No número de julho de Passos foi publicado o artigo “Uma vida que gera outra vida”, contando a história de André, jovem colegial de Siracusa (Itália), doente de leucemia, e de cinco prisioneiros que, por meio de um professor, conheceram a sua dramática situação. Embora não o tenham conhecido pessoalmente, escreveram-lhe cartas e rezaram por ele.
E, por meio dele, encontraram Cristo. Assim, simplesmente.
André morreu. Mas, para eles, os cinco presos de Brucoli, tudo mudou. Porque o cristianismo muda a vida, mesmo que se continue a fazer as mesmas coisas, mesmo que as condições continuem as mesmas: as grades de uma prisão. “A salvação chega, se Deus quer, como um belo dia”, lembrava Dom Giussani parafraseando Camus, e já não é mais possível deixar de comunicar a beleza encontrada e vista. Assim, Salvatore, um dos cinco de Brucoli, transferido para a prisão de Turim para poder visitar a mãe em coma no hospital de Asti, conheceu Natal, um jovem com quem ninguém queria compartilhar a cela porque, à noite, roncava tão forte que chegava a fazer tremer o beliche. Salvatore o acolhe em sua cela e começa a contar-lhe sobre seus amigos de Brucoli e sobre André e lhe mostra o artigo publicado em Passos. Quando voltou para a Sicília, Natal escreveu-lhe uma carta, reflexo de uma amizade nova e inesperada para ele. Há também a história de Giuseppe que, da prisão de Catanzaro, onde se encontra, escreveu para o professor e, ainda, a história dos cinco que escreveram para padre Carrón, a quem nunca viram.
Esta é a beleza do cristianismo: a salvação chega, misteriosamente, por uma história cheia de dramaticidade, a partir de um encontro que se comunica de pessoa a pessoa e dilata o espaço de uma amizade. O Senhor sempre cuida de nós, basta saber olhar. A iniciativa é Sua; a nós, basta dizer sim.
A seguir, publicamos mais algumas cartas desta história.
Caríssimo padre Carrón, somos nós, mais uma vez, os detentos da penitenciária de Brucoli. O homem renasce de um simples encontro, redescobre a própria dimensão e a própria identidade encontrando-se com uma presença que suscita uma atração e provoca um despertar do coração. Podemos dizer que “quem encontra um amigo encontra um tesouro”. Giovanni, nosso amigo e “pai espiritual”, que é o nosso professor de História, está aqui, está sempre perto de nós, nunca nos abandona e sentimos a necessidade de conversar com ele para aliviar a nossa angústia e o nosso tormento. Acolhemos com alegria o seu projeto de amor infinito e misericordioso que nos ensinou que a fé pode levar uma alma a um alegre acolhimento e que a oração é vida, serenidade, alegria e consolação. Estamos maravilhados pela paz que, agora, temos. Deus nos devolveu a graça, a luz interior. Este nosso “mestre” espiritual nos acolheu de braços abertos e sempre temos a sensação de ser abraçados pelo Senhor. Agora, sentimo-nos flutuar, tudo é mais bonito, mais mágico, mais límpido. É verdade que o mal provoca clamor mas há também tanto bem que ele não faz alarde. Em todos os lugares vemos a paternidade misericordiosa de Deus diante de nossos olhos e acreditamos verdadeiramente nEle, que nunca nos abandonou, nem mesmo naqueles momentos em que, abrindo os olhos, contemplamos estes muros e estas intermináveis portas fechadas que sepultam corpos sem lápides ou cruzes e sentimo-nos afundar num profundo abismo. Como temos dor pelo tempo passado em uma existência não digna de pessoas dignas, feitas à imagem e semelhança de Deus. Agora, porém, junto ao nosso professor, saboreamos o caminho de uma fé pura e alegre. Agora é o tempo e o momento de olhar para frente e deixarmos para trás o nosso passado. Queremos apenas percorrer juntos este estupendo caminho de fé e bondade.
Massimo, Antonio, Salvatore, Giuseppe e Peppe
Meu caríssimo e afeiçoado professor, recebi a sua carta e, com o coração cheio de alegria, respondo imediatamente para dizer-lhe que estou bem e que sempre espero ansiosamente a sua resposta. A sua amizade é uma das coisas mais bonitas que essa minha situação adversa me doou. Estou convencido de que a nossa amizade fraterna foi desejada pelo Senhor. Todas as noites, antes de dormir, leio um trecho da Bíblia, abro-a ao acaso e, freqüentemente, dentro deste maravilhoso livro encontro a resposta aos muitos porquês que me coloco. Há alguns dias, refleti sobre um versículo que o Senhor colocou diante dos meus olhos e que dizia, literalmente, para que eu não tivesse medo diante da prova que me era dada, porque junto com a prova me era dada a força para poder enfrentá-la. Perguntei-me: “Onde está essa força?”. A cada dia que passa, sinto-me cada vez menor diante de Deus, quase o último de seus filhos, na verdade o mais débil. Então, onde está essa força? Era difícil, para mim, reconhecê-la no meio da hostilidade e do abandono total. No entanto, as coisas não são como normalmente nós pensamos. Os planos do Senhor são tão claros que basta abrir os olhos para poder vê-los diante de si. A minha força, de fato, está em ter conhecido muitas pessoas novas das quais nem imaginava a existência. Uma amizade que gera o amor fraterno, a solidariedade, o altruísmo, a afeição: esta é a força! Entre todas as amizades que fiz nestes quase 10 anos de detenção, posso afirmar que a que tenho com você é a mais forte e mais bonita. Sexta-feira era o dia da sua visita semanal a mim e meus amigos em Brucoli, mas também é o dia da Divina Misericórdia que, com alegria comuniquei a você e aos meus companheiros. E é esta sexta-feira que dedicamos com fé ao Senhor o que torna a nossa amizade ainda mais forte e que é, sem dúvida, a chave da nossa existência. Tenho certeza de que esta é a resposta que eu procurava.
Hoje, conversei com minha família. Meus filhos e minha mulher disseram-me que sexta-feira você telefonou para minha casa e que sempre se informa sobre mim e minha família. Agradeço pelo seu nobre pensamento. Como posso esquecer-me de você? É difícil esquecer as obras do Senhor. Estou em contato com os meus companheiros de Brucoli e já soube da morte da mãe de Salvatore. Mandei-lhe as minhas condolências. Ele é uma grande pessoa e as coisas que o amigo que conheceu em Turim escreveu e que eu tive o prazer de ler graças ao senhor, demonstra isso. Estou orgulhoso de tê-lo conhecido. Também mande minhas carinhosas saudações a Massimo, Pippo e, em particular, a Antonino. Agradeço-lhe pela saudação que me enviou daquele tratante do Achille, mas, se me escreveu, realmente significa que não é mais um tratante.
Por fim, a você, meu caríssimo professor, envio um abraço bem forte. Levo-o em meu coração preciosamente como um dom de Deus. Lembro-me sempre de você e de sua caríssima família com alegria, em minhas orações. Quero-te bem, seu afeiçoadíssimo amigo, fraterno, aluno e filho espiritual em Cristo e Maria.
Giuseppe,
Catanzaro, 31 de agosto de 2005
Como é estranha a vida! Estou cada vez mais convencido de que certos acontecimentos não ocorrem por acaso. Tudo, nesta terra, acontece porque tem que acontecer e, embora, muitas vezes, não consigamos dar uma explicação e nos perguntemos o porquê, tudo tem um sentido e uma justificativa. Realmente, pode ser difícil compreender porque estou preso, suportando sofrimentos sem um real motivo, mas somente a fé em nosso Senhor me ajuda a enfrentar obstinadamente este enésimo obstáculo que me coloca, mais uma vez, à prova. Esta é uma experiência de vida que está me abrindo novos horizontes, eliminando preconceitos, fortalecendo meu espírito e forjando meu caráter, mas sobretudo está fazendo-me crescer apesar do ambiente hostil. Entre as inumeráveis experiências vividas, lembro-me de uma em particular: a amizade com Salvatore, um detento da Sicília que esteve aqui por alguns dias por causa de circunstâncias familiares. Posso dizer que, mesmo que tenhamos ficado juntos por pouco tempo, fiquei feliz e honrado por tê-lo conhecido.
Contou-me que o definiam como “altamente perigoso”, sem escrúpulos, um “mafioso”... e talvez o fosse. Mas os meus olhos viram, antes de mais nada, um homem, um pai com um coração grande e com valores e ideais já inexistentes, crescido na prisão que o levaram a este inferno e mesmo nesta dura realidade continuou os seus estudos, onde pôde aprender e apreender coisas que nenhuma escola ensina. Não entendo como um indivíduo, depois de 20 anos de prisão, pode ter uma serenidade e uma alegria na alma, somadas a uma positividade e um otimismo quase invejáveis. Tinha um modo de se expressar e uma maneira de se comunicar que encantava escutá-lo. É uma pessoa condenada a estar durante anos longe da própria família e, entre outras coisas, perdendo, durante o período de reclusão em Turim, a sua adorada mãe, com o corpo ferido pela separação neste mar de cimento e grades, guardado por muros altos, que consegue ter uma alegria de viver e uma força interior incrível. Lembro-me que por ocasião da morte da mãe não derramou nenhuma lágrima, escondendo a dor dentro de si mesmo e mantendo sempre uma serenidade e uma lucidez incomparáveis, encontradas somente em grandes homens. O que é impressionante é que, apesar de tudo, transmite energia aos que estão perto dele, e este é um dom divino.
Deus quis que eu recebesse esta mensagem e que, durante o meu caminho, conhecesse estas coisas. As formas de nosso Senhor manifestar-se são inumeráveis. Para mim, escolheu Salvatore. Aprendi muito, apreendi muito, esperei muito, recebi muita riqueza e com grande pesar me despedi dele quando voltou à Sicília. Com os olhos cheios de tristeza, não lhe disse adeus, mas até breve. Trocamos cartas contando as novidades, nos mantemos em contato, um contato que desperta a esperança e nos faz continuar vivos.
Ele permanecerá sempre em meu coração e poderei, um dia, contar que conheci um homem vindo de longe, famoso em uma penitenciária como alguém que não possuía emoções ou sentimentos, uma pessoa muito perigosa e temida e que, no entanto, com altruísmo e generosidade (qualidades que o diferenciam, principalmente) deu-me um grande tesouro que eu guardarei para sempre com cuidado: chama-se “Amizade”.
Em qualquer lugar que esteja, venha de onde vier, Obrigado!!
Seu amigo Natal,
Turim, agosto de 2005
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Aquilo em que fui mergulhado
O pai de André nos enviou estas anotações que ele, já doente, escreveu depois de uma conversa por telefone com seu amigo Marcello e que foram lidas em um encontro dos colegiais.
Premissa: são breves pensamentos formulados à noite e colocados juntos; por isso, há a possibilidade de resultarem inconclusos e incompreensíveis e de não haver uma fluência no texto.
O bonito de algumas experiências negativas é que, freqüentemente, é possível encontrar, nelas, um aspecto positivo. O aspecto positivo desta experiência é que, finalmente, percebi a grandeza daquilo em que estou mergulhado. Toda a manifestação que recebi por parte do Movimento, embora de uma grandeza colossal, não é, porém, de forma alguma, comparável com o encontro que é possível fazer lendo a Escola de Comunidade ou indo às reuniões porque, no meu caso, experiência e fato são vividos ao mesmo tempo, não em um discurso ou em um período determinado. Como tudo isso aconteceu? A “gota que fez o vaso transbordar”, a “mola propulsora” foi um telefonema que recebi de padre Giorgio de Milão, responsável nacional pelos colegiais na Itália. Saber que era possível receber um telefonema dele me fez pensar em todo mundo: nos amigos de Siracusa, naquelas pessoas que não me conheciam absolutamente, mas se interessavam por mim; também me fez pensar no fato de um “mar” de gente ter feito um “oceano” de coisas por uma pessoa que está doente e em quão grande é o afeto que se pode receber. Até agora não tinha conseguido entender o verdadeiro laço que me ligava ao Movimento: tinha-o entendido muito superficialmente e não o considerava tão forte assim. Naquele dia, finalmente, entendi a correspondência biunívoca entre o bem que as pessoas me querem e a necessidade que eu tenho disso para seguir em frente. Levantando os olhos vi o cartaz de Páscoa, e como um “golpe fulminante”, de repente, descobri que o verdadeiro significado da encarnação de Cristo estava em tudo aquilo que me acontecia, em todas as pessoas que estavam perto de mim.
Quando um homem está em dificuldades é como uma garrafa furada cheia de água que escorre: a pessoa em si é a garrafa, a água é a esperança, o buraco, o mal. Conforme o tempo passa a água se esvai, escorrendo pelo buraco. Se a esperança acaba, tudo termina. Para resolver o problema é necessário ou tapar o buraco ou colocar mais água de outro recipiente, ou outras fontes que possam alimentá-la. No meu caso, os recipientes fornecedores foram os telefonemas que recebi, o conhecimento de tudo o que já tinha sido feito e que estava sendo feito por mim, o canto, e saber que Cristo nos ama sempre, em particular no sofrimento, reafirmado tanto na Páscoa como nas palavras de padre Giorgio. Não escondo, de fato, que nos poucos momentos de desconforto, cantava, em particular, Se Tu me Acolhes porque na última estrofe me descreve: pois na angústia mais profunda/ quando o inimigo ataca / se a Tua graça me circunda / não temerei qualquer mal / te invocarei meu Redentor / e ficarei sempre contigo.
Concluindo, é difícil explicar a grandeza experimentada naquele momento porque não existem palavras suficientemente grandes para contê-la; espero ter sido o mais claro possível, embora para entender completamente seja necessário experimentar.
André
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