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Passos N.66, Outubro 2005

BRASIL / SITUAÇÃO POLÍTICA

Passada a tempestade:
que país começa agora?

por Juliana P. Perez

Uma conversa com Bruno Tolentino, um dos maiores poetas brasileiros da atualidade, sobre a situação política brasileira e o valor da sociedade civil

Divertida e mordaz foi a conversa de Bruno Tolentino com os universitários de Salvador sobre a atual crise política brasileira. “Tudo bem, ser brasileiro é a arte de ser surpreendido, mas um escândalo desse tamanho ninguém esperava”, começou o poeta no auditório da Faculdade de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E assim se introduzia o tema daquele encontro: que país começa agora, após as denúncias sísmicas de corrupção?
“O que temos vivido nos últimos meses tem sido traumático. O desnorteamento foi geral porque ninguém, nem mesmo os mais ferozes opositores ao governo, imaginava a existência de um esquema de corrupção de tamanhas proporções. E mesmo se, por um lado, talvez tenha havido alívio de quem não votou no PT, por outro, ninguém imaginaria a possibilidade de um dia sentir saudades do governo tucano: embora no governo FHC tenha sido enfim alcançada uma estabilidade econômica fundamental para o desenvolvimento do país, dizer que gostaríamos de voltar atrás seria exagero”, diz Tolentino.

Olhar a realidade como ela é
Em que pesem a perplexidade e a raiva que tantos sentem agora, por terem sido “deixados na mão” pelo PT, não cabe tanto pensar no que está acontecendo, pois a corrupção não é uma invenção petista: “O PT industrializou uma perversão já existente do uso da res publica. Mas a grande vantagem desta crise é que estamos vendo a realidade como ela é, não há mais lugar para ilusões. E a grande questão é: vemos como a coisa é agora, mas que país queremos? Não somos suecos nem turcos nem anjos, somos brasileiros – porém não somos como essas pessoas, por mais que tenhamos defeitos. As coisas não são ‘assim mesmo’ – porque lá em casa não é assim, não é assim que o brasileiro educa os filhos, alguma coisa está fora de foco”, provocava Bruno. “Se um menino faz uma coisa errada e diz à mãe que não sabia de nada, que não tinha visto, que ‘é assim mesmo’, leva um tapão para deixar de ser safado, ninguém acha nem normal nem engraçado. Quem trabalha, acorda cedo, pega o ônibus, é assaltado, volta para casa, assiste ao futebol não é assim. Não está no ânimo do brasileiro ser desonesto. Quem diz o contrário é a auto-intitulada intelectualidade brasileira, que vem destas redomas de cristal que se tornaram as nossas universidades, que não se misturam em nada de real e não admitem ser criticadas. Mas quem a gente encontra todo dia no ponto de ônibus e no jornaleiro não é como teorizam os intelectuais de esquerda. A maioria das pessoas quer progredir de forma natural, aprender a fazer as coisas e trabalhar, não levar a melhor. E as pessoas não se preocupam com carros de luxo ou compras na Daslú, elas se preocupam com as contas para pagar e com o irmão que começou a usar drogas. Então, o país real, tal como nós o conhecemos no dia-a-dia não tem nada a ver com ‘Valérios’. Piores ainda são os que torcem os fatos e justificam os erros do PT, ou os que aderem ao ‘silêncio’ dos intelectuais.”

A hora da sociedade civil
Se reconhecermos, portanto, que o comportamento de certa classe política não corresponde à vida real da sociedade civil brasileira – afinal, o mítico “jeitinho brasileiro” nem sempre significa trapaça –, entenderemos como um país que viveu vinte anos de ditadura e vinte anos de descalabro ainda consegue sobreviver. “Será mesmo que o país precisa ter uma das taxas de juros mais altas do mundo como um rosto precisa de um nariz? Será que uma pessoa precisa mesmo pagar tantos impostos para abrir uma firma e igual número de impostos para fechá-la? Ninguém me convence disso”, continua Tolentino. “Ninguém precisa se interessar por política para entender essas coisas, porque a questão deixou de ser política – é uma questão de atenção ao que é nosso. Não tem que ser assim, mesmo que tentem nos empurrar explicações psicológicas e justificativas sem sentido. Esta não é mais uma crise: é a hora da sociedade civil, pois este não é um povo de imbecis e não se pode permitir o cultivo da imbecilidade. É preciso pegar de novo o cavalo pelas rédeas e mudar o rumo da cavalgada; há muito tempo a sociedade civil brasileira se organiza para sobreviver ao governo.”

A esperança cristã
A hora já ia adiantada e Tolentino encerrou o encontro na UFBA provocando os jovens a assumir a própria responsabilidade em relação ao país. Mas a conversa sobre política e sociedade foi longe, continuou por mais algum tempo em uma lanchonete à beira-mar de Ondina e deu início a outras discussões e reflexões. Afinal, as perguntas que Bruno lançava – “Que país começa agora? Que país nós desejamos?” – não podem ser respondidas com uma nova utopia. Elas são um chamado de atenção à responsabilidade da sociedade civil em relação ao real, um convite ao protagonismo e ao gosto pela vida e pelo trabalho.
Portanto, trata-se de uma paixão que diz respeito a todas as pessoas e que pode encontrar consolo e força na experiência cristã. Afinal, se os escândalos políticos entristecem, só abalam realmente a esperança de quem se apóia em novas (ou velhas) utopias políticas, mas não quem sabe por que vale a pena construir e reconstruir uma sociedade.
Não foi à toa que o novo Papa assumiu o nome de São Bento: entre todas as urgências do nosso tempo, a maior delas é a de pessoas que “não anteponham nada ao amor de Cristo”, como diz a regra beneditina (4,21). A partir do amor de Cristo os monges reconstruíram o mundo à sua volta e responderam às necessidades de seu tempo, a amizade com Cristo foi o motor de uma nova civilização. Pois, como disse uma vez Luigi Giussani, “a esperança cristã está dentro da picareta usada contra a rocha do instante” (in O eu, o poder, as obras, Cidade Nova, São Paulo 2001, p. 170).

A reconstrução de uma sociedade

São Bento encontrou o mundo, física e socialmente, em ruínas, e sua missão foi restaurá-lo pelo caminho não da ciência, mas da natureza, não como se decidisse fazê-lo, não professando fazê-lo em tempo certo ou em qualquer série de golpes, mas de maneira tão silenciosa, paciente e gradual que, muitas vezes, até que a obra fosse concluída, não chegava a ser conhecida como em andamento. Era uma restauração mais que uma visitação, correção ou conversão. O novo mundo que ele ajudou a formar era antes um crescimento que uma estrutura. Homens silenciosos eram vistos pelo campo, ou descobertos nas florestas, cavando, limpando e construindo; e outros homens silenciosos, que não eram vistos, estavam sentados no frio claustro, cansando a vista e mantendo sua atenção fixa ao extremo, enquanto penosamente decifravam, copiavam e recopiavam os manuscritos que haviam salvo. Não havia um sequer que protestasse, fizesse reclamações ou prestasse atenção ao que se passava lá fora, mas aos poucos o pântano ou o bosque se tornavam uma ermida, uma casa religiosa, um seminário, uma escola de saber, e uma cidade. Estradas e aldeias ligavam-na a outras abadias e cidades que haviam crescido de maneira semelhante, e aquilo que o orgulhoso Alarico ou o cruel Átila tinham quebrado em pedaços, aqueles homens pacientes e meditativos haviam juntado novamente e dado vida. E então, quando no decurso de muitos anos eles tivessem ganho suas pacíficas vitórias, talvez novos invasores viessem, para a ferro e fogo destruírem em uma hora o lento e perseverante trabalho dos monges... No pó da terra jaz então o labor e a civilização de séculos! Igrejas, colégios, claustros bibliotecas. E nada lhes restava senão começarem tudo de novo. Mas isto eles o faziam sem resmungar, pronta e elegantemente, com toda tranquilidade, como se fosse por uma lei da natureza que viesse a restauração. Eram esses monges como as flores, os botões das grandes árvores que eles plantavam. Quando maltratadas essas árvores não se vingavam ou guardavam lembrança do mal, porém produziam novos ramos, folhas e botões, talvez em maior profusão ou de melhor qualidade pela própria razão de que os antigos ramos haviam sido rudemente arrancados.

(cf. John Henry Newman - Historical Sketches - Vol III, p. 410 ss.)

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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