A experiência da vitória de Cristo no cotidiano doméstico. A formação de um “povo novo” na história que investe a sociedade e realiza o cumprimento da vida
Ao explicar a frase “a vitória de Cristo é o povo cristão”, padre Julián Carrón diz que: “O povo cristão é o acontecimento reconhecido. É o conjunto das pessoas investidas por este acontecimento que forma o povo novo. A vitória é esta atração poderosa de Sua presença, esta beleza imponente que nos atrai sempre, que nos faz, que nos afeiçoa” (in Passos outubro/2004, encarte p. 16; nde). Por isso, esta vitória é, antes de tudo, algo que nos é dado, que aconteceu para nós, na simplicidade e na pequenez de nossa vida cotidiana.
O movimento Comunhão e Libertação constitui-se num amplo caminho educativo por meio do qual este “povo novo” entra em nossa vida e nos permite fazer a experiência desta vitória de Cristo. Para entender melhor como isto se dá no dia-a-dia, pedimos a cinco de nossas amigas que procurassem contar como têm vivido esse caminho em seu cotidiano.
Um povo novo no meio do mundo
Aos olhos dos próprios membros, a comunidade de Florianópolis (SC) não parece muito grande. São algumas famílias jovens. É Suzana Tarifa quem narra a experiência do grupo: “A vitória de Cristo se manifesta no fato de existir em Florianópolis uma comunidade do Movimento. Em uma cidade em que o que mais se percebe é o hedonismo, o culto ao corpo, pessoas espiritualistas e sentimentais (e que não querem de jeito nenhum usar a razão), o maior milagre é que possa existir um grupo, ainda que pequeno, de pessoas marcadas pelo encontro, que desejam seguir a Cristo, dentro da história do Movimento”.
A vitória de Cristo se manifesta, em primeiro lugar, na constatação que cada um faz de que foi “marcado pelo encontro”, escolhido e chamado por um gesto de amor de um Outro. Olhamo-nos fascinados ao perceber que este chamado nos colocou juntos, deu uma dimensão nova para nossa vida.
Suzana continua: “Pertencer a essa comunidade me sustenta no desejo de viver com fidelidade minha vocação, me dá coragem de educar os filhos que tenho e manter aberta a possibilidade de gerar outros. Eu, sem o Movimento, vinda de uma família muito desestruturada, não me casaria nem teria filhos. No encontro com esse carisma percebi a positividade pela qual vale a pena fazer qualquer sacrifício e a vida se torna útil e cheia de significado. Cristo me venceu no fato que o que sou hoje não chega nem perto do que eu havia imaginado para a minha vida, e que graças à misericórdia dEle sou muito mais feliz. E assim é com os meus amigos, que tão frágeis como eu, se arriscaram a formar famílias, na cidade que é a capital dos divórcios no Brasil, em que a fidelidade ao matrimônio é coisa praticamente impossível e se opta, quando muito, por dois filhos, para não estragar a vida de casal ou o corpo da mulher. Aqui somos um escândalo, pois temos famílias que já têm três ou quatro filhos, disponíveis ao Mistério, abertas a mais filhos. Somos considerados loucos ou corajosos, mas ao mesmo tempo somos um sinal visível dessa positividade última e por isso sinal de esperança de felicidade para os que nos encontram”.
A vitória de Cristo acontece em cada um de nós, nos abrindo para nossa própria vida, para toda a potencialidade de nossa humanidade, que é despertada a partir da certeza de sermos amados e acolhidos por Ele. Na simplicidade e na apenas aparente banalidade de cada gesto cotidiano vai se revelando a face deste povo novo no mundo. E assim nos tornamos sinal para nós mesmos e para o mundo!
A obediência às circunstâncias
Eloísa Colombo, de Sorocaba (SP), explica que quando ouviu pela primeira vez que “somos livres na dependência e na obediência” ficou muito intrigada. Como era possível viver essa aparente contradição? Hoje, casada há 21 anos e mãe de um casal já crescido, pensa que foi o seguir essa provocação que a fez ir jogando toda sua vida na comunhão com Cristo. Isso porque Cristo se oferece a nós pela realidade concreta do dia-a-dia, nos trabalhos da casa, na educação dos filhos, no relacionamento com o marido, no trabalho, nas amizades, etc. “Tudo, mas tudo mesmo, é possibilidade de encontro”, explica Eloísa. “Sem pretensões, sem medidas. Aí está a liberdade! Por exemplo: eu casei com esse homem e não outro e isso tem repercussões em toda a minha pessoa”.
“A obediência às situações concretas cria novas possibilidades e nos ajuda a comprender o que Deus realmente quer de nós”,continua. “Um exemplo concreto para mim de como o Senhor se manifesta na realidade foi o tempo que cuidamos da minha sogra. O fato da dona Maria vir morar conosco, em Sorocaba, fez com que eu mudasse meus planos de mestrado na USP para a universidade daqui. Com isso encontrei a realidade educacional local e, ao término do curso, fui convidada para dar aulas no ensino médio. Passei a viver com meus alunos o desejo que tenho com meus filhos: de que eles encontrem a Cristo. Daí nasceu um pequeno grupo de colegiais aqui em Sorocaba que me provoca o tempo todo à oração e ao agradecimento de uma Presença tão viva na minha vida. Olhando para o tempo que vivi com a dona Maria – foram 6 anos e meio – percebo que viver essa circunstância imprevista na minha vida me ajudou a assumir mais a minha família, que é a minha vocação primeira, e a minha profissão como educadora”.
O povo novo em cada família
Há alguns anos, Bete e César foram morar em Jundiaí, no interior de São Paulo. Depois de algum tempo, foi proposto a Bete que, como caritativa, acompanhasse os grupos de colegiais e universitários. Ela começou a fazer este trabalho e a família foi sendo envolvida. O casal teve necessidade de auxílio para poder viajar para os retiros do Movimento e seus filhos inicialmente foram acolhidos por uma amiga, Hana, e depois que ela começou a fazer parte da Fraternidade 1, os meninos do grupo de universitários ficam com eles. As crianças foram sendo introduzidas no Movimento a partir destes acontecimentos. Vão aprendendo que uns cuidam dos outros, por um amor, por um desejo de felicidade. Este ano trocaram ficar na casa de amigos de escola para ficar com os amigos do Movimento em Americana, com crianças da idade deles.
Na obediência às circunstâncias e às provocações da companhia, vai surgindo um contexto no qual a pessoa e a família vão descobrindo sua vocação e ganhando um modo novo, católico – isto é universal – de viver o próprio cotidiano. A família passa a se conceber como parte deste povo novo, desta unidade que “começou dois mil anos atrás e segue pela eternidade, e que se chama comunhão dos santos”, por meio de gestos simples como as férias das crianças.
Mas a integralidade desta experiência, na família, no casamento ou em qualquer outra dimensão da vida, nos é dada como dom, e por isto temos que pedir. Bete conta que o que mais a ajudou a viver a integralidade entre o Movimento e a família foi a experiência de oração do casal. “Nossos filhos foram sendo educados a fazerem a oração em família. Todos rezamos um Ângelus todos os dias antes de sair de casa e, à noite, só nos, o casal. Isto nos torna mais atenciosos uns com os outros, temos nossas brigas, como qualquer um, mas é possível logo retomar, conversando e rezando sobre as dificuldades a serem enfrentadas. Descobrimos que nossa vocação é amar a circunstância onde estamos e reconhecer aí o rosto misericordioso de Cristo. Isto nos dá a liberdade para ficarmos em casa cuidando das crianças ou cuidando de uma Secretaria de Saúde. Mas esta consciência só é possível seguindo aquilo que nos é proposto, perguntando sempre o que o Senhor quer de nós agora e pedindo para que Ele venha em nosso auxílio, ajudando nas circunstâncias. Pedimos a Nossa Senhora e de repente aparece alguém que diz algo que reconhecemos como sinal (resposta) a nossa súplica”.
Missão, vocação e tarefa
Em nosso percurso, vai se tornando claro como aquilo que o Movimento nos pede para fazer, gestos, encontros, Escola de Comunidade 2 , nos são indicadas para o nosso bem e não por uma necessidade organizativa ou política. Na obediência a estas provocações vamos compreendendo nossa vida como parte deste povo novo e nos surpreendendo conosco mesmo, com aquilo que Deus faz em nós, em como o encontro nos mostrou aquilo que somos, que desejamos de mais profundo.
Aparecida e Iracema são da comunidade de São Paulo. Seu grupo de Fraternidade tornou-se responsável, há dois anos, por organizar a via-sacra que o Movimento promove todos os anos na Paulista, uma das avenidas mais importantes da cidade, e que este ano contou com cerca de 1.500 pessoas. Ambas contam que a proposta para organizarem a via-sacra nasceu de uma forma simples, do atendimento a uma necessidade.
“Numa reunião de nossa fraternidade”, contam Iracema e Cida, “alguém perguntou a respeito da via-sacra na Paulista. Responderam que não aconteceria, porque ninguém havia assumido a responsabilidade. Começamos a conversar sobre isto e, de repente, o milagre aconteceu: um se ofereceu para procurar um carro de som; outros se responsabilizaram pela segurança, e assim por diante. Então cada um descobriu que quem ama é criativo e quem está com os olhos abertos é capaz de fazer aquilo que inicialmente pareceria impossível”.
Iracema diz ainda que “quando chegamos à igreja, no final da via-sacra, uma senhora virou-se para mim e me perguntou sobre a caminhada. Ela estava encantada com tudo que via e ouvia. Falei-lhe sobre CL e, como ela mora no Equador, passei-lhe o site do movimento e meu e-mail”. De repente, a importância de um gesto com 1,5 mil pessoas se revelava na simplicidade daquele encontro entre elas duas, na possibilidade de conversarem e de compartilharem aquilo que estavam vivendo naquele momento.
O mais surpreendente, nos ensina padre Giussani e nos lembra padre Carrón, é a correspondência inesperada entre o desejo de nosso coração e aquilo que encontramos. Mas este encontro acontece e re-acontece em nossa vida cotidiana. O povo novo somos nós, na simplicidade daquilo que fazemos todos os dias. Isto acontece na vida de cada um de nós nas formas e nos momentos que o Senhor nos dá, mas o Movimento nos indica um caminho, nos ajudando a pedir e a oferecer. Por isto é importante seguir, dentro das condições objetivas de cada um, as indicações propostas para que esta vida nova cresça em nós e se torne capaz de assimilar tudo a si.
Notas
[1] A Fraternidade de Comunhão e Libertação é o âmbito do Movimento onde se reúnem as pessoas que desejavam aprofundar, por meio de um método de comunhão, o pertencer à Igreja também dentro da condição da vida adulta e das responsabilidades que ela comporta.
[2] A Escola de Comunidade é um gesto, geralmente semanal, de discussão e de catequese de catequese, seja para os jovens das escolas de nível médio e das universidades, seja para os adultos, que tem como objetivo ser uma escola de verdade, que por meio da leitura e da comparação com os textos indicados pelo centro do movimento forme nas pessoas uma consciência mais clara da natureza do fato cristão e da Igreja.
Em primeiro lugar a unidade; em segundo, se nesta unidade todos são meus membros [como diz São Paulo (Rm 12, 5), somos todos um só corpo em Cristo], eu sou grande e potente segundo a totalidade, a riqueza desta unidade. Como esta unidade começou dois mil anos atrás e segue pela eternidade, eu sou feito do passado, do presente e do eterno, que se chama comunhão dos santos. A comunhão dos santos é uma definição completa da minha pessoa. Mas, nesta capacidade que vem daquela potência que nos torna uma coisa só (Cristo), se somos 20, vivemos esta assimilação com 20 pessoas; se formos 300 ou 15.400... E esta capacidade de assimilação não é só das pessoas... mas também das coisas. Assimila as horas da manhã – e rezamos as Laudes. Assimila o pão e o vinho, o ágape – e a ceia se torna sacramento. Assim, a liturgia se torna ação. A ação é a expressão do eu: chama-se ação a expressão com a qual o eu afirma a si mesmo...
Luigi Giussani
Credits /
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© Fraternità di Comunione e Liberazione para os textos de Luigi Giussani e Julián Carrón