela circunstância, antes de tudo comovido por aquilo que Ele realiza em você e, depois, através de você.
Dom Adelio Dell’Oro,
diretor da “Caritas Nacional do Cazaquistão”
_______________________________________________________________

Dar sem receber

Na língua japonesa, não existe uma palavra que traduza exatamente o vocábulo latino caritas; podem-se usar expressões como “amor a Deus” ou “amor gratuito”.
Penso que a existência do termo okaeshi (“retribuição”), nos hábitos da vida quotidiana, expressa bem o fato de não existir, na cultura japonesa, o conceito de caridade. O termo okaeshi significa que quando alguém me ajuda ou me dá alguma coisa, devemos oferecer a ele um presente, como expressão do próprio estado de espírito.
Se não há a retribuição, não ficam tranqüilos, nem quem fez o favor, nem quem o recebeu. Seria uma falta de educação.
Quando eu era pequena, como okaeshi, se costumava dar uma coisa simples; por exemplo, alguma coisinha que tínhamos em casa no momento, como um pouco de comida típica de outra região. Além da gratidão, se expressava também a partilha. Hoje, porém, é privilegiado o aspecto formal: é óbvio que se receba alguma coisa.
Todavia, mesmo no seio dessa cultura as pessoas se comovem frente à figura da madre Teresa de Calcutá. Ela não calculava se estava ganhando ou perdendo, mas estava preocupada apenas em ajudar o pobre do ponto de vista material, ou alguém que não tinha nenhum apoio espiritual. Diante disso, os japoneses se perguntam: “Como é possível uma coisa dessas para um ser humano normal?”.
De fato, no Japão, há muitas associações de voluntariado para ajudar os pobres ou as pessoas socialmente frágeis. Eu também participo, há oito anos, de um grupo de voluntários que dá ajuda a alguns mendigos. Um padre me aconselhou a continuar nessa atividade, para aprender o sentido da gratuidade. Minha liberdade foi provocada pela palavra “gratuidade”. As pessoas que desenvolvem essa atividade são todas pessoas de boa vontade, mas ficam desanimadas por não serem reconhecidas pelos outros do grupo. Essa é uma fraqueza em que qualquer um pode cair; porém, se não nos esquecemos do objetivo fundamental da ação, penso que sempre é possível recomeçar.
Por isso, acho que essa encíclica nos faz retomar a consciência da razão última do valor das nossas atividades e nos revigora.
Sadahiro Tomoko (Sako),
colaboradora do bispo de Hiroshima, Japão
________________________________________________________________

Gratidão e gratuidade

Quando nos casamos, ao escolher para a liturgia do matrimônio o trecho de São Paulo “Quem nos separará do amor de Cristo?”, talvez intuíamos que, como diz a encíclica, a realidade do amor é única, e sua fonte primeira e original é Cristo. Certamente, aos poucos, essa consciência foi se tornando maior, mais segura e, hoje, ler a encíclica de Bento XVI causou em nós uma grande e consoladora impressão, porque nos vimos descritos ali e incentivados nessa consciência, com clareza iluminante.
No relacionamento conjugal, a diversidade é uma ameaça à afeição, ao desejo de pertencer, se o amor for apenas eros, só sentimento.
Assim também com os filhos, aquele desejo de bem que instintivamente experimentamos ao abraçá-los não resistiria frente à não-correspondência ou mesmo frente à impossibilidade de ser a resposta exaustiva aos seus problemas, aos seus sofrimentos.
Na hora da dificuldade, geralmente, vêm à nossa mente as palavra de Dom Giussani: “Sem a consciência da imitação do amor de Deus, do amor que Deus tem por nós, nem mesmo os filhos conseguimos amar; haveria uma barreira além da qual não seríamos capazes de tolerar; admitiríamos os filhos na medida em que correspondessem a uma imagem que fizemos deles”.
Na concretude de cada dia, o amor que Deus tem por nós, eros e ágape, experimentado como desejo do bem, como positividade última da realidade, como face dos amigos, é o verdadeiro ponto de apoio também da vida do casal e da vida familiar.
Muitas vezes o amor do meu marido por mim foi um sinal desse amor, muitas vezes me testemunhou uma capacidade de respeito, de sacrifício e de perdão, sem a qual o seu amor não existiria para mim, seria uma abstração. Essa disposição para o sacrifício e para o perdão (o Papa fala de purificação e de caminho) que parece, para a mentalidade de hoje, em contradição com o desejo de felicidade, é, pelo contrário, elemento de plenitude humana e fonte de ternura mais poderosa do que a paixão.
Gratos por essa riqueza, sentimos como dinâmica natural da vida familiar a possibilidade de acolher, em guarda provisória, uma menina abandonada e abrir-nos a outras experiências de acolhimento. A gratidão é que leva à gratuidade, nos dizia Dom Giussani no primeiro grande congresso das Famílias para a Acolhida, fixando, assim, um ponto de avaliação fundamental para a vida da associação: “Só se tivermos consciência de sermos amados – claramente, confusamente, implicita ou explicitamente – é que podemos amar, ou seja, abraçar, acolher em nós, compartilhar”. É o que o Papa diz hoje: “O amor pode ser ‘ordenado’, porque antes foi doado”. Isso vale, sobretudo, para quem acolhe o outro, mas também para todos os relacionamentos. O acolhimento é, enfim, um incremento do sentido da realidade: o marido é mais marido, os filhos são mais filhos, os amigos são mais amigos, os sofrimentos dos outros estão mais perto etc.
A encíclica nos faz, enfim, uma última provocação: “Um renovado dinamismo no esforço por uma resposta humana ao amor divino”.
Carla Massari,
dona-de-casa, Milão – Itália

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

Volta ao início da página