Seu engajamento político contra o colonialismo francês e seu comunismo iluminista. Mas também o sentimento de náusea, um senso de distância entre o eu e as coisas, a negação do sentido. Cem anos do seu nascimento
“Translúcido”. Essa é a palavra que poderia definir as aulas sobre Sartre dadas, nos anos 70, pelo falecido professor Bausola, que foi reitor da Universidade Católica de Milão: um daqueles homens que seguramente deram muito mais do que receberam. Quem, ao contrário, recebeu honras, dinheiro, prêmios, até se tornar um ícone do Intelectual Moderno, foi o próprio Jean-Paul Sartre, que nasceu em Paris no ano de 1905. Como Heidegger, como Merleau-Ponty, como Hannah Arendt, como Edith Stein, passou pela escola de Edmund Husserl, pai da Fenomenologia. Foi escritor de sucesso, autor teatral, polemista e, no curso de sua longa carreira, seu pensamento sofreu algumas modificações por causa do marxismo.
No entanto, mais do que pela qualidade da sua filosofia e da sua literatura, sua figura é importante porque representa a matriz do modelo de intelectual “engajado” e naturalmente engajado na esquerda, cada vez mais à esquerda, que depois se tornou o único posicionamento aceitável para ele. Aderiu ao Partido Comunista, em seguida o abandonou, ganhou o Prêmio Nobel e o recusou, lutou acirradamente por numerosas causas sociais e políticas, entre as quais pelo fim do colonialismo francês na Argélia.
Naquela época, entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60, a Argélia, colônia francesa, levantou-se contra a pátria-mãe e Sartre posicionou-se do lado dos insurgentes, seguindo o esquema marxista. Muita gente morreu. A propaganda sartriana tachou de invasores os franceses residentes na Argélia – pessoas modestas, cuja única culpa era a de terem sido enviadas para lá pelo governo francês ou de lá terem nascido.
O comunismo sartriano
Remonta a esse período a ruptura definitiva entre Sartre e Camus. Este último nasceu em Mondovi, na Argélia, e sua mãe ainda residia lá. Os principais romances de Camus, O estrangeiro e A peste, são ambientados na Argélia. Naquela ocasião, Camus declarou que nenhuma ideologia seria capaz de colocá-lo contra a sua mãe. Essa declaração lhe valeu o exílio intelectual, a expulsão de todos os olimpos da cultura.
O modelo Sartre se impôs na França e na Europa. Trata-se de algo diferente do modelo gramsciano. Gramsci, comunista, fala do Partido Comunista num sentido hoje difícil de compreender: a palavra “partido” tinha, para ele, o valor afetivo de congregação de um povo. Filho de uma Itália camponesa e “caipira”, Gramsci entende a relação entre intelectual e Partido como de uma ligação vital.
Devemos ter presente, porém, que os valores populares do comunismo daqueles anos são valores tirados de outras experiências do povo – antes de tudo, sem dúvida, a cristã – e que a idéia de povo não pertence originariamente ao comunismo, que nasce como movimento intelectual e não como movimento popular (a palavra fundamental é, quando muito, “proletariado”, que não é um dado indiscutível da experiência, mas um termo só compreensível no seio de uma teoria social bem-estruturada). Nesse sentido, Sartre é filho do Iluminismo, e não muito próximo de Gramsci: é o intelectual-líder, o intelectual que indica a linha, mas que, não fazendo parte de nenhum povo, não pode criar um: no máximo reúne um grupo de pessoas que pensa como ele. São suas pequenas reproduções, indivíduos mantidos juntos ocasionalmente por uma razão política, mas substancialmente sós.
Um homem só
Antes mesmo de aderir ao comunismo, Sartre propôs, no período existencialista (o homem é aquilo que ele mesmo faz de si), a sua própria visão de um homem completamente e irremediavelmente só.
O fez em algumas obras narrativas, como o romance A náusea ou a coleção de contos O muro, em alguns textos teatrais, o mais famoso (e também o mais belo) dos quais é Entre quatro paredes, e na sua mais célebre obra filosófica, O ser e o nada.
A náusea, dentre todos os seus textos, é o que melhor aborda essa questão. O estudioso Antoine Roquentin procura desvendar na obra o seu aspecto histórico. O caráter de Sartre já o havia levado ao isolamento, mas enquanto se dedica de corpo e alma ao trabalho, eis que aparecem os sintomas de um novo mal: a náusea. Aparece justamente um sentimento de distanciamento entre o eu e todas as coisas, as quais existem independentemente de nós e são completamente desprovidas de sentido.
“O mundo... esse grande ser absurdo. Não se podia sequer perguntar de onde saiu tudo isso, nem como podia existir o mundo e não o nada. Não tinha sentido; o mundo estava presente por toda parte, na frente, atrás. Não havia nada antes dele. Nada. Não houve um tempo em que ele não existisse. Era justamente isso que me irritava: sem dúvida, não havia nenhuma razão para que existisse essa larva rastejante. Mas não era possível que não existisse. Era impensável: para imaginar o nada, era preciso que ele já existisse, em pleno mundo, ao vivo, com os olhos bem abertos; o nada era só uma idéia na minha cabeça, uma idéia existente, flutuante nessa imensidão: o nada não vinha antes da existência, era uma existência como outra qualquer e apareceu depois de muitas outras”.
A consciência e a realidade
De fato, o sentido está todo na nossa consciência. Mas a nossa consciência, explica Sartre em O ser e o nada, ao se relacionar com a realidade (“o mundo”), esvazia-a, aniquila-a. A consciência afirma a si mesma negando a realidade, e ao ser negada é que a realidade se apresenta à consciência. Nós não conhecemos a realidade das coisas, mas só o seu puro ser contingente. Portanto, a consciência é o que de mais inútil existe. A má-vontade é a sua atitude original em relação a tudo o que é outro: tanto que “o inferno são os outros”, diz um personagem em Entre quatro paredes, enquanto que num dos contos de O muro um indivíduo sai à rua com um revólver e mata ao acaso.
Por isso – são as palavras conclusivas de O ser e o nada – “o homem é uma paixão inútil”.
A náusea é de 1938. O muro vem logo depois. O ser e o nada é de 1943. Anos depois, em plena fase marxista, em 1964, numa entrevista Sartre declarará que A náusea é um livro desprovido de sentido enquanto no mundo houver crianças que morrem de fome. São palavras ambíguas, insatisfatórias. Na realidade, Sartre não escapou da náusea. De fato, é provável que essas crianças com fome sempre existirão, sempre, e então A náusea será sempre um livro sem sentido. Mas essa declaração não parece, de novo, ter saído da boca de Roquentin? Não é uma forma de empurrar o passado (embora seja uma obra sua, escrita 26 anos atrás) para o nada, aniquilá-lo? Desconfiemos dos artistas que rejeitam as suas obras: é um sinal de depressão.
No avião com o padre Giussani
Na verdade, podemos ser solidários com as causas mais distantes e, ao mesmo tempo, incapazes de verdadeira fraternidade, porque o que desencadeia a fraternidade não é a indignação intelectual, mas uma vida que tenha sentido aqui e agora, embora no mundo se morra de fome, embora haja crianças que sofrem injustamente.
Algumas vezes padre Giussani contou um fato que aconteceu com ele. Em 1961 estava em viagem no Brasil e justamente naqueles dias Jean-Paul Sartre também estava no país. Os jornais estavam cheios das suas palavras de louvor à humanidade. Durante a viagem de retorno, enquanto no avião os passageiros aguardavam a decolagem, Giussani sentara-se ao lado de um senhor que parecia inquieto. Esse senhor estava tão excitado que, em dado momento, levantou-se e pediu à comissária que lhe indicasse um outro lugar. Alguém disse a Giussani que a causa daquela inquietação do homem era exatamente a sua presença: de fato, aquele senhor não suportava ficar ao lado de um padre. Esse homem era Jean-Paul Sartre. Nos jornais distribuídos no avião, seu nome ainda peregrinava ao lado da palavra humanidade. Uma paixão abstrata pela humanidade e, ao mesmo tempo, um ódio pela realidade do homem concreto, expressão maior dessa realidade: o povo. Um padre é o sinal de um povo, de um povo que existe, é real, físico: um povo que o intelectual, se quiser edificar a humanidade segundo a própria idéia, será obrigado a odiar.
As obras
A imaginação, ensaio filosófico, 1936; A náusea, romance, 1938; O muro, contos, 1939; Imagem e consciência, ensaio filosófico, 1940; O ser e o nada, ensaio filosófico, 1943; A idade da razão, e O retorno, dois primeiros romances do ciclo Os caminhos da liberdade, 1945; Entre quatro paredes, drama em um ato, 1945; A prostituta respeitosa, drama, 1946; Mortos insepultos, drama, 1946; Baudelaire, ensaio literário, 1947; O que é a literatura?, ensaio literário, 1947; As mãos sujas, drama, 1948; Com a morte na alma, terceiro romance do ciclo Os caminhos da liberdade, 1949; O diabo e o bom Deus, drama, 1951; Saint-Genet, ensaio crítico sobre Jean Genet, 1952; Nekrassov ,drama, 1956; Crítica da razão dialética, ensaio filosófico, 1960; Os seqüestrados de Altona, drama, 1960; As palavras, evocação autobiográfica, 1964; O idiota da família: Gustave Flaubert, ensaio monográfico, 1971; Apologia dos intelectuais, ensaio ideológico-político, 1972; Situações, coleção de ensaios literários e políticos, 1947-76.
Obras póstumas: Cadernos por uma moral, 1983; Cadernos de guerra, diário, 1983; dois volumes de cartas, 1983.
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A vida
25 de junho de 1905 Nasce em Paris. Primo do célebre “doutor Schweitzer”, por parte de mãe; perde o pai, oficial da Marinha, com dois anos de idade. Com a mãe, vai viver com o avô materno, figura importante na sua formação.
1924 Depois de ter freqüentado a escola secundária em La Rochelle, para onde ele e a mãe haviam se transferido depois do segundo casamento dela, ingressa na École Normale de Paris, onde fica até 1928 e onde conhece Simone de Beauvoir, que depois se torna célebre escritora e promotora de movimentos pelos direitos da mulher. A ela ficará ligado por toda a vida.
1931 Começa a lecionar filosofia numa escola secundária de Le Havre e, dois anos depois, se transfere, com uma bolsa de estudos do Instituto Francês, para Berlim e para Friburgo, onde conhece pela primeira vez os escritos de Heidegger, Husserl e Scheler e onde assiste à ascensão de Hitler e do nacional-socialismo.
1935 Volta para a França e recomeça a lecionar filosofia, primeiro em Lion e depois em Paris.
1936 Publicação do primeiro ensaio filosófico, A imaginação.
1940 Convocado para o Exército, é feito prisioneiro pelos alemães em Lorena.
1943 É libertado e volta para Paris, onde participa da Resistência e retoma a atividade de professor.
1945 Em colaboração com Merleau-Ponty funda Les Temps Modernes, revista na qual expõe suas experiências filosóficas, literárias e políticas, tão fundamentais na sua vida.
1947 Com Rousset, Rosenthal e outros, dá vida ao Rassemblement Démocratique Révolutionnaire, um partido de inspiração marxista, mas sem impostação classista: depois dos péssimos resultados obtidos nas eleições, o partido é dissolvido no ano seguinte.
1952 Participa do Congresso Mundial pela Paz, em Viena. Nos anos seguintes, em várias ocasiões, se pronuncia sobre questões políticas internacionais (1953, contra a França na Indochina; 1956-57, contra os soviéticos em Budapeste; 1961, Manifesto dos 121, contra a França na Argélia).
1964 Rejeita o Prêmio Nobel de Literatura, tanto por razões pessoais (“Sempre declinei das distinções oficiais”) quanto por razões objetivas (“Eu estou lutando para aproximar a cultura ocidental da oriental, e anularia a minha ação se aceitasse honras do Leste ou do Oeste”).
1966-67 Rejeita alguns convites de universidades americanas para fazer conferências nos EUA, para protestar contra a intervenção americana no Vietnã. É também um dos promotores do Tribunal Russell (para os crimes de guerra), que, em duas sessões, redige um documento de condenação. Sempre nesse período, participa de algumas conferências no Egito sobre a questão árabe-israelense.
1968 Durante o “maio francês”, alinha-se com posições políticas de alguns grupos extraparlamentares de esquerda, atitude reforçada depois, com a crítica ao partido comunista francês e à URSS, como por ocasião da invasão soviética da Tchecoslováquia.
15 de abril de 1980 Morre em Paris.
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