Gilbert Keith Chesterton, nascido em Kensington, Inglaterra, no ano de 1874, foi um dos maiores escritores britânicos do século XX, e também um dos mais injustamente esquecidos autores católicos dos últimos tempos. Autor prolífico, escreveu mais de cem livros que vão desde incursões jornalísticas até ensaios teológicos, ou “ruminações”, como ele próprio os definia. De tradição anglicana, Chesterton converteu-se ao catolicismo aos 48 anos de idade. Suas narrativas recheadas de divagações filosóficas e de um profundo sentido metafísico são a sua característica mais marcante, que vai se intensificando e se tornando cada vez mais incidente sobre sua obra conforme sua visão de mundo evolui para uma profunda catolicidade. Neste sentido, Chesterton foi genial em sua capacidade de utilizar sua vasta obra como uma verdadeira vitrine de suas idéias sobre a modernidade, idéias estas que servem como alerta ao homem moderno sobre a inevitável perda de sentido do “humano” que abateria nosso século como resultado dos ideais iluministas que se espalharam pela Europa nos anos de 1800.
Cresceu nas décadas finais do século XIX, nos anos melancolicamente chamados de fin-de-siècle, marcados, tanto na ciência quanto na filosofia, por uma visão profundamente antropocêntrica que levou o homem daquela época a uma drástica perda dos horizontes, e à trágica (des)ilusão de pensar “já ter chegado tão longe quanto se poderia ir” – basta ver que neste período, alguns físicos temeram o fim da própria física por não haver mais nada a se descobrir. Chesterton resumiu este sentimento de forma precisa ao dizer que seu mundo “está, em verdade, velho demais”.
Faleceu em 1936. Apesar da grande difusão de suas obras na primeira metade do século XX, sua fama de “propagandista católico” foi um fator determinante para que sua fama ficasse ofuscada pela de autores contemporâneos mais sintonizados com a ideologia dominante. No Brasil, suas obras tiveram baixa expressividade, sendo que sua maior influência nacional encontra-se na marcante obra de Gustavo Corção.
O real e a razão
O ponto central por trás de sua crítica está na perda de consciência do “Real“ decorrente de uma subversão do conceito de razão que passava a se identificar como racionalismo. Um grande exemplo desta crítica está em um de seus livros mais famosos, intitulado O Homem que foi Quinta-feira: Um Pesadelo, de 1908. Neste livro, Chesterton (com muito bom humor – uma de suas grandes marcas) narra as investigações de um policial inglês sobre um grupo anarquista que planejava atentados pela Europa com o objetivo de destruir a civilização. Aqui, ele não só critica a falência dos ideais de liberdade e igualdade que levam ao crescimento do movimento anarquista como reação ao burguesismo europeu de então, mas também a perda de objetividade com relação à realidade, que se expressa na palavra “Pesadelo”, adicionada como subtítulo da obra; sobre isso, Chesterton afirmou que a intenção do livro “não era expor uma realidade vigente, mas sim a imagem deturpada que as pessoas poderiam ter dela”.
Neste contexto, Padre Brown surge como o melhor personagem que Chesterton encontrou para suas críticas à modernidade, tanto que importantes críticos seus, como Jorge Luis Borges, não hesitaram em traçar paralelos entre o personagem e a pessoa do autor. Os contos de Padre Brown são certamente as obras mais conhecidas de Chesterton, tendo sido escritas entre 1911 e 1935, e servindo portanto como uma amostra bastante completa da evolução de suas idéias.
Não é por acaso que Chesterton tenha escolhido um padre para fazer o papel de detetive em suas histórias. Diante de uma Europa cada vez mais positivista e secularizada, somente um personagem com um conceito justo de razão poderia ter a clareza para avaliar a realidade em sua totalidade, e, portanto, resolver os casos mais difíceis que se lhe apresentassem. Padre Brown é de fato um dos mais geniais detetives da história da literatura. Diferente dos fabulosos personagens de Edgar Allan Poe e Arthur Connan Doyle, que se defrontam com a inacreditável perversidade de grandes vilões, ele enfrenta os pecados de homens comuns, porém não com a intenção de capturá-los (porque na verdade ele é um padre, não um detetive), mas, preocupado com seu destino e humanidade, procurando apenas seu arrependimento e sua confissão.
Além disso, a solução que Padre Brown encontra para seus casos nunca é uma grande teoria; sua genialidade está numa capacidade única em separar os fatos das interpretações, e, portanto, em uma profunda objetividade ao olhar para a realidade. É claro que com isso Chesterton queria afirmar que a Igreja é o único lugar onde se pode encontrar um conceito de razão e uma capacidade de análise realmente correspondentes à realidade, e portanto verdadeiros. Num mundo onde a confusão sobre este conceito foi tão grande a ponto de fazer germinar um niilismo passivo mesmo entre a elite intelectual, que abdicou de indagar-se sobre a Verdade, não por desamor – como Nietzsche – mas por esquecimento, Chesterton sustentou até o fim, fazendo suas as palavras de padre Brown, que enquanto “alguns estão convencidos de que esse Enigma Universal é um problema insolúvel, outros têm igual certeza de que para ele há uma única solução.”
Trechos
Três trechos muito especiais ilustram esta forte afeição que padre Brown nutre pela realidade, semente de uma inigualável atenção para com o mundo e de uma consciência de sua humanidade que o permite se reconhecer pecador como os criminosos que encontra e olhar para eles com uma compaixão tal que nunca mais é dissociada da imagem do personagem.
No conto “A Cruz Azul” (1911), um famoso ladrão de jóias francês chamado Flambeau disfarça-se de padre e fica amigo do Padre Brown para lhe roubar um crucifixo valioso. Durante um diálogo teológico começam a discutir sobre a razão; neste ponto Chesterton aproveita para contrapor o conceito de razão católico ao relativismo. Eis o trecho:
O padre mais alto inclinou a cabeça, em sinal de aprovação, e disse:
– Sim. Esses infiéis modernos apelam para a sua razão; mas quem pode olhar para aqueles milhões de mundos lá no alto e não sentir que deve haver acima de nós maravilhosos universos onde a razão é completamente irracional?”
– Não! – protestou padre Brown. A razão é sempre racional, mesmo no limbo, no mais baixo limite das coisas. Sei que se acusa a Igreja de depreciar a razão, mas o que ocorre é exatamente o oposto. A Igreja é a única na Terra que torna a razão realmente suprema. É a única na Terra que afirma que o próprio Deus está preso à razão.
Após Flambeau tentar (sem sucesso) roubar a cruz, Padre Brown conta como havia descoberto que ele não era de fato um padre:
– Como raios você conhece todos estes horrores? – perguntou Flambeau.
– Acho que foi por ser um solteirão otário – disse Brown, com um leve sorriso. Nunca lhe passou pela cabeça que um homem que não se cansa de ouvir os pecados dos outros não pode ignorar a maldade humana? Mas, na realidade, outra coisa me fez ter certeza de que você não era padre: você atacou a razão. Isso é má teologia.
Em “Os Pés Esquisitos” (1911), Flambeau comete um crime num hotel em que Padre Brown está fazendo um trabalho, e é surpreendido por ele, que percebe o ocorrido, fazendo com que o bandido se confesse. Flambeau havia roubado objetos valiosos de um grupo de aristocratas auto-intitulado “Os Doze Verdadeiros Pescadores”. Depois do roubo, os aristocratas saem numa busca pelo hotel e encontram padre Brown, que lhes revela o acontecido. Segue o diálogo travado quando os homens lhe perguntam sobre a captura do bandido, e sobre o que Flambeau lhe havia dito:
– Ah, percebo, ele se arrependeu! – ironizou um dos aristocratas.
Padre Brown levantou-se, pondo as mão para trás.
– Estranho, não acham – disse ele – que um ladrão e um vagabundo devam se arrepender, enquanto tantos que são ricos e seguros permanecem duros e frívolos, sem nada a oferecer a Deus ou ao homem? Mas sobre sua questão, se me desculpam, vocês invadem um pouco a minha província. Se vocês duvidam da penitência como um ato prático, eis aqui vossos objetos. Vocês são os “Doze Verdadeiros Pescadores”, e eis aqui seus peixes. Mas Ele me fez pescador de homens.
-- Você o pegou? – perguntou o coronel.
– Sim, eu o peguei! Mas com um anzol invisível, e uma linha longa o suficiente para deixá-lo vagar até os confins do mundo, e ainda assim capaz de trazê-lo de volta com um pequeno puxão.
Em “O Oráculo do Cão” (1926) acontece um crime estranhíssimo, onde o comportamento de um cachorro, descrito a Padre Brown por um amigo que tentava solucionar o caso, acaba dando a pista. Durante vinte páginas, o amigo propõe uma teoria baseada no cachorro e falha em resolver o problema. Depois que Padre Brown lhe revela a verdade e lhe conta como havia chegado até ela por meio do mesmo cachorro, seu amigo, perplexo, pede explicações, ao que o padre responde, aproveitando para denunciar aquele segundo sintoma da perda da razão que acompanha a confusão do homem moderno diante das coisas, o misticismo:
-- É engraçado, mas, afinal de contas, o cão realmente era parte da história, observou Brown. De fato, ele quase que poderia ter-lhe contado a história, se soubesse falar. A minha objeção é a de que, como ele não sabe falar, o senhor o lançou como herói da história e o fez falar com as línguas dos homens e dos anjos. Faz parte de uma coisa que tenho observado ser cada vez mais freqüente no mundo moderno, nos noticiários de jornais e nas conversas; algo que é arbitrário, sem ser autoritário. As pessoas engolem prontamente quaisquer afirmações sobre isso ou aquilo. É uma coisa que está afogando todo o velho racionalismo e o ceticismo, e que avança como um mar; seu nome é superstição. (...) O primeiro efeito da perda de fé em Deus é que se perde o senso comum e não se pode mais ver as coisas como são. Qualquer coisa a que alguém se refere dizendo que é importante, amplia-se indefinidamente, como uma visão num pesadelo. E um cão se torna um agouro, um gato um mistério (...), convocando toda a fauna do politeísmo, do Egito à Índia antiga, voltando-se aos deuses bestiais do início. E tudo porque se tem medo de quatro palavras: “Ele se fez Homem”.
O jovem levantou-se um tanto embaraçado, quase como se tivesse ouvido um solilóquio. Chamou o cão e saiu, depois de uma breve despedida. Teve, porém, de chamar o cão duas vezes, pois o animal ficara imóvel por um momento, olhando para o padre Brown, como o lobo olhou para São Francisco.
Os contos do Padre Brown estão divididos em cinco livros: “A Inocência de padre Brown”, de 1911, “A Sabedoria de Padre Brown”, de 1914, “A Incredulidade de Padre Brown”, e “O Segredo de Padre Brown”, ambos de 1926, e “O Escândalo de Padre Brown”, de 1935. Em português, seus livros são publicados pelas editoras “Europa-América” e “Graal”; em inglês excelentes coletâneas são editadas pela “Oxford Classics”, e pela série Collector´s Library da CRW Publishing Limited. As obras completas são publicadas pela “Penguin UK”.
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PARA LER:
Obras de G. K. Chesterton disponíveis em português:
- A Sabedoria do Padre Brown, Ed. Graal.
- O Homem Invisível e Outras Histórias do Padre Brown, Ed. Imago.
- O Homem que foi Quinta-Feira: um Pesadelo, Ed. Germinal.
- Ortodoxia, Ed. LTR.
- São Francisco de Assis, São Tomás de Aquino, Ed. Ediouro.
Alguns sites na Internet:
- Chesterton Institute for Faith & Culture, http://academic.shu.edu/chesterton/
- American Chesterton Society, http://www.chesterton.org/
- Obras de Chesterton podem ser lidas em Inglês em http://www.chesterton-library.net/.
- O Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP apresenta um artigo do prof. Oliveiros Ferreira sobre Chesterton no endereço http://www.pucsp.br/fecultura/olivei02.htm.
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón