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Passos N.63, Julho 2005

DOUTRINA SOCIAL - REALIDADE BRASILEIRA

A Doutrina Social da Igreja e a realidade política do Brasil

por Francisco Borba Ribeiro Neto

Diante dos conturbados mares da vida política, a Doutrina Social da Igreja procura oferecer um caminho seguro para a pessoa humana. Trata-se de um caminho frágil, que reconhece os limites e as contradições de todos nós; mas seguro, pois se baseia numa visão realista do ser humano, de suas potencialidades e de suas necessidades

Entre 20 e 23 de junho, o cardeal Renato Raffaele Martino, presidente do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” do Vaticano lançou no Brasil o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (Paulinas, 2005). Trata-se de uma síntese dos caminhos que a Igreja Católica, “mestra em humanidade”, indica para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna e um “humanismo integral e solidário”. O livro chega ao Brasil durante uma das maiores crises éticas da vida política nacional. Vale a pena refletir sobre o nosso momento atual a partir das indicações presentes no Compêndio...

A integralidade da pessoa humana

A Igreja, sobretudo a partir do magistério de João Paulo II, proclama que na base de toda a ordem social deve estar a pessoa humana e o respeito à sua dignidade. Esta pessoa não se reduz a um indivíduo autônomo, consumidor de bens numa sociedade vista como mercado, nem a um fruto das relações materiais de produção. Trata-se de um ser marcado pelo desejo de realização do belo, de bom, do justo, do verdadeiro; pelo desejo de superação de seus limites, de encontro com o Transcendente. Nisto, se descobre carente de um Outro e, ao mesmo tempo, incapaz de realizar-se senão por meio do dom de si mesmo a um outro. Por isso, a pessoa humana só se compreende em função do amor, e não de qualquer amor, mas de um Amor total – capaz de dar sentido a toda a sua vida.
Esta visão aponta para o verdadeiro sujeito e o verdadeiro sentido de toda ação social, que não é um indivíduo autônomo tentando satisfazer-se com seus desejos parciais, nem um partido lutando a todo custo para chegar ao poder e manter-se nele. O sujeito da ação social é a pessoa, um ser que procura sua realização na consciência de ser amado, doando-se a outros. Assim entendemos muito melhor a natureza, a riqueza e a destinação de toda a multiplicidade de movimentos sociais e organizações que marcam os tempos atuais. Elas não existem para si mesmas, nem para serem cooptadas por um partido, mas sim para que a pessoa humana possa ser protagonista na construção da sociedade, ajudando-a a caminhar para a realização de seu desejo de “verdade, liberdade e justiça”.
Porém, esse ser humano é incapaz de manter-se plenamente fiel a tal desejo, pois “aliena-se de si mesmo”. É um ser contraditório, que “não faz o bem que quer, mas sim o mau que não quer”. Isso é o pecado, compreendido em toda sua dimensão antropológica e não em suas reduções moralísticas. Contudo, a cultura moderna procurou negar a evidência do pecado, do caráter contraditório da natureza humana. Para alguns o homem seria naturalmente bom, apenas corrompido pela sociedade. Para outros seria uma “página vazia” preenchida a partir das relações sociais: se a sociedade fosse boa, o homem seria bom; se fosse má, o homem seria mau. Em ambos os casos, bastava transformar a sociedade e teríamos homens bons. Outros ainda, entenderam o mau como uma doença, uma degenerescência que afetaria alguns homens apenas – que deveriam ser excluídos da sociedade para o bem dos outros, os sadios.
A corrupção política é uma decorrência deste caráter contraditório da pessoa humana. Quando ela é descoberta, é sinal claro que está havendo uma melhora na organização da sociedade, que as pessoas estão mais alertas e menos coniventes com uma situação de injustiça. O grande problema aparece quando alguns se colocam acima do caráter contraditório do ser humano, como se apenas os outros pudessem ser maus e eles fossem sempre bons. Esta lógica maniqueísta leva a uma honestidade ilusória, que desobriga as pessoas de criarem mecanismos de controle e vigilância, e acaba levando a situações de corrupção ainda piores.
Por outro lado, existe uma lógica segundo a qual o partido é o único sujeito da transformação da sociedade. Esta lógica potencializa ainda mais a corrupção. Se um partido é o único que pode mudar a sociedade, tudo o que ele faz será desculpável – em nome da construção de um mundo mais justo e igualitário. Quem detém o poder, passa a se ver como acima das contradições das pessoas comuns, acima do bem e do mau, e portanto livre dos juízos éticos que determinam o que é uma situação de corrupção e o que é a administração da coisa pública visando o bem comum. Assim, acaba-se perdendo de vista o ideal original e o poder acaba se tornando um bem em si mesmo.

Subsidiariedade e organização da sociedade

A Doutrina Social da Igreja não se restringe a uma análise da ética na política. Não se trata apenas, como muitas vezes se pensa, de dizer que todos devem ser bons e basta! Ainda que a Igreja sempre insista no papel da liberdade e da opção pessoal de cada um pelo bem, dá indicações concretas de como organizar a sociedade para minimizar problemas como o da corrupção.
As causas da corrupção são várias. Cada país encontra, nas suas raízes históricas, mecanismos diversos através dos quais a ela se estabelece. Porém, um dado permanece comum a todas as situações: quanto menor o controle da sociedade sobre o Estado, quanto maior o poder concentrado nas mãos dos governantes, maior será a possibilidade da corrupção ocorrer.
O Brasil é um país com uma longa tradição de Estado forte e sociedade fraca. Uma tendência a centralizar tudo nas mãos do Estado sempre existiu entre nós. Contudo, esta tendência se acirrou recentemente, deixando espaço para o crescimento da corrupção. Um Estado excessivamente forte facilmente passa a servir aos interesses de seus próprios integrantes, ao invés de servir aos interesses da sociedade, e se torna autoritário, suprimindo o espaço de atuação dos cidadãos. Torna-se muito difícil combater a corrupção, pois os governantes e seus colaboradores tendem a ver o Estado como algo seu e não como “coisa pública”.
Nesta perspectiva, a Igreja sempre defendeu uma organização subsidiária das relações entre Estado e sociedade (ver Box) Quanto mais organizada a sociedade estiver, quanto mais houver grupos, entidades e organizações capazes de responder às demandas sociais, menor o espaço para o crescimento da corrupção. Contudo, a grande força da subsidiariedade consiste no respeito à pessoa humana e à sua capacidade de construir um mundo mais humano à sua volta. Este respeito gera uma postura mais objetiva – que olha mais para as necessidades reais e potencialidades de cada um do que para esquemas ideológicos.

A construção de sujeitos sociais

Para que a subsidiariedade seja real, contudo, é preciso que as pessoas não estejam fechadas em posturas individualistas ou de busca pelo poder. O Compêndio recupera a expressão “amizade civil” para indicar uma postura onde as pessoas estão juntas não apenas por interesses comuns, mas pela aspiração ao bem do outro, por aquele desejo que está no coração da pessoa humana.
Mas este desejo e esta amizade, ainda que naturais ao homem, não se desenvolve espontaneamente. Pelo contrário, desenvolvem-se como resultado de um processo educativo e podem, inclusive, ser silenciados pelo poder. Assim, a Igreja irá sublinhar a importância da família e dos demais espaços educativos onde o ser humano adquire esta autoconsciência de si como pessoa.
A família é a maior segurança contra a redução individualista e a anulação do ser humano pela massificação e pelo coletivismo, porque nela a pessoa está sempre no centro das atenções como fim e não como meio, explica o Compêndio. Mas sem dúvida a sociedade atual não é mais capaz de gerar naturalmente famílias assim. O individualismo e o utilitarismo já corromperam em grande parte nosso tecido social, colocando em xeque a capacidade construtiva das famílias. Mas, se a família vive momentos difíceis, isto não quer dizer que tenha deixado de corresponder à natureza da pessoa humana. Significa – isto sim – que é necessário fortalecê-la e encontrar espaços onde ela possa ser ajudada.
Por outro lado, as várias entidades e organizações que compõem o tecido social também devem ser ajudadas a redescobrir em suas práticas, este papel educativo. Por tudo isso, educar pessoas humanas conscientes de seu desejo é uma das missões mais importantes da companhia entre os cristãos, pois a Igreja se revela como um grande espaço de reconstrução de sujeitos sociais livres e construtivos no seio da sociedade moderna.

Conclusão

Por muito tempo a Doutrina Social da Igreja foi considerada uma ideologia conservadora, que aspirava a volta a uma sociedade nos moldes medievais. Ela estaria lutando contra aquisições inevitáveis do progresso social. A política, por exemplo, havia se libertado definitivamente dos comprometimentos éticos e podia agora ver-se como pura luta pelo poder e organizar um “contrato social” que minimizava os efeitos maléficos desta luta. A vida social caminhava para o fortalecimento das relações impessoais que caracterizam o mercado e para o fim dos laços amigáveis e fraternos das pequenas comunidades. O Estado laico satisfaria as necessidades de organização da sociedade, atendendo a todas as demandas que ainda restassem ao homem. E assim por diante...
O tempo mostrou que não era bem assim. A ética continua sendo uma exigência inextirpável nas relações políticas. O homem continua lutando contra a impessoalidade que marca as relações sociais atuais e procurando encontrar espaços de uma convivência fraterna e amigável. O Estado moderno está em crise. A proliferação de ONG’s e organizações similares mostra que a Igreja, ao defender a autonomia e o espaço das diversas formas de associação na sociedade não estava querendo voltar a um passado comunitário, mas valorizar aquilo que é permanente na natureza humana.
Porém, acima de tudo, paira a experiência dos homens resgatados pelo amor de um Outro, que nos acolhe em nossas vitórias e em nossas derrotas. Assim, o Compêndio termina com esta bela citação de Santa Tereza do Menino Jesus: “Ao entardecer desta vida, comparecerei diante de Vós com as mãos vazias, pois não Vos peço, Senhor, que contabilizeis as minhas obras. Todas as nossas justiças têm manchas aos Vossos olhos. Quero, portanto, revestir-me da Vossa justiça e receber do Vosso amor a posse eterna de Vós mesmo…”

 
 

Credits / © Sociedade Litterae Communionis Av. Nª Sra de Copacabana 420, Sbl 208, Copacabana, Rio de Janeiro - RJ
© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón

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